Aproximei-me lentamente. Calmo, frio e lúcido. Já antes o mar invadira o paredão, e a lua sobrava à janela. As trocas de sílabas ajustavam os nossos gostos. Líamos o mesmo autor. Ouvíamos o mesmo compositor. Mesmo sem estar nos mesmos sítios encontrávamos-nos regularmente e, olhávamos as mesmas estrelas. Falávamos dos sítios que haveríamos de visitar. Sonhávamos juntos em camas separadas.
O firmamento iluminava o nosso astral. O mundo parecia-nos parado quando nos juntávamos. Falávamos de verdades benditas misturadas com as mentiras do sonho. Os cheiros, as mãos e o olhar ligavam a nossa existência. A nossa imaterialidade era soprada pelo vento, que fazia lá fora e nos adornava.
Os vidros das nossas janelas humedeciam por estarmos quentes. Trocávamos música e poesia nos silêncios. Trocávamos quadros, pareceres e amigos. A vida semi-encantada tornou-se real, assim como real se tornou o sentir do encantamento. Esperávamos pelas trocas, horas e dias-a-fio. A música foi a companhia do nosso trajecto. Fomos conduzidos, ouvidos e escutades.
Um dia seremos uma história de verdade, com sujeito e predicado.
Chove pouco mas certinho. As lágrimas que caem do céu são vida para as entranhas da terra. Misturam as sementes. A chuva a mim também me faz bem. Faz-me pensar. Enrolado no meu sítio fico atolado de pensamentos. Penso em mim. Penso na minha infância e nas tempestades. Penso no sabor das torradas de domingo à tarde que a minha mãe preparava quando vinha da bola. Penso nos primeiros acordes que dedilhei. O amor que ganhei à música. As primeiras palavras que escrevi e os primeiros números que somei. Penso naqueles três ou quatros amigos. No meu professor da primária.
Penso na aventura que foi as minhas primeiras saídas à noite. Os meus primeiros amores. As minhas primeiras desilusões. Na raiva lenta e maligna que comecei a sentir. Na inadequação silenciosa. No medo mascarado de fortaleza. Nas minhas primeiras férias sozinhas, já não me lembram.
Hibernei.
Vivi uma mão cheia de anos, sem me lembrar, ou querer lembrar-me sequer. Recordo cheiros e sombras. Não me amei ou amei. Não me lembro de dez anos ou mais. Não me lembro de ontem ou anteontem. Sei que estive em Marraquexe, Amesterdão e Lisboa. Sei que fui à praia. Sei que tive sexo com sombras, bebi e fumei. Dormi ao relento e viajei sem dormir, caminhei adormecido. Chorei para a lua e sorri para o sol. Chorei por dentro. Fui preso e solto. Dormi num degrau. Comi o que os outros não comeram. Continuo preso à liberdade. Outras vezes estou livre na prisão. Pelo menos sinto-me. Estar é discutível, mas é meu.
Sou semente misturada com terra regada com a chuva de Maio, Sou Setembro, Sou pôr-do-sol, sou regresso, sou passado, Sou futuro, Sou mudança, Sou Pai, Sou filho, Sou Alma, Sou amigo, Sou solidão e companhia, Sou esperança, Sou o que sou, pelo que fui, Sou medo e fé, Sou desamor, Sou Amor, Sou insubordinado e respeitoso, Sou recordação, sou lembrança, Sou duro e meigo, Sou uma besta e bestial, Sou poesia à noite e prosa de dia, Sou acima de tudo Ser.
No maremoto dei à costa e salvei-me, O mar devolveu-me à terra, Não deixei de saber nadar e aprendi a andar com a chuva.
A fé é o momento anterior às respostas que o tempo tem.
A fé não me parece, um exercício de promessa de troca de um desejo, por uma dádiva.
A fé se não for cega é uma visão antecipada do que se quer ou deseja, aprazada no tempo, com cobrança à posteriori.
A fé é a confiança de que o caminho escolhido é o caminho conquistado. Posso no final do caminho perceber, que no princípio, aquilo a que eu chamei fé, não foi mais do que ambição.
Percebo, chegado ao local, que a fé foi a soma do que eu precisei, com a semente que arremessei á terra. A fé foi, a colheita do que semeei.
A fé é mutável e pode ajustar-se ao trilho.
A fé é o momento imediatamente precedente, às respostas que a vida tem.