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Cardilium

Cardilium

Por isso eu tomo ópio ...

Restos de bocados de homem despedaçado em fragmentos de dor, passeia-se vagabundeando pela cidade tardia. Melindrado pela angústia de uma lacuna parte de si, insensível e roubada, pela necessidade de numa noite se ter ausentado de si mesmo, aniquilou o sentir e não mais voltou. Estilhaçado, procura as porções de si, em cada vida dos outros. Parece inteiro por fora, sem passado e sem memória, fala fluente, mas não ri. Lê e escreve, faz canções que não canta, mas que guarda em cada estrela de baú. Sofre-se mais do que se devia e do que se devia mais de sofrer. Encanta mais do que sorri. Fascina-se nos olhares fixos e longínquos, meios esquizofrénicos e absurdos, não ouve por aí além. As palavras ditas são o seu cansaço e as escritas a sua liberdade. As horas são mais transferências de quebranto do que de momento. A sedução tem-na na natureza. O passado é um presente inesquecível. Bairros amargurados de crianças recordadas pela miséria de se ter nascido sem merecimento. Homens e mulheres autómatos, movidos por sinais e rituais que ninguém entende, porque não se lê o que se sente, não se estuda o que não se entende, não se disserta ausência, apenas se vive o que se sente. Estado demente e dormente este, feito de opiário. Recordo Álvaro de Campos:

 

Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento

E ver passar a Vida faz-me tédio.

 

Escrevo estas linhas. Parece impossível
Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!
O fato é que esta vida é uma quinta
Onde se aborrece uma alma sensível.

 

É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.