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Cardilium

Cardilium

Escassa probabilidade de ser livre

Escassa probabilidade de ser livre,

Menina giesta a florir,

Mulher madrugada descalça solta ao vento,

Neste desabraçado sentir,

Da probabilidade livre de ser emoção.

 

Experimento o perfume da tua pele,

Num abraço de uma noite perfumada,

Vi-te chorosa esperança, despedir-se,

E as nossas bocas quase foram apenas uma,

Na livre probabilidade de ser livre.

 

Se nas minhas palavras nem existes

Nunca vou esquecer o teu olhar de versos e dor,

Os teus olhos prontos de partida,

Pressentindo a impossibilidade de ficar.

 

Viverás em mim definitivamente,

Como se não tivesse existido fim,

Mergulhado no meu peito secretamente.

 

O teu nome rebolou na ponte sobre o rio,

Vinculada presença incapaz,

Ausência crassa permanente.

 

E a quem falo eu do que sinto?

Nos meus dias disfarçados de acenos,

Se nas minhas palavras nem existes.

Não vivo como escrevo

Não vivo como escrevo,

Não escrevo como vivo,

Para viver como escrevo,

Teria que ter asas,

Sem horário para voar,

 

Tenho amarras que só se soltam,

Nas madrugadas que invento,

E neste viver ao contrário reside em mim somente,

O sonho conseguido,

Nos fragmentos de tempo casto em mim.

Um dia seremos uma história de verdade, com sujeito e predicado.

Aproximei-me lentamente. Calmo, frio e lúcido. Já antes o mar invadira o paredão, e a lua sobrava à janela. As trocas de sílabas ajustavam os nossos gostos. Líamos o mesmo autor. Ouvíamos o mesmo compositor. Mesmo sem estar nos mesmos sítios encontrávamos-nos regularmente e, olhávamos as mesmas estrelas. Falávamos dos sítios que haveríamos de visitar. Sonhávamos juntos em camas separadas.

 

O firmamento iluminava o nosso astral. O mundo parecia-nos parado quando nos juntávamos. Falávamos de verdades benditas misturadas com as mentiras do sonho. Os cheiros, as mãos e o olhar ligavam a nossa existência. A nossa imaterialidade era soprada pelo vento, que fazia lá fora e nos adornava.

 

Os vidros das nossas janelas humedeciam por estarmos quentes. Trocávamos música e poesia nos silêncios. Trocávamos quadros, pareceres e amigos. A vida semi-encantada tornou-se real, assim como real se tornou o sentir do encantamento. Esperávamos pelas trocas, horas e dias-a-fio. A música foi a companhia do nosso trajecto. Fomos conduzidos, ouvidos e escutades.

 

Um dia seremos uma história de verdade, com sujeito e predicado.

Como que acabado de acordar

Quando romper o outono,

Desgrenhado,

Como que acabado de acordar,

Sonolento,

As flores outrora floridas secarão,

Tal como as lágrimas acabam por secar no meu rosto.

 

Todos os rios chorarão da água,

Secada dos meus olhos,

Todas as flores e a lua,

E todas as nascentes,

Saberão que a água que corre desfeita no seu leito,

Levará em si toda a minha solidão depositada.

Palavras de um personagem de: - “Palavras por ver o sol um dia XXIV”

Chove pouco mas certinho. As lágrimas que caem do céu são vida para as entranhas da terra. Misturam as sementes. A chuva a mim também me faz bem. Faz-me pensar. Enrolado no meu sítio fico atolado de pensamentos. Penso em mim. Penso na minha infância e nas tempestades. Penso no sabor das torradas de domingo à tarde que a minha mãe preparava quando vinha da bola. Penso nos primeiros acordes que dedilhei. O amor que ganhei à música. As primeiras palavras que escrevi e os primeiros números que somei. Penso naqueles três ou quatros amigos. No meu professor da primária.

Penso na aventura que foi as minhas primeiras saídas à noite. Os meus primeiros amores. As minhas primeiras desilusões. Na raiva lenta e maligna que comecei a sentir. Na inadequação silenciosa. No medo mascarado de fortaleza. Nas minhas primeiras férias sozinhas, já não me lembram.

Hibernei.

Vivi uma mão cheia de anos, sem me lembrar, ou querer lembrar-me sequer. Recordo cheiros e sombras. Não me amei ou amei. Não me lembro de dez anos ou mais. Não me lembro de ontem ou anteontem. Sei que estive em Marraquexe, Amesterdão e Lisboa. Sei que fui à praia. Sei que tive sexo com sombras, bebi e fumei. Dormi ao relento e viajei sem dormir, caminhei adormecido. Chorei para a lua e sorri para o sol. Chorei por dentro. Fui preso e solto. Dormi num degrau. Comi o que os outros não comeram. Continuo preso à liberdade. Outras vezes estou livre na prisão. Pelo menos sinto-me. Estar é discutível, mas é meu.

Sou semente misturada com terra regada com a chuva de Maio,
Sou Setembro,
Sou pôr-do-sol, sou regresso, sou passado,
Sou futuro,
Sou mudança,
Sou Pai,
Sou filho,
Sou Alma,
Sou amigo,
Sou solidão e companhia,
Sou esperança,
Sou o que sou, pelo que fui,
Sou medo e fé,
Sou desamor,
Sou Amor,
Sou insubordinado e respeitoso,
Sou recordação, sou lembrança,
Sou duro e meigo,
Sou uma besta e bestial,
Sou poesia à noite e prosa de dia,
Sou acima de tudo Ser.

No maremoto dei à costa e salvei-me,
O mar devolveu-me à terra,
Não deixei de saber nadar e aprendi a andar com a chuva.

 

 

A fé

A fé é o momento anterior às respostas que o tempo tem.

A fé não me parece, um exercício de promessa de troca de um desejo, por uma dádiva.

A fé se não for cega é uma visão antecipada do que se quer ou deseja, aprazada no tempo, com cobrança à posteriori.

A fé é a confiança de que o caminho escolhido é o caminho conquistado. Posso no final do caminho perceber, que no princípio, aquilo a que eu chamei fé, não foi mais do que ambição.

Percebo, chegado ao local, que a fé foi a soma do que eu precisei, com a semente que arremessei á terra. A fé foi, a colheita do que semeei.

A fé é mutável e pode ajustar-se ao trilho.

A fé é o momento imediatamente precedente, às respostas que a vida tem.

alegoria antes de ser conto

Quero viajar devagar,

Muito devagar,

Como se de um poema as paisagens se cuidassem,

Como se na maresia as madrugadas se adormecessem,

Como se numa pedra no mar eu habitasse,

E assistisse às noites,

De breu e vento,

E às manhãs claras,

Como em todas as partidas antes de viajar.

 

Não preciso de viajar para um sítio distante,

Basta-me ser viajante.

 

Preciso somente de navegar nos meus sonhos,

Na alegoria antes de ser conto.

A distancia não acaba com o amor

A distancia não acaba com o amor, magoa-o,

Mas não o mata,

Fere-o apenas pela impossibilidade da vontade,

Pela possibilidade do desejo se adiar,

Ou nenhuma das coisas.

 

 

Talvez nenhuma das coisas consiga acabar com amor,

Com certeza que nenhuma delas o conseguirá,

O amor é um estado permanente e tudo o sustenta,

Distancia, mágoa, saudade, desejo, tempo, ausência,

Tudo o suporta e ampara, como a lua e o mar.