" ... vagueio nos escombros que ficaram em mim de alguma coisa que já nem recordo e, alguma coisa que não recordo, terá sido os escombros por onde vagueio. Este terrível esforço que não sabe se quer ser recordação, é forçosamente uma recordação. É nesta besta incongruente que vivo. É neste inquietante mundo que habito. É só por ser, porque na verdade isto é tudo e nada, são todas as primaveras longe das flores, todos os outonos fora de tempo, todos os invernos distantes da lenha a arder, todos os verões neste miserável bairro de criançada sem cidade, da cidade sem este bairro, de mães e esquinas, de tabernas de vinho com os homens soltos até maio ou depois, de gente que entra, sai e adormece, nos jardins de ópio à solta, e minha mãe já morta, e val de mar já deposto.
Eu, nos escombros sem terra, sem bairro e sem a quem amar, vagueio inquieto por mim adentro ..."
" ... Os bares cheios de fumo de outrora, onde tocava, the cure e talking heads, já não existem. Vivem agora em ruínas dentro de mim, espaços de olhares fixos e fugidios, onde as palavras presas se soltavam, e os corpos esguios, adormecidos e adormentados, se colavam por uma noite prenha de juventude e abertura espiritual ao momento. Não se via magotes de gente em burburinho, era tudo muito silencioso e vivido. Ou eram os meus ouvidos e os meus olhos, que estavam mais sossegados do desassossego da decadência. Era muito bom não ser permitido..."
Sem que o encanto fosse mais do que o sorriso envergonhado com que decoras a janela, passeio-me em todo o teu corpo, querendo nele atracar a barca quase naufragada em alto mar. Nem todas as manhãs são inícios de dias, porque algumas delas não se transformam em dias, e, alguns dias acordam sem que haja manhãs. Tudo é metamorfose em mim, e dentro de mim, existem todas as madrugadas que podem não se transformar em manhãs nunca. Eu sou toda a terra, todo o mar, ou coisa nenhuma acordado neste adormecimento sensorial, ou adormecido nesta existência racional de sobrevivência do delírio. Fico nesta pedra solarenga sentado com os meus pensamentos ao colo, e a saudade embrulhada no peso que me faz este peito de tanto silencio aguentar. Desfaço-me aos poucos de reconstrução em reconstrução, sem que o encanto seja mais do que o meu sorriso envergonhado também.