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Cardilium

Cardilium

A normalidade dos pensamentos

Gosto de cheiros intensos e luzes cintilantes ao longe na noite. Deambulando na planície, vejo erguida e distante a montanha. Subindo a serra, vejo plantada nos meus olhos a planície longínqua. Ambos me asfixiam com cheiros, um mais fresco que o outro, mas ambos fortes, intensos, e desafiadores. Tudo está longe, tudo está perto. Eu estou, eu sou, equidistante de mim próprio, como uma circunferência e a equidistância matemática dos seus pontos. Não sei se gostava de ter pensamentos normais, porque não sei nada acerca da normalidade dos pensamentos. Apenas sei, acerca da anormalidade ou normalidade dos meus pensamentos. As minhas opiniões são dementes e alienadas, calmas e lúcidas, como os meus pensamentos reflectivos. Sentir-me desequilibrado é comparar-me ao equilíbrio que julgo saber existir, isso faz de mim, equilíbrio afinal. É como a humildade, essa senhora que não é mais do que uma táctica de inflamação do ego. Não rezo, reflicto. Não creio, verifico. Desentendo-me regularmente com as palavras, mas amo-as. Também gostos de números, dão-me o ritmo que preciso para a poesia. As palavras são os meus pensares, engolidos e expostos. Gosto quando me dizem: “vou-te deixar” sem terem que me deixar. Se não existem raízes ou sementes, não há deixar. Só e apenas existe, semear. Aí penso: “estou sano”.

 

A velha senhora do contentor do lixo esconde-se quando passo. Gosto dela, mais do que de tantas. Já conheço o bater da tampa do caixote e dos passos surdos da sua direcção. Já reconheço o vulto curvo e a delineada sua sombra ao luar. Conheço-a, como conheço o meu pedaço moreno de mar a norte de São Pedro. Conheço-o tão bem. Conheço a areia onde enterro os meus pés e a madrugada onde me inquieto. Conheço o mar pelos sons das marés. A temperatura pelo frio, e o frio pela desobrigação de temperatura.

 

No carro tinha um papel que me pareceu uma multa. Não era. Era um papel molhado de madrugada, com um número de telefone onde se publicitava trabalhos sexuais. Pensei, a esta hora da madrugada até ia um abraço. Depois pensei, mas tenho que me despir, vestir, agitar, sorrir porventura, ocultar um choro, encovar-me de mim, ser quem não sou, e afinal só queria um abraço. Pensei novamente, se ligasse, quem se prostituía era eu. Não deixei de ficar indiferente ao papelinho molhado de madrugada no pára-brisas do meu carro junto ao mar, nunca tinha visto, nunca tinha assistido, não sabia da existência de papelinhos com tal conteúdo, nos vidros dos carros escorridos de água e maresia.

 

Não sei se gostava de ter pensamentos normais, porque não sei nada, acerca da normalidade dos pensamentos.