Preparo o barco da ilusão para me lançar na minha viagem. Sem astrolábio ou carta de marear, sem saber dos ventos ou das estrelas desenhadas no céu, sem conhecimento das marés ou sequer da sorte.
Não conheço nem o destino e, a avaliar pelo que sei do azar, do vento, das estrelas, da carta de marear que não tenho, ou do astrolábio, nenhum deles seria mais audaz do que a ilusão que detenho, e o sonho que parte de mim, nesta viagem que inicio sem medo, fé, ou conhecimento.
Assim foram todos estes dias que vivi até hoje. Dias semeados às semanas, regados de meses a fio de soalheiro, e chuva de anos e sobrevivência. Chegou a hora em que a morte e a vida já não se importam mais com o desamor.
Agora, somente resta e basta o quanto baste em suficiência para ser definitivamente caminhante de mim mesmo, sem sentir a solidão de me ter somente a mim enquanto navegante, e sentir o mar na face, as estrelas no peito, os vento no desejo, e a ilusão no sorriso e no pranto.
Sem medo. Sem medos. Sem coisa nenhuma, porque nada há para haver, para além da existência e ressurreição em cada manhã.
" ... Sobravam apenas os dias já que as noites saltavam insensatas e desadormecidas, restava apenas uma réstia de vida como os dias que sobravam e uma certeza de morte como as noites acordadas de sono.
Faltavam amigos como o que faltava de dia, noite, vida e morte.
Faltava-me eu.
Tudo regressou sem que eu me apercebesse que tudo me estava a ser devolvido.
Fiz pouco. Muito pouco para além de deixar que fizessem por mim: - dia, noite, vida e amor -
Deixei que me matassem a morte e me abraçassem de vida.
Fiz pouco, mas deixei que vocês fizessem muito, deixei que vocês fizessem tudo.
Foi noutro século, noutro milênio e tem dias (todos os dias), em que preciso de me lembrar para me desentristecer.
Inocência desfraldada como uma barca na maré, Creio num peito que não o meu, Num exercício cego de me dar, Acreditando no vento que sopra sem aviso, No sentir descompassado,sério e louco, Deste meu peito turvado de consciência ausente, Porque o amor não sente lúcida a razão, Porque o amor vive somente do fogo desfraldado do vento e das marés.
É como um jogo, querer viver em pleno a cada instante que a morte se abeira. Com a idade, o valor da vida retorna ao seu valor real. Ficamos mais conscientes da dádiva que foi o desperdício do tempo miseravelmente gasto. Das noites desgraçadamente consumidas. Dos invernos desaconchegados e dos verões transpirados de gente, sem ninguém que fosse gente, sem pessoas que fossem alguém.
Com o tempo desgastado e sem regresso, cada dia é menos um, e os cumprimentos habituais sob a forma de um: - “ está tudo bem” ou “é mais um dia”- sangram num: - “é o que faço por ser” e analogamente “é menos um dia” - e, é esta a aproximação à morte que potencia a vida, agora num corpo encarcerado de uma alma mais serena e de uma vitalidade acercada de património vigente e ousadia desvanecida.
As mágoas já não são mágoas, passam a ser tesouros divididos com quem nos serões, escolhemos para nos acompanhar, nas escolhas de quem nos acompanha.
Para além de todos os sintomas não creio na esperança como um local recôndito e obstinado.
Creio na mudança do pensamento. Creio na mudança como solução dos sintomas que induzo, altero e transformo na reflexão dos meus sonhos.
Tantas tardes o mesmo caminho levou-me aos mesmo sítios com sentires tão diferentes.
Entendo que não é o caminho, não é o sítio. É somente a transformação reflexiva de querer transformar a própria esperança no mar que me invade, perturba, cresce e salva.
Que o medo aplane o medo. Que destrua o medo projectado nele mesmo. Medo para além de medo não existe. O medo é a antecipação dele próprio, se não, não seria medo, seria coragem, coragem de enfrentar o medo de ter medo.
O medo e o tempo! Não se sabe muito bem o que são os dois, o tempo e o medo. O medo e o tempo não têm existência que se meça ou realidade que se sinta. São transformacionais e não têm direcção, apenas têm como fim, antecipar.
Antecipar o tempo. Antecipar o medo. Ambos enquanto reais são acção. São ser. São construção. Ambos, enquanto não o são, são meras projecçoes de temor e de ausência, da decisão de saber mais fundo o desconhecido sentir, numa vã tentativa de adivinhação da vida.
Já não existe mais mundo ou pessoas por dilacerar o que sinto. Já não há hipérboles ou figura de estilo que se afeiçoem ao pranto de felicidade que choro. Não recordo este choro de felicidade, este sorriso choroso que quero dividir. O meu corpo não reconhece estas lágrimas dessalinizadas, o sabor que o teu cheiro verte enfeitando a minha pele de luz.
Já não recordo, lembro ou conheço, este baloiço onde feliz me embalo e este céu que alcanço livre, de cada vez que ensanguentado me descubro imperfeito. Agradeço a evolutiva dádiva de recuperar, mudar, fazer. Agradeço a descoberta de ser. Agradeço a compreensão de me saber um homem pecador e convertido, um homem de caminhos mais abrangentes do que afunilados.
Inimigo da perfeição narcísica, rogo por manter a paz da imperfeição, a caminho da essência de ser menos imperfeito e longe da perfeição.