É preciso o demónio e as demoníacas vontades. É preciso o demónio para se crer em deus, e deus para se crer no demónio, ou nenhum dos dois para se crer na força do trabalho, nas decisões sem atropelos, nas crianças sem medicamentos, em quem não tenha com que mate o frio ou a fome, em quem não tenha justiça e liberdade, em quem ache que a cor é importante, o estatuto, ou a mísera submissão do género.
Faz falta o demónio para existir contraponto existencial.
Sabes, tenho saudades de beber até ficar dormente e com ideias boas e progressistas. Já não bebo desde mil novecentos e noventa e três, já lá vão uma data de dias que não entra em mim uma gota de álcool. Foi em março desse ano. Tenho saudades de acordar seco de tanto líquido, saudades de poder partir os cornos a mim ou a outro gajo qualquer e ter que ser um juiz a recordar-me da minha vergonha. Saudades dessa solidão.
A solidão alcoólica ainda é menos acompanhada do que esta solidão sóbria. Saudades das madrugadas esquecidas de acontecimentos. Saudades das mulheres que não me lembro. Dos poemas que queimei. Das músicas que destruí. Das companhias sem presença. Das dores ausentadas. Das misericordiosas palavras a mim próprio de promessas que acabei por cumprir. Saudades de um tipo que não me lembro e/ou reconheço. Saudades dessa vida que me emprestaram e partiu. Saudades da diferença militante que me acompanhou até aqui.
O corpo frio jaz em fim de tarde fria e chuvosa. Por cima da música sobrepõe-se dois abafados gemidos, e um homem reentra no salão de baile com as orbitas descoladas do olhar. Inacreditavelmente mataram-lhe a mulher que ia de braço dado com ele e falharam a sua morte.
Foi o destino. Só pode ter sido o destino porque deus não existe, se existisse não tomava partido por um dos dois, não deixava morrer um, em prol do outro. Em mim o corpo continua encharcado em chuva, sangue e lama.
Começam as primeiras projecçoes, os profetas da desgraça tomam conta da ocorrência. Dormi mal nessa noite.
Ainda não piso aquele pedaço de terra ensanguentado, cada vez que por ali passo vejo aquela mulher a despedir-se da vida, talvez já fria de domingo à tarde, princípio de noite, fim de vida.
O homem que a trazia pelo braço vejo-o por aí, amiúde, de balcão em balcão, e nenhuma vez a há, que não a veja a ela, serenamente adormecida, na terra que foi seu destino.
Esta escrita cardíaca desenfreadamente solta e nua, fala da despertença e da não frequência de lugares que tenham pouca solidão ou recolhimento, que não tenham musica do silêncio e que não alberguem marginais construídas por enclaves onde o sol desvinginde de luz as nuvens, o cheiro rasgue o nevoeiro de densidade e perturbada poesia. Sítios onde a serra e o mar se desordenem do ensaio escrito a quatro mãos.
Quem não escolhe a sala circunscrita não me fala de solidão, fala-me tão somente de estar sozinho que é o acto egoísta da transferência do inconseguimento relacional.