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Cardilium

Cardilium

Praça entristecida de cidade

Todas as ruas são como as artérias do meu corpo. Todas as ruas devolvem vida à cidade.

 

Na praça com o chão desenhado, encontram-se a saudade com a liberdade que esteve exilada em terras, onde as palavras estavam encarcerados em prisão de alta segurança.

 

Abraçam-se. Há mais de três mil dias que não se abraçavam. Não têm onde colocar a emoção. A liberdade ainda está a medo. A saudade ainda não tem certezas. 

 

Na praça silenciosa ouvem-se os primeiros acordes das palavras soltas.

 

Dizem assim...

 

Entre a madruga e a morte,

As palavras e a saudade,

As orações e a descrença,

Há soldados mortos pela guerra,

Homens presos ao chão,

Mulheres que se lavam de lágrimas,

Mulheres mães,

Mulheres filhas,

Mulheres mulher,

Padres de polícia de estado,

Abutres em paciente espera,

Poetas resistentes,

Na cidade entristecida,

Acreditando noutro dia. 

Acreditando em - talvez um dia -

 

aos poucos

Aos poucos, deixo a minha vida escrita sem que seja a minha vida e, sem que seja a minha escrita.  

 

Aos poucos, deixo a minha morte preparada, e todos os dias em que me senti alguma coisa, e nos dias todos em que não me senti nada a não ser poeta, e poeta é, não ser coisa nenhuma vestido de mundo, com alma de universo.

 

Aos poucos, seco e ergo as lágrimas com que me deitei de tristeza e, toda a minha ironia onde flutua a solidão desentendida, das gargalhadas sós dadas em multidão.

 

Aos poucos, quase sempre "aos muito pouco".

vale de mar s/n II

 

“… vejo todas as flores que nascem entre as ruas nas esquinas adocicadas do pecado no bairro a sul da cidade. As mulheres sem preço, apregoam um valor aos carros que se passeiam devagar com a cadeira do bebé no banco de trás.

 

Sou um mísero homem barbado, sem banho diário e um passado completo de passado, que decidiu sair de casa para ir viver numa rua do bairro a sul da cidade. Vejo todas as noites as flores que nasceram na madrugada anterior. As mulheres cumprimentam-me quando chegam, os homens violentos também, a policia depende, as raparigas e rapazes novos das carrinhas dão me leite e pão, presumo que querem escrever uma tese, enquanto não a escrevem virão, depois, virão outros que não aqueles, mas de igual forma para o mesmo fim que os anteriores.

 

Os carros continuam a passar devagar junto das mulheres sem preço, que apregoam o seu valor de mercado. Vejo muitos automóveis com um galhardete do benfica no espelho retrovisor. São portugueses afinal, do bairro mais a norte da cidade ….”

catarse

esta catarse colectiva de chorarmos todos porque todos choramos,

sem saber exatamente a quem pertencem estas lágrimas

que todos celebramos neste choro,

esta celebração incoerente a que todas todos em choro pertencemos.

 

eu choro porque acabou abril já lá vai o maio todo,  

e não me perco em abraços colectivos de restauração da cultura porque nunca lhe infligi um fim,

nem choro o velho acordo ortográfico porque nunca lhe concedi um nascer,

nem choro merda nenhuma que outro alguém chora, porque esse choro não é o meu,

 

choro apenas o sonho “desonhado”,

e a saudade do tecido verde com que te enfeitaste na tarde soturna do verão passado,

padeço só desta melancolia que me alegra,

e da recordação que se expirou nas palavras que dissemos,

....sem choros.

 

o sonho de Catarina não morreu,

levou-o ela viva,

com o roufenho e traiçoeiro disparo alentejano,

que guardo em surdina revolta,

neste maio sem treze celebrado.

vale do mar s/n

" ... O meu corpo ganha formas. Todos os dias ganha novas formas. O médico que é secretário, mas é licenciado em medicina, escolhe mais um exames de nomes compridos, para eu ser analisado por umas máquinas de luz ténue, e sons progressivos. 

 

Para me entreter enquanto espero os exames, leio umas revistas actualizadas com noticias de há dois anos e tal atrás.

 

Fico excitadíssimo com as brancas batas das senhoras que me levam por um braço e não me tiram a roupa, mandam-ma tirar, dizem sem nenhuma sensualidade: "dispa-se".

 

Cabras. Podiam despir-me para fazer valer a pena os exames de nomes compridos, mais aquele receituário todo, antes do obituário.

 

Podiam fazer valer a pena..." 

a morte por escolher

" ... Exausto desta incerteza que me cansa, desta cama sempre desfeita, deste olhar lançado na baía esperançoso que madrugada adentro, atraque a maré toda que o teu corpo abarca.

 

Não mudarei os lençóis da cama de onde partiste, até que saiba que a morte escolheu um de nós para viver ..."

pessoas

“ … das pessoas que me esqueço, sou o meu mais austero diamante, sou a beleza e a regra que solta o meu maior sonho,

 

das pessoas que já não lembro do cheiro, da cor, do acordar do adormecer, do nome, desta fenda quase mármore entre o tempo finito, e a eloquente forma de me inquietar, em cada manhã perfumada de esquecimento e recordação,

 

sou as pessoas que ja nâo lembro,

sou as pessoas que já esqueci... “

Escrever

Escrever é o meu mundo sossegado,

agitado de mim e de todas as coisas que não gosto fechadas numa gaveta,

é a janela escancarada de mim para mim.

 

Escrever é o corpo que detesto e abraço,

todas as mulheres que me deixaram,

mais aquelas de quem fugi.

 

Escrever é todo o silêncio que consigo,

o vento, a madrugada, a dor apresentada,

e a esperança do deserto como morada.

beijar olhares com o coração

por vezes frequento sítios cheios de homens e mulheres,

vazios de gente com musica a condizer e luzes,

sapatos a combinar com o olhar,

e o descondizente verso humanizar,

a versejar no condicional.

 

depois,

fico pelo meu canto a improvisar sonhos,

e a beijar olhares com o coração.

Lua e jasmim

Chamaste-me poeta naquele domingo. Disseste: - ola poeta....

 

Não sou poeta. Sou orgânico no sentir. Indomável de compreensão. Aprendiz de feiticeiro. Presença e solidão. Pedaço moreno de mar. Metade lua. Metade Jasmim

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