A memória sim é o tempo que guardo, vivo e esperanço. Só tenho memória e da boa, atulhada de boas e malvadas recordações. Tempo não tenho, sou apenas a simbiose do que gasto com o que uso, com o que me há-de ser cedido pela memória. Memória, essa amaldiçoada e bendita farsa e verdade.
Domingo. Cruzei-me com gente vestida da fé professada com indumentaria a rigor perfumada de naftalina. Eu barbado e transpirado, bebi um café surpreso por quem me o serviu, numa aldeia onde todos se conhecem. Penso em turbilhão cada metro que percorro do que me vai na alma.
Das nuvens saíam cantares de pássaros migrados em bandos. Parti.
Saber-me desencontrado fascina-me. Intelectualmente trocado pela razão. A membrana que separa o coração é ténue. Dilato os vasos sanguíneos. Troco o ar respirável pelo irrespirável. Sou metano poluente. Sou ar venenoso. Reajo á química e purifico. Sinto as artérias na barriga. Descompenso. Esquiziofrenizo. Destaco-me em burburinho na multidão.
"... as nuvens descem em fim de tarde ao encontro do chão, esse chão de terra em grão, que me espera no fogo que arde no velho fogão cansado, na esquina entre as janelas de vidros empalidecidos pela idade. Adivinho mais do que creio na música que o vento toca nas árvores. Creio mais do que adivinho no cheiro que arde do fogo que se plantou em mim.
“… todas as madrugadas a encosta em frente à mata que desce até ao rio está iluminada com ténues chamas que aquecem as colheres que abafam a vida. Os corpos resistem a mais um inverno que parece que se junta numa só noite todas as noites. Os corpos encostados animam-se do conforto esquecido nas casas abandonadas. Não há irmãos, pais, filhos ou outros parentes para além daqueles que daqui as umas horas abrem pequenas guaritas de guarda do quartel que sonhamos assaltar. Nada mais valioso há que o milagre de compor o corpo pela manhã, de o salvar da doença que o massacra descompondo-o.
Outro dia. Outra hora. Um copo de miséria com café. Um prato de solidão. Uma mão dada de esquecimento. Outro dia. Outra morte. Outro homem que fica e se junta às noites que têm o inverno todo numa só noite. Há mulheres. Miúdos que avisam a vinda da prisão solta em rostos cerrados de medo igualmente. Todos estão presos. Os livres. Os presos. Os que prendem. Os que soltam. Ou que decidem. Os que matam. Os que se abraçam em resistência e acobardada esperança. E todas as bocas, mesmo as que estão para se calar de dor acreditam que um dia será um dia sem a noite com o inverno todo lá dentro. E assim se fez a fé.
Um dia atrás de outro, a vida se deu à vida todos sem acreditar. Alguns tornaram-se naquilo que não acreditariam nem no melhor quadro pintado pelo pintor, na melhor poesia desenhada pelo poeta, na melhor oração gritada por um homem de fé. Outros (muitos) ficaram para partir. Outros vieram.
Assim, a vida se fez vida de vida, respeitando as noites que pareciam ter o inverno todo numa só noite …”
“… Acabei de ler o último livro que escolhi viver.
Acabei-o entre o sono e o despertar. Entre as ternurentas personagens de que me vesti e as ousadas imagens de que me despi.
É assim todas as vezes em frenesim. Esta compulsão quase recomendada, mas seriamente desaconselhada. Para mim é indicada, que eu não me importo que a morte me asfixie de paixão. Ou que estes homens escritos no papel por outro homem qualquer me roubem da boca palavras que são mulher, verão ou mar.
Esta doce melancolia ou esta agitada tormenta vai-se, quando a folha se vira em capítulos de dias decrescentes, e, cresce a vontade que não se submeta esta música a nenhum compositor. Aumenta o desejo de que a arvore grande e frondosa gemendo ao vento na praça inventada pelo escritor não seja jamais tocada na sua imobilidade, e, que o coreto continue lastimando suavemente aos amantes.
Que me console nossa senhora dos dançarinos quando a ti ando perfumado nos teus braços, e que teus aloirados cabelos me afaguem a face neste desejo escondido de te beijar ali mesmo com um abraço entardecido e fresco pela noite acabada junto ao rio. Não existe mais mundo ali. Só as tuas gargalhadas retorcidas com o olhar, e nós.
Assim se adia a prosa em poesia.
Assim se adia a noite depois do dia.
Assim se adia talvez o amor, em corpos suspirados na pequena dita oração.