Não tarda e as redes sociais ficam cheias de “balanços”. Já cheira.
Já cheira a balanço do género: “este ano foi assim mas para o ano vai ser assado” e, na realidade, não foi bem assim, e não vai ser diferente coisa nenhuma, porque os dias continuam com as mesmas horas, as semanas com os mesmos números de dias, os meses com as mesmas semanas, e o ano com os mesmos meses. A velocidade com que se vive quiçá aumentará, e o adiamento será o mesmíssimo. A doença proliferará, e o tempo esgotar-se-à da mesma estúpida forma, e, diremos o mesmo daqui a um ano: “Este ano foi assim, para o ano será assado”.
O diferente na verdade é uma necessidade, nem que seja apenas dita pela necessidade de se dizer ou purgar uma espécie de culpa pelo mau uso do tempo, e assim parecer-nos-à que se libertará de nós na consciência da palavra dita, mas, na realidade, a diferença far-se-à no retirar de: horas aos dias, dias às semanas, semanas aos meses, meses ao ano, tempo para nós, para fazermos coisa nenhuma e ofertarmo-nos oportunidades, para abraçarmos, passearmo-nos de mãos dadas, discutirmos entendimentos, resolvermos questões emocionais, sentarmo-nos a ver o mundo passar, lembrarmo-nos dos vivos, de quem ainda temos, e exultarmos quem perdermos. Tudo o restante necessário entrará pelas nossas casas adentro, virá por acrescento e pela consequente necessidade de vivermos.
Parece-se fácil, mas é uma obra com anos, por começar, longe de ser iniciada.
Por vários motivos e ordem de razão, dispenso felicitações natalícias, anos novos bons ou boas entradas, se eu os quiser, farei por isso. Prefiro abraços todos os dias do ano.
Extracto de palavras por ver o sol um dia IV (2016)
Oiço o ranger dos degraus de velha madeira em cadência. Pelos passos é o Lacerda. Deve querer recordar em mim e comigo as velhas aventuras da cidade. Bate devagar de mão aberta à porta encostada.
- Entra, permito-lhe eu. Senta-te quase lhe ordeno ao mesmo tempo.
Respira fundo ao sentar-se e diz-me:
- Estava adormecido ao fogo que me aquecia enquanto a saudade me torturava a alma e decidi vir revisitar-te. Tenho contigo e por ti uma saudade que nunca deixa de ser saudade. Lembras-te daquela mulher com quem me romantizei perdidamente noites a fio?
- Aquela mulher do sul? Perguntei-lhe.
- Sim essa.
- Lembro sim, tinha uma bela voz, o que lembro das mulheres são sempre as coisas que a maior parte dos homens não recorda, disse-lhe. Recordo sempre, as mãos, a brado, o andar, muito mais do que o corpo em si. Recordo muito mais a alma e a paz que sinto, do que a excitação momentânea, rara e esquiva. Mas diz-me, interrompi-te, desculpa.
- Sabes, estava a pensar meio angustiado acerca da inevitabilidade da discordância de dois dispares pontos de vista acerca do mesmo tema, a acçâo/reacção. O está tudo bem. O chorrilho de rebuscadas e apoteóticas glamorizações e eclécticas atitudes que tentam esconder em palavras ajustadas à imagem o ego, esse traiçoeiro monstro demoníaco e demolidor de gente boa, má e assim assim. E aquela mulher do sul recorda-me isso. A eloquência do amor aos homens, o desamor aos filhos na transferência de um deles, a deturpada consciência do ressentimento, o desconhecido valor e entendimento do que é ser, a quase malévola forma de perdão. Na verdade, o ego engole o ser, e neles se afirmam outros seres.
- Lacerda, queres chá?
- Sim, serves-me por favor. O chá, tu e a noite que entardece o dia, fazem-me sentir pertença. Tenho poucos amigos, tenho os que preciso, e neles me sossego e descanso. Durmo bem, porque posso. Obrigado, está bom, o chá desta casa tem as nossas vontades a arder com ele.
Extracto de palavras por ver o sol um dia ..... to be continued
Um e outro têm na génese a semelhança inexplicável da vida. Têm ambos a diminuição e a quase cobardia de não haver mais tempo, mais morte, mais explicação, mais oportunidade.
O tempo com a impossibilidade de se viver o mesmo fragmento mais do que um momento, e a morte com a impossibilidade de acontecer repetida, apêndice que é da vida, fa-la análoga a si mesma.
Esquizofrenico e desafiador este pensar com tempo e vida.
Não é esta noite. Nem a próxima. Nem a anterior. Nem há noite que ceda igualdade. Nem noite que aproxime a fraternidade. Nem homens que da noite façam pão. Ou noites que da solidão façam presença. Ou da guerra façam paz.
Nenhuma noite se transforma de vida por ser uma data. Uma data nao é noite nenhuma.
Não me apoquentem com noites de data preenchida e antecipadas luzes para me lembrar.
Desajeitadamente sem saber onde colocar os olhos, as mãos, as vísceras até, perdi-me em ti precisamente pelas vísceras revoltadas, as mãos suadas de saudade, e olhos cegos de luz, desajeitadamente que eu não tenho jeito para me deixar amar.
Desarmaste-me com um: "és como eu, ainda bem que és desajeitado como eu" . Senti ali o ajuste de mais de 50 anos desajustados.