" ... e na confusão de não ser de acordo com a tua opinião começa o impiedoso ataque.
Antes fora o convencimento. Antes não fora o entendimento. Sobram os olhos cheios de nada e o silêncio de uma boca cerrada pela raiva da razão. O andar é outro e a razão não é nunca o singular dela própria.
As mãos agora gélidas já não são o plural do sonho. Tudo volta a ser igual. Tudo será verdadeiramente diferente.
Sou acrescentado a cada dia. Acumulado. Nada se me retira quando feliz fui, quando adormeci sem esperar pelo sono. Nada é, nada será nunca igual.
Hoje agarrei a mão do meu amigo íntimo e fui conversar para o sopé da serra que guarda a minha terra, do outro lado do mar.
Falei-lhe de saudade, de encantamento, de desilusão, de severidade, de sonho, de poesia, do luar, de nevoeiro, de compromisso, de caminho, de amor e de tantas coisas que queria deixar sair de mim há dias e dias, sem que o conseguisse.
Ouviu-me e não disse nada.
Acarinhou o certo e o errado, ambos com a mesma humanidade. Não riu, não chorou, não deixou que nada nos incomodasse no silêncio das palavras, no sentir cúmplice de bem querer.
Apenas olhamos imóveis a montanha enorme vista na perspectiva do sopé, e ambos, eu e o meu amigo íntimo, adequamos a nossa pequenez à nossa existência.
Nenhum de nós sabe nada a não ser existir. O meu amigo vê pelos meus olhos, sente pelo meu peito, caminha pelos meus pés, toca pelas minhas mãos, sente no meu sentir.
Como pode o meu amigo íntimo afastar-se de mim tantas vezes, se o meu amigo íntimo sou eu.
A vida, tal como nós, também não sabe o dia de amanhã.
Se deus não existe, e o homem não decide, sobra-me crer no universo e na força decisiva e decisória da natureza.
Se não vejamos:
A força do vento, a chuva, as marés, a força do mar, a lua, os vulcões, os terramotos e maremotos, as doenças e a saúde, a morte e a vida enquanto nascimento, é sob a forma da natureza das coisas que se expressa, mais do que sob a força humana, e é decidida pela essência natural do mundo, e no que os homens têm como prioritário.
Cuidamos da natureza com descuido, logo não podemos esperar cuidado dela para connosco.
A impotência da vida e o equilíbrio está na nossa natureza e, na força e consciêncialização da transformação.
A decência de eu ser, a uniformidade de ser eu, neste mar acrescentado de terra que é o meu país. O meu país é pouca gente, somos dois ou três a quem eu bato à porta de madrugada, quando a madrugada me sangra no pensamento, num rodopio escanzelado e cruel que quase me faz descrer na minha decência de eu ser, na uniformidade de ser eu.
Este meu país de mar acrescentado de terra, onde me falta terra e sobra mar, onde o mar se ajunta de terra e eu, me reconforto em dois ou três peitos feitos de mar, amizade e amor. Os meus amigos lembro-os muito. Vejo-os menos do que as vezes que sangram as madrugadas em mim. A sua porta sempre aberta espera-me entreaberta, é este o país onde vivo, um país pequeno de mar, acrescentado de terra.
As minhas palavras tendem à normalidade para me sentir menos só, o entendimento do que sinto é invulgar e, muitos dias os há, em que sozinho me sinto menos só.
Rasga-me o medo de não sentir medo amparado pela coerência do que sou.
O que sou, creio e sinto é a minha essência existencial.
A verdade do que intuo acaba sempre por me arrebatar, pacificar e devolver-me ao que acredito, num ajuste permanente à verdade da minha alma. Ao meu eu existencial.
Regressado do monte descanso junto à fonte rodeada de musgo. Oiço o cantarolar da água que geme no seu caminho, entre as silvas e o aroma forte do fim de tarde. As minhas mãos tentam segurar a água que não se deixa agarrar. Há anos que tento segurar a água com as mãos e, não se desvanece em mim, a esperança de o conseguir, embora até hoje nunca o tenha conseguido.
Penso: - como me pareço com água –
Como me pareço com o fim de tarde e o cheiro forte do mato rubro que grassa na encosta.
Como me pareço com a água calma e temperada e o dilúvio alterado.
Sou como a água que geme entre o fim de tarde e o anoitecer,
que ainda vem a mais de uma hora do meu peito,
refresco-me por aqui e sou feliz,
tentando segurar a água entre as mãos que sei não conseguir agarrar,
Eu sou um homem das artes e de alguma conseguida espiritualidade.
Tenho nas artes o recato introspectivo do espírito. Na minha espiritualidade existe apenas a entrega da minha espiritualidade.
A minha arte não tem a arte da espiritualidade. A espiritualidade não tem a minha arte.
Na arte que escrevo, leio, oiço e vejo, sinto-me descomposto, desorganizado, desconstruído, desnudado e espiritual.
Este sentir tem os mesmos anos que tem a minha idade e o meu mundo.
Continua a não ser comum e fácil a sua partilha, aceitação e entendimento. É um mundo desabitado de gente, farto no sentir, solitário e desumanizado, tal é a humanidade incompreensível que detém.
Baixo os braços ao desencalce que consegue. É meu. Só isso. Simples para mim. Inalcansável na maioria das vezes para os outros.
Gosto dele, mesmo reconhecendo a sua dor feita de momentos felizes de pedaços.