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Cardilium

Cardilium

excerto de uma noite com o inverno todo numa só noite

“… todas as madrugadas a encosta em frente à mata que desce até ao rio está iluminada com ténues chamas que aquecem as colheres que abafam a vida. Os corpos resistem a mais um inverno que parece que se junta numa só noite todas as noites. Os corpos encostados animam-se do conforto esquecido nas casas abandonadas. Não há irmãos, pais, filhos ou outros parentes para além daqueles que daqui as umas horas abrem pequenas guaritas de guarda do quartel que sonhamos assaltar. Nada mais valioso há que o milagre de compor o corpo pela manhã, de o salvar da doença que o massacra descompondo-o.

 

Outro dia. Outra hora. Um copo de miséria com café. Um prato de solidão. Uma mão dada de esquecimento. Outro dia. Outra morte. Outro homem que fica e se junta às noites que têm o inverno todo numa só noite. Há mulheres. Miúdos que avisam a vinda da prisão solta em rostos cerrados de medo igualmente. Todos estão presos. Os livres. Os presos. Os que prendem. Os que soltam. Ou que decidem. Os que matam. Os que se abraçam em resistência e acobardada esperança. E todas as bocas, mesmo as que estão para se calar de dor acreditam que um dia será um dia sem a noite com o inverno todo lá dentro. E assim se fez a fé.

 

Um dia atrás de outro, a vida se deu à vida todos sem acreditar. Alguns tornaram-se naquilo que não acreditariam nem no melhor quadro pintado pelo pintor, na melhor poesia desenhada pelo poeta, na melhor oração gritada por um homem de fé. Outros (muitos) ficaram para partir. Outros vieram.

 

Assim, a vida se fez vida de vida, respeitando as noites que pareciam ter o inverno todo numa só noite …”