Barbeado e com bom aspecto
Pertenço a um lugar. Viver é ter no horizonte o limite. Vivo. Pertenço á natureza que me rodeia. Não pertenço necessariamente ao sítio onde nasci, vivo ou vivi. Pertenço ao sítio donde sou e onde me sinto bem. Dentro do meu continente ou não. O mar na verdade não é igual em lugar nenhum. O céu tem tons diferentes em cada milímetro quadrado. A fogueira que acendo jamais grita o mesmo som. A luz ao amanhecer nem sempre é alaranjada esverdeada. O solstício é vitalício e eterno, mas não encerra sempre a mesma verdade ou verdades. O luar é doirado e imprevisível. As ruas empedradas que desço com a noite, e a sombra, fazem me viajar. Sei que em cada esquina existe a mudança. Mudo de rua, de princípios, de vontades. Os putos que chilreiam nos jardins estão ali existem anos. A velha vedação que toco com os dedos não apodreceu, e as arvores são altas e largas. O vento que corre entre as ruas foge-me, não o apanho. Sento me no degrau gasto. O nevoeiro passa por mim e nem me vê. O bairro recebe em si mesmo, o sono. A música apenas existe em mim como um silêncio, misturado do sítio onde afinal existo. Oiço o gemer da matéria, a ceder. No pátio da igreja vazia, as folhas caem arrumadas. A torre dá-me as horas do silêncio. Aproveito a noite e a paz para carpir as minhas mágoas. Lavo a cara com lágrimas que guardei tanto e tanto tempo. Questiono a natureza, as decisões, a forma de existir, as escolhas. Desvalorizo para logo de seguida valorizar. Faço musicas e pinto quadros num delírio metafórico. Alegorizo a existência e cedo. Mudo de degrau e encosto-me á ombreira como outrora me encostei ao sonho. O sonho ainda lá esta. Barbeado e com bom aspecto, a enganar os que nele não acreditam. Bem aventurados os que crêem no sonho. Um dia “ele” será real. Será realizável como sempre. Afinal o sonho esta mesmo mesmo…. Ali ao lado.