Quando as palavras se obstruem de sentimento maior só atrapalham o entendimento, Esgotam-se nos minutos de tempo que o tempo tem, As almas unem-se em silêncio quase digladiando-se na espera do primeiro momento.
Há já mais de mil madrugadas que o nevoeiro raiava dos olhos de cada um deles, Dos quatro-olhos de dois pares por vezes baços, Outras mesmo, molhados da maresia que os inundava.
Num frente a frente que não queriam que nunca o deixasse de ser o mundo sucedia-se, Sem qualquer importância para o silêncio das almas em união e metamorfose, O abraço quase dado tantas vezes foi adiado, como quase apertado.
Na ânsia da glorificação do momento cristalizaram aquele instante, Num absurdo medo que a traição à imobilidade se desvanecesse daquele amor, Em debandada, assistiram à migração das cegonhas brancas nas escarpas que adoptaram.
A espuma das rochas e o mar confundia-os e já não enxergavam, Se era o mar que batia nas rochas, se eram as rochas que inundavam o mar, Assim se sentiam num frente a frente de silêncio que o tempo não esgotava.
E já não havia razão que os escutasse ou fizesse entender aquela paz clara e duradoura, As bocas teimavam em fazer cumprir as mãos, Depois, as mãos avançaram e entrelaçaram-se.
Depois, devagar, os lábios também, e mais tarde os corpos estremeceram no abraço que esperaram em todas a mil alvas madrugadas de uma paz que pernoitou.
Pouso um copo vazio de vinho bebido sobre o medo, O medo sufoca-me as palavras como uma guilhotina dilacera o sol em angústia, Mistura-se um género de névoa com esta condição transcendente, Tortura-me um medo real e um outro inventado, Desconstruo o medo em medos, Confiro-lhes maior número e menor dimensão, O medo maior e singular transforma-se em pequenos medos plurais, O medo não é a minha verdade, os medos também são as minhas mentiras, Os medos dos medos expressar-se-ão em todos os vocábulos e anoiteceres, E em cada jorrar de sol guilhotinado.
Em cada tristeza colocarei flores como num túmulo e rezarei uma última vez, A cada saudade recordarei cada lembrança, A cada partida celebrarei cada regresso, A cada lágrima lembrarei cada sorriso desmemoriado, Em cada fragmento de solidão brindarei ao velho amigo que já não tenho, O medo é o amor e a miséria exposta em mim, O medo começa e acaba por amor, O medo subtrai o amor, O amor subtrai-se ao medo, Defumo incenso na sala, pouso um copo cheio de vinho por beber, sobre o medo.
Abunda-me uma enxurrada de palavras a mim dirigidas que detenho e purgo, palavras vãs, ocas, insensoriais, descontextualizadas, sem nexo, improprias e desajustadas.
Existe em mim uma palavra harmonizada de descendência glorificada. Nessas poucas letras cabe o muito que detenho, meia dúzia de amigos de a maiúsculo e plural, e um amor não quantificado.
A eles celebro a vida com um querer bem mais do que bem querer.
Não sou de consoadas nem de desacorçoadas datas revertidas à pobreza de ter um dia assinalado, apelando há minha sensibilidade e/ou humanidade. Salva-me o rock and roll, a poesia e a linguagem comum de quem me vê/sente, de quem eu vejo/sinto, todos os dias da minha vida.
Quero amar mais do que um dia ou, desculpar-me com lembranças e frases batidas.
Eu quero perdidamente morrer, Morrer deste sítio onde me escravizo em horário laboral.
Eu quero perdidamente morrer deste embuste social e ser um pássaro libertino e mal comportado, Eu quero perdidamente morrer desta farsa bonitinha de bem parecer.
Quero ser mais mar e pôr-me com o sol todas as tardes, quero ser mais amigo, mais vento, chuva e tempo, Quero amar mais. Chorar mais. Rir mais.
Eu quero perdidamente morrer desta miséria construída e danificada de vida, Quero muito pouco ou quase nada, que quase nada ou muito pouco, basta-me.
O carrossel da infância volta a mim em cada dia vivido, como as voltas dadas na pequenez engrandecida, como as primeiras palavras sentidas ao frio, e as primeiras sombras refrescadas de sol, o carrossel da infância não se esgota na recordação, roda no início e no final, e o amor é sempre o amor, e a musica sempre uma flor.
“ … Acordei. Adormeci mais um pouco acordado. Este estado alienado de mim próprio ao acordar prolonga-me o sonho. Provavelmente entendo agora a expressão “sonhar acordado” ou “morrer de saudade”, talvez não seja essa a verdadeira essência da expressão, talvez seja só mais uma variante do sonho, da realidade aproximada do desejo, a realidade a aproximar-se dela própria, o sonho a transformar-se em vida, ou apenas a aceitação do merecimento da felicidade.
Tenho dificuldade em perceber de que é feito o sonho dos sonhos, de entender a vida e a felicidade, o acordado e o adormecido. Este estado de paixão enlouquece-me. Este estado de saudade adequa-me ao amor que sinto. Não os quero mais e, não quero mais que acabem.
Recebo-os de braços abertos entendendo o privilégio de sentir a minha pele na minha outra pele, emprestada por outro ser que não eu. Recebo-os sentindo o meu cheiro revolto no teu cheiro adocicado. Recebo-os, sabendo que esta vida pode não ser suficiente para amar assim novamente, disponibilizo-me agradecido por este amor, por esta vida, por estar pronto para ter, por estar preparado para ser e, por te ter igualmente.
Acordo. O meu dia é tudo o que o meu dia contém. O meu dia possui-te albergada nos minutos das minhas horas. Sabe-me à tua boca na minha. Sabes-me. Respiro-te. Sinto o meu corpo fundido na tua alma, a minha alma cravada na tua, e os nossos corpos soltos na madrugada carinhosa, diabólica e selvagem, descarga do nosso amor em nós mesmos.
Adormecemos na paz que construímos, embalados pela saudade morta por momentos. Na alvorada irei voltar a “sonhar acordado” ou a “morrer de saudade”. Não me importarei com isso, desde que sonhes e vivas a saudade comigo. Amo-te. E assim o sonho e a saudade se embargaram vida adentro …”
Gosto do teu olhar espelhado no final de tarde e da clorofílica paz harmoniosa de tudo fecundar: água, terra, boca, abraço, mãos, palavras, lágrimas, sorriso e olhar.
Gosto de não sentir mundo nas tardes do meu mundo, Gosto do anoitecer brando de tudo abraçar, isento de nada precisar.
Gosto de me sentir somente apêndice da força com que beijo a tarde esperada nos teus olhos.
Devolves-me o tempo fora de tempo, O meu amor, A minha vida, O tempo recuperado, As minha mãos, O meu peito, O meu cheiro no teu, E a ultima morada dentro do tempo que elegerás para mim.