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Cardilium

Cardilium

enfeitei-me de ti

Enfeitei-me com a tua boca, os teus olhos, o teu cabelo, o teu peito, as tuas coxas, entre as tuas coxas, os teus lábios, os teus dedos, o teu cheiro, o teu balanço, as tuas mãos, os teus ombros, a tua cara, o teu sorriso e o teu querer.

 

Ausentei-me de mim na tua cama e tu, enquanto mar, percorreste-me as minhas veias, o meu sangue foram lágrimas secas que só choraram por tanto te querer.

 

Encontrei-me no velório que celebrei, quando mais vontade não tinha, que voar para além do ultimo fio de mar que vislumbro.

dias lentos

dias lentos com tanta gente e ninguém,  

de tantas vozes sábias de um ruído que é silêncio,

que tudo o que eu oiço é apenas,

tumulto das chamas que fujo,

de chagas abertas na terra.  

excerto de um excerto

“… e, já nada se escapa ou invade das minhas mãos, lavo-as, sacudo-as, cerro-as, mas é unicamente quando as abro, que tudo o que lhe é necessário, não se lhe escapa ou invade, mesmo carpindo eu pelo contrário…”

Senhoras

Duas mulheres de modos diferentes trocam palavras junto à mesa onde eu estou sentado. Impossível não as ouvir. 

Uma: -  ele é assim já nem o ouço. Desenvolvi uma espécie de calo na alma, um gênero de atenção desatenta, uma desconstrução às palavras que precisa de expurgar, sou tipo um lago parado onde nada já se excita, ele moi-me como o trigo numa mó de um moinho, eu, silenciosa. 

A outra: - uma mó? Um lago? Calo na alma? A senhora já pensou num negócio para si? É que eu blá blá blá blá blá e arranjei outro. Um que não me conhece, e, damo-nos bem na cama. O resto é romance. Atire-se a ele. Esfaquei-o. Ele que vá mas é trabalhar. Mande-o prender. Ouça rock and roll muito alto e pinte o cabelo com madeixas caju. A senhora é tão bonita. 

Folhas perenes

"... já não tenho ombros fortes e ingênuos como os que conheceste. Perdi toda a virgindade que existe. Perdi a inocência de crer, que todas as árvores sombreiam da mesma forma. Agora sou como as folhas perenes que voltam como os pássaros que partem ..."

Escrevo

não sou assim como escrevo;

nem escrevo para parecer,

escrevo tão só e somente,

o que não sou e ouso ser. 

 

não escrevo para dizer,

o que a coragem detém,

posso dizer olhos nos olhos,

não escrevo para ninguém.

 

então porque escrevo eu,

fantasia e liberdade,

se o mundo que eu habito,

é mentira de verdade.

 

escrevo para me acompanhar,

à falta de companhia,

escolho muito mais ser só,

que vendido á hipocrisia.

 

como nevoeiro

Sinto, rebuscado, as forças das tuas mãos e o mar,

a distância deste hemisfério de mim,

à tarde, sei, que quando me sentar na areia a ver cair o sol,

continuarás do outro lado de mim,

e os meus dedos engrossarão agoniados comigo,

escreverei o teu nome na areia para a maré apagar,

recomeçarei a noite como nevoeiro.

uma noite, uma janela, as estrelas e o vento

“… uma volta depois de outra. Estou farto de não dormir. Sinto a noite agitada para além de mim. Sinto-a no céu que espreito por uma nesga de janela que deixei para ver o festim. As nuvens escorregam rapidamente, entre as estrelas e os laivos de luar e céu. Imaculada esta noite. Não fosse o meu cansaço de espertina e dançaria. Do mal o menos, penso eu. Podia não dormir nem estar acordado, assim do pior escolhi o melhor, estou acordado por uma nesga de janela que deixei para seguir a noite. Bebo água. Como uma maçã. Hesito em cuidar do coração e penso, não vou acender um cigarro. Depois penso, não vou adormecer, vou escrever um conto. E comecei.

 

Era uma vez uma noite, uma janela, as estrelas e o vento. O vento e as estrelas vieram de noite espreitar à janela e viram-me sossegadamente a dormir. Decidiram entrar e por ali ficaram sentados no chão do meu quarto à espera que a manhã se juntasse a eles e trouxesse o despertar, com que me acordariam em celebração, o tempo, o vento, as estrelas, a janela e a manhã que me acorda todas as manhãs.

 

Só mais tarde soube que tinham por ali passado a noite, disse-me a janela, onde olho todos os dias, o dia de manhã …”

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