Há que deixar gritar o silêncio
Irei edificar um altar à nossa senhora do silêncio. Não me conste que exista essa santidade, tal é árdua e inexequível a sua manutenção na tarefa do silêncio, esse bem precioso, magnífico, desusado, que escasseia, e é cada vez mais raro. No Livro do Desassossego, Bernardo Soares bem tentou desfolhar os seus sonhos silenciosos em folhas secas de palavras ditas. As palavras são isso mesmo, as necessárias, e não mais do que as necessárias. Há palavras em demasia, usadas demasiadas vezes, em desregramento e de uma forma desconjecturada. Quando era miúdo, a minha avó pedia-me para ir comprar qualquer coisa, ela dava-me a demasia, e a demasia, era a demasia, era o troco do que sobrasse da compra. E as palavras são isso mesmo, o troco do pensamento, do sonho, de um reposta. É a demasia que, com conta, peso e medida, medida pelo silêncio, nos vigora as oportunidades.
O excesso polui, é supérfluo, e torna-se numa necessidade psicológica de divã. Leio, cada vez mais, na intemperança das palavras mal aplicadas, carência social, solidão, miserabilidade, brilho intempestivo, inadequação, barulho, necessidade de aceitação. As palavras mutam-se desregradas, semeadas de risos inapropriados e nervosos. Como sempre, o exemplo vem de cima. Desorganizada, a social demência politica que nos domina, assaz, obriga-nos a ser inventivos em defesa da maliciosidade dos nossos dias, decretados em leis escondidas e promulgadas, sem direito a opinião. O silêncio geral isenta o pensamento, o debruce das ideias, a conclusão dos ideais.
O ruído é o que dá jeito. O ruído morde-nos a alma. O ruído espelha-se nos jornais e noticiários. O ruído reflecte-se na fome e na amordaça. O ruído reflecte-se no silêncio da revolta. O silêncio promove o direito à revolta. Há que manter o ruído, aniquilar o silêncio. Mas não …
…. Na verdade há que em silêncio deixar gritar o pensamento. O ruído castra. O silêncio é evolutivo. No silêncio tudo se escuta e se decide.