Nas vielas entreabertas da cidade ergue-se o cheiro das esquinas. Num café a meia luz, uma mulher serve os clientes sem lhes perguntar o que querem. Os anos, dá-lhe a sabedoria de lhes saber a necessidade do que tomam a cada diferente hora que a visitam. Eu, novo ali provoquei-lhe um desconfiado:
- bom dia, diga. Bom dia, um café por favor. Normal? Sim, normal.
Voltou-me as costas e todos aqueles sons de quem tira um café me invadiram.
- Belo café disse eu.
Naquele momento já emudecera. Ensurdecera. Cegara e uma amnesia total invadia-a, não fosse eu ser um agente da policia, daqueles que lhe levam os fregueses.
Logo eu, que só queria um café com conversa de matar a solidão.
Sempre que a noite se renova na cidade saio do quarto onde o dia foi quase noite para mim. Em poucos metros quadrados, circulei todo o dia sem querer ver a luz. A noite, entreaberta, entra-me pela janela adentro. Saio.
Ao príncipe real, os mesmos pombos e a mesma senhora, têm infindáveis conversas de companhia, a troco de uns bagos amarelados de milho. As mulheres passeiam-se perfumadas para descer ao cais do Sodré. Vão vender amor em bocados de minutos e notas gastas de solidão. Há pessoas nas ruas em diversas direções. A família é sempre a noite.
Uns voltam. Outros estão. Outros procuram. Outros não. Outros sonham. Outros sim. Desço até ao Combro. As ruas estreitam. Não tenho janelas que alcancem o rio. O rio não tem apenas esta cidade.
Onde cresci, o mesmo rio, guarda os lábios primeiros em que adormeci. Guarda-os no sonho que velo até hoje. A minha pequena cidade já porventura não me reconhece. Faz mais de mil luas novas que não a vejo. À média de cinquenta e tal novas luas por ano, serão pelas mil luas a distância que me separa à cidade onde cresci, onde deixei os lábios primeiros em que adormeci.
Vagueio pela cidade na demente esperança que um dia voltarei a ver, aqui, tão longe, tudo o que velo e guardo, sem preocupada existência em que me tornei.
A luz espreita a madrugada. Volto para os meus metros quadrados, onde circulo todo o dia.
- Será o alter ego de alguém com certeza, e assim sendo terá personalidade própria, será “almado” de alma própria e incomum. Conheço-o pessoalmente, que parva redundância, se o conheço já é pessoalmente, ou pode não ser? Sim posso não conhecer e / ou posso conhecer. Ok, adiante.
fala 2
- És doidinho, disseste-me. Não. Todos somos. Todos não. São mais os bem-aventurados. O fulano I, o fulano II e o fulano III não são. Parecem, mas não são. Ouvem o relato ao domingo à tarde, e falam dos que passam, no largo de quem vai para a praia. Parecem que são, mas não são. Deve ser por usarem brincos.
fala 3
- É o teu ponto de vista aceito. Não. Não é um ponto de vista. Ponto de vista são várias opiniões sobre uma coisa, há vários pontos de vista, cada qual tem um ou mais, eu, no limite teria o meu. Não é nada disso que eu estou a dizer. Estou a falar do largo frequentado aos domingos à tarde e de brincos. É só uma só opinião, não é um ponto de vista. Pode até nem ter nenhum valor para alem de todo o valor que para mim tem. Não tenho nenhum ponto de vista Posso enumerar outros energúmenos, para te facilitar a percepção, ou ser de menos difícil entendimento.
fala 4
- Também haviam rapazes do trapézio voador, eram dois (no sonho); um homem do poço da morte (no sonho); um indiano que encantava jiboias, fazia-as silvar, incrível (no sonho); duas velhas mongolianas, muito velhas, com mais de cem anos e sem anos que se lhe contassem, com o mundo descrito nas rugas, olhos sem olhos que escurecessem mais a noite (no sonho); e meia dúzia de orgasmos que também por lá cantarolaram (no sonho).
fala 5 -
que vida doida eu tenho morrerei sem saber quem sou, eu que só queria ser exageradamente poeta, do género:
Quando se disfarça a poesia de prosa e a prosa sangra de sentir, muda a prosa de planeta e a poesia de palavras.
O céu veste-se de cor, o mar de amantes náufragos, o vulcão há anos adormecido espreguiça-se e cospe fogo, todo o amor se reúne de todo o sentir, não há mesa que o albergue, vida onde caiba, planeta onde sobreviva, foz onde desague, e nunca chega ao fim, nem sequer nunca começa, que não há suficientes lagrimas que o chorem, suficientes lábios que o sorriam, suficientes bocas que o beijem, suficientes mãos que se passeiem dadas, suficientes noites que amem, que o amor não tendo início não tem fim, não tendo explicação, não tem questão, não tem amores iguais a outros que o foram ou venham a ser, não tem quadra rimada ou prosa soletrada.
O amor de tão simples ser, tem a complexidade latente do medo de terminar.
O amor por ser amor, já é amor.
Pouco a dizer, nada a acrescentar, nada a argumentar, tudo a viver.