… Depois, a terra ficou vermelha e o mar rubro, rubro de um vermelho tão encarnado que deixou de se ver o sol. O céu estonteou e os bandos de pássaros ficaram desnorteados. Sem norte. Sem rumo.
Na eira escondida da encosta a terra como que sangrava pedindo chuva que a não escutava. Tinham decidido as nuvens punir aquele pedaço de gente, de um mal qualquer que não adivinhavam. Depois da tempestade de há três noites anteriores que o inferno tinha tomada a aldeia. Somente as crianças não sentiam a mudança, somente as crianças continuavam a sua vida sem alguma alteração. O padre defendia ser castigo divino, o coveiro defendia que os mortos tinham desaparecido, e as crianças não entendiam o que todos desentendiam, afinal tudo estava igual para eles, tudo estava diferente para todos.
O céu carregou-se de chuva e as nuvens inundaram a eira, o adro, a rua de cima e a rua de baixo. Choveu mais dias do que noites. O cansaço adormeceu a aldeia. Quando o sol empurrou as janelas de todas as casas e todas as pessoas regressaram à aldeia, o mar voltou a ser celeste, o céu voltou a albergar os pássaros e, na eira, a terra já não sangrava.
Aconteceram duas existências numa vida. Foi um delírio azul e colectivo, duas existências na mesma vida…”
Removo da terra os odores que as margaridas lilases vertem junto ao mar. Odores que deixo na cama onde me rebolo e construo nesta simbiose de ser.
Na madrugada quente a lua arredonda-se e ilumina-me os passos. Não existe outro sentir que não este o que sinto. Não existem mais nenhumas palavras nem outra forma de adormecer, ou outra maneira de acordar. O mar todo de prata enche a lua toda de luz, e toda a luz e toda a prata não são suficientes para me entristecer nestes dias ...em que me alinho.
Junto-me com os deuses a estes instantes oferecidos de tanto, a todos estes instantes carregados de nada. O nada e o tudo, o tanto e a lua, o mar e a tua boca soltam beijos, palavras e sorrisos que me iluminam como o que se me dispõe da natureza.
Não encontro nem o destino nem a glória de o saber.
E na revolta dos sentidos embriaguei-me de lucidez. Refleti sobre os azuis. Sobre os diferentes azuis, onde o mar abraçado ao céu esperou pela lua. Quando me invadiu o ultimo luar que rasgou o nevoeiro, entendi o tamanho da minha existência e a dimensão menor do que sou construído.