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Cardilium

Cardilium

Tenho uma gaveta que cheira a um amontoado de papéis antigos

Tenho uma gaveta que cheira a um amontoado de papéis antigos, que sentem o que eu senti e ali depositei confiado. São os meus pedaços sentidos de vida. São os meus segredos revelados, as minhas angústias divididas, as minhas manhãs de ressaca, o meu dia adiado de décadas. Não creio nos desígnios de deus, não creio que ele retire ou acrescente pessoas à minha vida. Não sei porque deixa ele morrer os nossos pais, ou, mais doloroso ainda, morrerem os nossos filhos antes de nós. Quando o vento sopra inspiro nele, ar. Faço-lhe peito e nele me vou. A vida é feita de dias pequenos e noites desmedidas e demoradas. As noites dormidas são desencantadas, é como se morrêssemos nessas horas, e não pudéssemos viver o que a noite tem para nos entregar. As noites acordadas são sentimentalmente mais ricas, ou porque o sentir é tanto que não nos deixa adormecer, ou porque o medo é do tamanho da própria escuridão, ou ainda e simplesmente, porque o amor embriaga-nos de tal forma, que ao fecharmos os olhos agoniamos. A vida corre da nascente para a foz, sem percebermos que no seu leito existem afluentes, zonas estreitas e rápidos, lagos mansos, e margens verdes enfeitadas de cheiros a flores, com árvores cambaleantes e curvas como nós, com o tempo, havemos de ficar.

 

Tenho uma gaveta que cheira a um amontoado de papéis antigos que está cheia. Cheia de prantos e orações, de convites e negações, de pó metido nas veias e suor carregado de sal. Está cheia de lugares com ruas calcetadas e calcorreadas, de esquinas apodrecidas de solidão e luz ténue quase extinta. Está cheia de mulheres sem existência, desnudadas de vida, esquecidas dos filhos que pariram, cheia de pancada e polícia de choque, de fugas e labirintos, de carne apodrecida e morte a monte.

 

Tenho uma gaveta que cheira a um amontoado de papéis antigos que se está a encher. Está a encher-se de alma. De nuvens cinzentas rasgadas contra o sol. De abraços desgarrados e anunciados, e de algumas pessoas de quem eu gosto. Está cheia de garra e esforço, de sucesso e não desistência, de fé e trabalho, de noites acordadas e vividas e de prantos. Está igualmente cheia de beijos e café, e de um trilho feito sem desenho, levado pelas marés da intuição. A minha intuição é o que vale. Não vou em nomes de família ou desenhos arquitectados de agradabilidade. O genuíno não se anuncia, apresenta-se tal como é, sabe entrelaçar os dedos da mão que dá, não come sushi e gosta de arroz de tomate com pimentos e carapaus pequeninos fritos.

 

Tenho uma gaveta que cheira a um amontoado de papéis antigos, cheia de vida e alma.

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