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Cardilium

Cardilium

Cegueira minha

 

O feno está molhado e amontoado. Montes de feno escurecido no verde e viçoso sombreado das arvores de cúpula redonda e rasante. O céu acordou deprimido e tem cor disso mesmo. Está como a cor cinzenta de um par de olhos desventurados Passeiam-se nas ruas os assocializados. Nas esquinas do deslumbre existe cheiro a café quente acabado de fazer.
 
Dezembro é um mês gasto a precisar urgentemente de ser substituído por sonhos, promessas e delineamentos de vidas novas, de um fazer de contas e um desenhar velhos futuros. As estradas estão desertas como espíritos. As casas estão adormecidas como almas. A serra encobriu-se envergonhada, não se vê do sítio do costume. As músicas são mais melodiosas e compassadas. Os telejornais dão as mesmas notícias do anterior e anunciarão as mesmas notícias nos seguintes. É como se este dia não existisse e apenas se esperasse pelo próximo sem pressa.
 
Tenho as mãos trémulas e a minha guitarra calou-se. Caminho com passos desenquadrados, sem saber qual o pé que avançarei antes do seguinte. Felizmente sinto-me sossegado arreigado ao que acredito ser este dia. O dia está imóvel, silencioso, sem expressão, as igrejas vazias e as famílias caladas e cabisbaixas. Tenho uma dor que não me deixa deitar. Sentado ou em pé estou muito melhor. Apetece-me trabalhar, produzir, fazer, participar, falar, rir, chorar, nadar, passear e abraçar. Tudo o que não posso fazer num dia como o de hoje, onde não existem pessoas e onde o ensaio sobre a cegueira se torna numa obra-prima por observação. Hoje é o dia da cegueira, tal qual é retratada no livro do Saramago que acredito não ter natal, a avaliar pelo Caim. E ainda há quem conteste.
 
Beijos de bem-querer a quem me quer bem e aos outros também.