Existem momentos fundadores da nossa vida e as fundações no nosso ser.
Existem os campos da mente onde lançámos sementes, lavrámos, cuidámos e colhemos.
São geralmente nos momentos em que não exibimos, que detectamos e verificamos a sua importância na nossa alma.
Ao invés, enchemo-nos de intelectualidade na procura de paz de espirito, deitada fora anteriormente na complicação da simplicidade do sentir.
Existem os momentos fundadores da nossa existencialidade, património nosso, que necessita de reflexão e entendimento, e não de procura exterior ao nosso eu.
As respostas permanecem sempre nas sementes que deitámos à terra.
Sobraram duas cores da velha casa abandonada. A cor da ruína que os anos emprestaram e o azul Alentejo das portas, das janelas, e da faixa pela cintura da casa, que teimam sobreviver esperançosas à ruína.
Ainda os tempos se encharcavam da ceifa, e as mulheres murmuravam canções que tornavam os seus dias menos ausentes dos filhos, e sufocava a dor da desigualdade retida nas suas gargantas, já as ruínas edificavam as suas emoções.
Ao longe, o sol escaldava o trigo e dava-lhe parecenças com o oiro.
As ruínas do tempo envelhecido e o azul Alentejo resistente decidiram misturar-se com a esperança e a liberdade, enternecidamente cantada pelos poetas, e por Baleizão.
No largo, a água cantarolava na fonte e, fresca, escorria em pranto na solidão das palavras amarrotadas pela imposição do silêncio.
Depois, houve Abril.
Depois, Abril partiu.
Depois ainda, Abril já não tem Abril dentro, e Maio está amordaçado.
Mais de oitenta anos passaram-se num instante: disse-me.
Os dias continuam a ser uma aventura. Os inteligentes raciocínios aliados a uma vida de experiência, de dor suportada, de dor ultrapassada, mantêm-se nos olhos azuis de céu e esperança.
Hoje, pela tarde já posta, abracei o meu pai.
Faz anos. Fez anos.
Fará sempre anos sem idade acumulada. Celebrarei sempre a sua existência como continuação de mim próprio. Festejarei sempre o seu pedaço em mim. Saudarei sempre a sua essência.
Hoje, de lágrimas já enxutas, a vida recompensou-o da liberdade do sossego e da paz em que sempre acreditou.
Na isenção do certo ou errado, da verdade ou da mentira, do pecado ou da salvação, apenas me preocupava sarar as feridas dos joelhos e que o peixe do rio me continuasse a reconhecer. Con...fesso que também falei com os peixes como o confessor franciscano. Uns de um rio, outros de um mar. Nas encostas da felicidade esculpi para sempre o meu desígnio. E nada havia a confessar, tudo era límpido e inocente. Foi o conceito de culpa, de remorso e os seus afluentes, que me castraram a inocência da liberdade, mais os anos a eles somados. A culpabilização dos outros na minha vida, as angustias e as ansiedades, deram-me o entendimento sofrido e já não virgem, do quanto eu era libertino e não livre. Dói, esta perca analfabeta de consciência. Então reconheci o meu pecado e o teu perdão. E fi-lo com palavras pronunciadas e suaves. E fi-lo com rancor. E fi-lo com desilusão. E fi-lo com culpa e solidão. E a cada maré o mar ensinou-me que cresce na foz e acaba num outro mar. E a madrugada ensinou-me que começa e acaba com a noite. Todos eles me confessaram o ensinamento que precisei. O sol queimou-me a pele e a chuva enxaguou-me o sal dos olhos. E eu? Eu fiquei irresistente quando soltei o meu corpo e o deixei ir, e o vento escutou o meu poema … confissão.
Confesso sem deus a quem confessar, E alvitro feito oração, A tempestade, a bonança, o pecado, Deus e o pagão, De não saber quem sou, Onde estou, Intenção.
Confesso sem deus a quem confessar, A luz e a escuridão, Bocados de noite, Restos de ti, Pedaços, fragmentos, metamorfoses, E a bola que arde é neve, E a neve uma fogueira, E a boca? As mãos? Os beijos? Os corpos? Não são substância de confissão.
Confesso sem deus a quem confessar, Às palavras eternas, Aos amigos, A esta orgânica forma de sentir, A este renascimento.