As praças cheias de caras sem corpos, as temperaturas negativas de solidão e desamor, na temperada e amena Lisboa de outubro.
Mulheres sem brilho, homens sem destino, tentam angariar compaixão em moedas recebidas na palma da mão em concha, de turistas de sorriso estupidamente iluminado de tejo e luz, vinda do outro lado do rio pelas gaivotas que trazem cacilheiros até à margem.
Lisboa não é o cais das colunas com a bica a um euro e vinte e a carta do restaurante em inglês.
Lisboa é um país dentro do meu país onde ha inverno dentro das pessoas, crianças que não vão há escola, homens a dormir na rua, mulheres esquecidas que são mulheres, juízes medievais, associações para tudo, petições para nada, e pessoas que ardem, enquanto em São Bento centenas de mentescapta promovem uma Lisboa que não existe, num país inexistente.
Sentado num pedaço de chão que por ali sobra, relembro outra cidade, outros olhos, outro homem que por ali vagueou entristecido e invisível.
"... O melhor era ele morrer disse a mãe para o pai. Prefiro vê-lo amortalhado cor de cinza do que apodrecido por aí nas bocas do mundo. Prefiro vê-lo desnascido, do que nascido assim sem tempo que o guarde, ou noite que me descanse. Prefiro vê-lo a esvair-se de vida do que morto a mover-se com todas as dores que diz ter, com todas as drogas que diz tomar. Prefiro-o morto. Mil vezes morto.
Já eu, amorteço-me de morte pela vergonha que sinto, pela rua que não desço e a volta maior que dou para regressar a esta casa que não vive também. Escondo-me das caras que não me quero cruzar, escondo estes olhos negros de atentar a morte ser mais morte todos os dias um bocadinho.
Preferia vê-lo morto, já te disse Francisco, morto. Morto de uma morte que fosse choro o resto da minha vida, pelo menos podia tapar-me escondida num véu negro e nunca mais ninguém me veria este olhar que já não vê, esta boca que já não aguenta mais palavras, estes braços que já não seguram nenhuma esperança e se revoltaram com deus.
Olha Maria, já eu, prefiro que seja deus a tomar conta disso, e olha que ele nunca me faltou. Sabes, não, não sabes, nem vais entender, mas eu acho que ele se está a fazer homem, e está quase quase a entrar por aí, despertado do homem que sei que vive dentro dele. Está a procura-lo. Sei disso. Vi-o chorar quando a filha nasceu, eram lágrimas, era amor. Quem sente amor, ainda não morreu, está vivo. Ainda há homem dentro dele. Tem mais um bocadinho de paciência, não tarda entra por aí.
20 anos depois.
Passei por ele. Está lindo. Já nem me lembro do homem que morreu, da morte que afinal o matou, tinhas razão, a morte matou-o com vida, é outro..."
Será que existe futuro depois disto? Que existe isto depois no futuro? A vida é isto?
Não consigo dizer outra coisa que sinta que não isto. Não há futuro mais avassalador do que o dia de hoje moribundo, as pessoas entristecidas no mercado semanal com sacos de fruta e olhares perdidos na pressa de voltar ao mundo que não as espera, e a árvore que nem repara naquela mulher com uma braçada de filhos mal agasalhados, desistente da vida, sentada na sua sombra emprestada, cuidando da gemideira das crianças impacientadas pelo sono e o cansaço.
Será que existe futuro depois disto? Que existe isto depois no futuro? A vida é isto?
A tua voz deixou de ser a tua voz, como aquele velho relógio de sala deixou de responder ao tempo.
Deixaste de me visitar todas as manhãs, e todas as noites passei a adormecer na espera que o relógio se amantize com o teu peito, e tu me voltes a visitar todas as manhãs.
Não a burguesia que vai a votos de sapatos de berloques, de pullover pelas costas e calça encarnada engomada. Não essa burguesia que não tem burguês na cabeça.
Falo de uma burguesia emocional, uma burguesia intelectual que me afasta ou afasta de mim pela diferença existencial, cultural e que torna a comunicação maçuda e secante, que me faz não levar a sério as palavras descondizentes com os actos, com os factos.
Há uma questão quase burguesa dentro de mim proletário.