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Cardilium

Cardilium

Metamorfose da experimentação

" ... e na confusão de não ser de acordo com a tua opinião começa o impiedoso ataque.

 

Antes fora o convencimento. Antes não fora o entendimento. Sobram os olhos cheios de nada e o silêncio de uma boca cerrada pela raiva da razão. O andar é outro e a razão não é nunca o singular dela própria.

 

As mãos agora gélidas já não são o plural do sonho. Tudo volta a ser igual. Tudo será verdadeiramente diferente.

 

Sou acrescentado a cada dia. Acumulado. Nada se me retira quando feliz fui, quando adormeci sem esperar pelo sono. Nada é, nada será nunca igual.

 

É a metamorfose da experimentação..."

O meu amigo íntimo

Hoje agarrei a mão do meu amigo íntimo e fui conversar para o sopé da serra que guarda a minha terra, do outro lado do mar.

Falei-lhe de saudade, de encantamento, de desilusão, de severidade, de sonho, de poesia, do luar, de nevoeiro, de compromisso, de caminho, de amor e de tantas coisas que queria deixar sair de mim há dias e dias, sem que o conseguisse.

Ouviu-me e não disse nada.

Acarinhou o certo e o errado, ambos com a mesma humanidade. Não riu, não chorou, não deixou que nada nos incomodasse no silêncio das palavras, no sentir cúmplice de bem querer.

Apenas olhamos imóveis a montanha enorme vista na perspectiva do sopé, e ambos, eu e o meu amigo íntimo, adequamos a nossa pequenez à nossa existência.

Nenhum de nós sabe nada a não ser existir. O meu amigo vê pelos meus olhos, sente pelo meu peito, caminha pelos meus pés, toca pelas minhas mãos, sente no meu sentir.

Como pode o meu amigo íntimo afastar-se de mim tantas vezes, se o meu amigo íntimo sou eu. 

 

naturalmente

A vida, tal como nós, também não sabe o dia de amanhã.

Se deus não existe, e o homem não decide, sobra-me crer no universo e na força decisiva e decisória da natureza.

 

Se não vejamos:


A força do vento, a chuva, as marés, a força do mar, a lua, os vulcões, os terramotos e maremotos, as doenças e a saúde, a morte e a vida enquanto nascimento, é sob a forma da natureza das coisas que se expressa, mais do que sob a força humana, e é decidida pela essência natural do mundo, e no que os homens têm como prioritário.

Cuidamos da natureza com descuido, logo não podemos esperar cuidado dela para connosco.

A impotência da vida e o equilíbrio está na nossa natureza e, na força e consciêncialização da transformação.

Para o bem e para o mal.

 

 

voz

Primeiro foi a voz,

Depois foi o olhar,

Mais tarde fomos nós,

A noite de te abraçar,

Depois foi o beijo,

As mãos e o desejo,

Adormecer sorrindo,

Acordar no teu peito,

 

Agora é todo o amor,

Saudade que faz parte,

A dança de querer,

Palavras para viver,

 

Caminho por percorrer,

Almas em fusão,

Primeiro foi o a voz,

Agora é a paixão,

E se também há dor,

É porque nos pertence,

É nosso este amor,

De mãos dadas em frente.

A decência de eu ser

A decência de eu ser, a uniformidade de ser eu, neste mar acrescentado de terra que é o meu país. O meu país é pouca gente, somos dois ou três a quem eu bato à porta de madrugada, quando a madrugada me sangra no pensamento, num rodopio escanzelado e cruel que quase me faz descrer na minha decência de eu ser, na uniformidade de ser eu.

 

Este meu país de mar acrescentado de terra, onde me falta terra e sobra mar, onde o mar se ajunta de terra e eu, me reconforto em dois ou três peitos feitos de mar, amizade e amor. Os meus amigos lembro-os muito. Vejo-os menos do que as vezes que sangram as madrugadas em mim. A sua porta sempre aberta espera-me entreaberta, é este o país onde vivo, um país pequeno de mar, acrescentado de terra.

 

As minhas palavras tendem à normalidade para me sentir menos só, o entendimento do que sinto é invulgar e, muitos dias os há, em que sozinho me sinto menos só.

suada saudade

O teu cheiro, O teu olhar,
As tuas mãos,
São as minhas ruas,
A cidade e o porto de abrigo onde atraco,

 

O teu peito são as noites onde embalo todo o meu querer, o meu amor entregue ao teu,

 

Saudade suada sentida presença, sem ausência que a saudade não se mata somente de presença.

 

É maior a paz que o sufoco agravado

Não sei das palavras que se enegreceram na noite,

Nem o sorriso da manhã,

Nem a vontade do dia,

Nem a poesia,

Nem tudo só … - eu já podia -.

 

Já não sei onde fica o teu corpo,

Se na ausência,

Se na minha loucura feita de doçura,

Se no alívio,

Se no fogo ou na tortura.

 

Já não sei se o que sinto é sentir,

Se conhecer o mundo velho,

E as esquinas desistidas,

O caminho pesaroso e melindrado,

É maior a paz que o sufoco agravado.

terra infertil

Rasga-me o medo de não sentir medo amparado pela coerência do que sou.

 

O que sou, creio e sinto é a minha essência existencial.

 

A verdade do que intuo acaba sempre por me arrebatar, pacificar e devolver-me ao que acredito, num ajuste permanente à verdade da minha alma. Ao meu eu existencial.

 

Tal qual as flores rasgam a terra infertil.

gosto deste entretém feito de água e de mim

Regressado do monte descanso junto à fonte rodeada de musgo. Oiço o cantarolar da água que geme no seu caminho, entre as silvas e o aroma forte do fim de tarde. As minhas mãos tentam segurar a água que não se deixa agarrar. Há anos que tento segurar a água com as mãos e, não se desvanece em mim, a esperança de o conseguir, embora até hoje nunca o tenha conseguido.

 

Penso: - como me pareço com água –

 

Como me pareço com o fim de tarde e o cheiro forte do mato rubro que grassa na encosta.

Como me pareço com a água calma e temperada e o dilúvio alterado.

 

Sou como a água que geme entre o fim de tarde e o anoitecer,

que ainda vem a mais de uma hora do meu peito,

refresco-me por aqui e sou feliz,

tentando segurar a água entre as mãos que sei não conseguir agarrar,

gosto deste entretém feito de água e de mim.

A arte da espiritualidade

Eu sou um homem das artes e de alguma conseguida espiritualidade.

 

Tenho nas artes o recato introspectivo do espírito. Na minha espiritualidade existe apenas a entrega da minha espiritualidade.

 

A minha arte não tem a arte da espiritualidade. A espiritualidade não tem a minha arte.

 

Na arte que escrevo, leio, oiço e vejo, sinto-me descomposto, desorganizado, desconstruído, desnudado e espiritual.

 

Este sentir tem os mesmos anos que tem a minha idade e o meu mundo.

 

Continua a não ser comum e fácil a sua partilha, aceitação e entendimento. É um mundo desabitado de gente, farto no sentir, solitário e desumanizado, tal é a humanidade incompreensível que detém.

 

Baixo os braços ao desencalce que consegue. É meu. Só isso. Simples para mim. Inalcansável na maioria das vezes para os outros.

 

Gosto dele, mesmo reconhecendo a sua dor feita de momentos felizes de pedaços.

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