Todas as ruas são como as artérias do meu corpo. Todas as ruas devolvem vida à cidade.
Na praça com o chão desenhado, encontram-se a saudade com a liberdade que esteve exilada em terras, onde as palavras estavam encarcerados em prisão de alta segurança.
Abraçam-se. Há mais de três mil dias que não se abraçavam. Não têm onde colocar a emoção. A liberdade ainda está a medo. A saudade ainda não tem certezas.
Na praça silenciosa ouvem-se os primeiros acordes das palavras soltas.
Aos poucos, deixo a minha vida escrita sem que seja a minha vida e, sem que seja a minha escrita.
Aos poucos, deixo a minha morte preparada, e todos os dias em que me senti alguma coisa, e nos dias todos em que não me senti nada a não ser poeta, e poeta é, não ser coisa nenhuma vestido de mundo, com alma de universo.
Aos poucos, seco e ergo as lágrimas com que me deitei de tristeza e, toda a minha ironia onde flutua a solidão desentendida, das gargalhadas sós dadas em multidão.
“… vejo todas as flores que nascem entre as ruas nas esquinas adocicadas do pecado no bairro a sul da cidade. As mulheres sem preço, apregoam um valor aos carros que se passeiam devagar com a cadeira do bebé no banco de trás.
Sou um mísero homem barbado, sem banho diário e um passado completo de passado, que decidiu sair de casa para ir viver numa rua do bairro a sul da cidade. Vejo todas as noites as flores que nasceram na madrugada anterior. As mulheres cumprimentam-me quando chegam, os homens violentos também, a policia depende, as raparigas e rapazes novos das carrinhas dão me leite e pão, presumo que querem escrever uma tese, enquanto não a escrevem virão, depois, virão outros que não aqueles, mas de igual forma para o mesmo fim que os anteriores.
Os carros continuam a passar devagar junto das mulheres sem preço, que apregoam o seu valor de mercado. Vejo muitos automóveis com um galhardete do benfica no espelho retrovisor. São portugueses afinal, do bairro mais a norte da cidade ….”
" ... O meu corpo ganha formas. Todos os dias ganha novas formas. O médico que é secretário, mas é licenciado em medicina, escolhe mais um exames de nomes compridos, para eu ser analisado por umas máquinas de luz ténue, e sons progressivos.
Para me entreter enquanto espero os exames, leio umas revistas actualizadas com noticias de há dois anos e tal atrás.
Fico excitadíssimo com as brancas batas das senhoras que me levam por um braço e não me tiram a roupa, mandam-ma tirar, dizem sem nenhuma sensualidade: "dispa-se".
Cabras. Podiam despir-me para fazer valer a pena os exames de nomes compridos, mais aquele receituário todo, antes do obituário.
" ... Exausto desta incerteza que me cansa, desta cama sempre desfeita, deste olhar lançado na baía esperançoso que madrugada adentro, atraque a maré toda que o teu corpo abarca.
Não mudarei os lençóis da cama de onde partiste, até que saiba que a morte escolheu um de nós para viver ..."
“ … das pessoas que me esqueço, sou o meu mais austero diamante, sou a beleza e a regra que solta o meu maior sonho,
das pessoas que já não lembro do cheiro, da cor, do acordar do adormecer, do nome, desta fenda quase mármore entre o tempo finito, e a eloquente forma de me inquietar, em cada manhã perfumada de esquecimento e recordação,
Chamaste-me poeta naquele domingo. Disseste: - ola poeta....
Não sou poeta. Sou orgânico no sentir. Indomável de compreensão. Aprendiz de feiticeiro. Presença e solidão. Pedaço moreno de mar. Metade lua. Metade Jasmim