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Cardilium

Cardilium

Poema dedicado a uma mulher Açoriana de Mosteiros / São Miguel

Poema dedicado a uma mulher Açoriana de Mosteiros / São Miguel

 

E se outrora o mar soprava segredos e laivos de emoções,

Hoje as marés anunciam enxurradas,

Nenhuma delas me devolve os meus filhos perdidos,

Nesta faina que só teve hora de partida.

Aqui me encosto e rezo para que voltem mesmo mortos,

Nesta abençoada forma de me encontrar com eles vivos,

Três filhos que a maré não traz,

Filhos que deus quis para ele,

Retirados a mim,

Aqui sou,

Aqui estou,

Aqui me encontro todos os dias que me faltam para sofrer.

Em cada pedaço meu subtraio mil vontades!...

Em cada pedaço meu subtraio mil vontades angustiadas,

Mil felicidades sangradas de prantos.

 

Adiciono tempo e oportunidades,

E a cada lamentação socorro-me de dores,

Que senti alucinado,

Em madrugadas ébrias,

A cada pôr-do-sol demente,

Vi-me alheado na descoberta desta abstracção.

 

Depois,

Deixei-me assentar,

Docemente no embalo da devolução à vida,

E sóbrio aceito a miséria,

Num celebrado delírio,

Desta fascinante descoberta.

 

Em cada pedaço meu subtraio mil vontades!...

Reclamação ao desencantamento

Cabeça de plebeia,

Barriga de rainha,

Assim reclama quem a fome nunca albergou,

E em tudo e em nada,

Se descontenta,

Com o mesmo agrado,

Do desagrado de quem é sabedor do frio que crassa a alma,

E o vento que fere o espírito.

 

Assim reclama,

Na mais profunda existência do próprio ser,

O desconforto de não encontrar,

O que se exclui “num eu exterior”,

No desembargo alegórico,

De não encontrar desnudado,

“Um eu interior”,

Somente de paz, mais do que de discórdia.

 

Assim se reclama o desencantamento, de não se achar, o que se detém.

Experimento num dia só

Experimento num dia só,
Saudade e recordação,
Ser eu mesmo,
Ser ausente,
Ansiedade,
Emoção.

Experimento num dia só,
Ser sereno,
Ser demente,
Ser rio que corre para a foz,
Ser paz,
E guerra vertendo.

Experimento num dia só,
Parcelas de mil minutos,
Em que sou o que me abrange,
E me exclui o que e me abarca,
Sou céu carregado de flores,
E terra pisada de dores.

Cristal da alma

A minha alma é de cristal,

Estilhaça,

É sensível.

Mas não é frágil.

É resistente à vida que se opõe,

Quebra-se fácil,

No abraço que a dispõe.

 

A minha alma,

Não tem gémea,

Tem natureza,

Sorriso,

Escolha,

E itinerário.

 

E, assim sendo:

Tem livre arbítrio,

No desacerto gémeo das almas pungentes da vida.

Traço as palavras

Deste traço as palavras,

Falam,

Riem,

Choram,

Adiantam-se aos pensamentos.

 

Destas letras as palavras,

Soluçam,

Temem,

Embriagam-se,

Atrasam-se nas horas.

 

Destas silabas as palavras,

Provocam,

Acontecem,

Desmentem,

Ajustam-se ao luar da vida.

Negra alma

alma negra,

despida,

branca,

ampla.

 

roupa escura,

apertada,

de alma clara.

 

as roupas não trajam a alma,

a alma veste-se de nu,

a alma despe-se em mim …

 

desnuda-me.

Primavera perturbada

Nesta primavera perturbada,

Nascida do nevoeiro,

Aquecida na tarde inquieta,

Espero o fresco do jazz pela noite trazido.

As papoilas rubras misturadas de delírio,

Pertencem ao meu imaginário,

Tomam os meus cheiros,

Os meus sentires,

A minha paixão,

A distância a que me sinto de mim.

 

Nem esta tarde nem esta primavera me angustiam,

Sossego-me no prazer de me rebolar,

No campo plantado de alecrim,

E na espiga já crescida,

Que baloiça com o vento,

Num bailado que me mata as horas,

E me sufoca extasiado.

Rugas

Já tenho rugas na voz de tão embargada que está,

Já tenho dobras no sorriso,

E a rir choro vincos.

 

Já tenho mãos abreviadas,

Pelas escolhas preferidas,

E lágrimas molhadas de sal.

 

Já tenho dores que bastem,

Alegrias que me abastem,

Como o céu colorido de fogo largado em lembrança.

Escrever

Se escrever não serve de nada,

Se não mata,

Não fere,

Não desperta,

Não retira,

Ou dá,

Então escrever não é nada,

E mais vale não escrever já.

 

Se escrever não ilude,

Não pune,

Não dilacera,

Não sente a lua,

O amor,

O pranto,

Ou a palavra pincelada de cor,

Então escrever já é só dor.

 

Não escrevo mais se não me acerto,

Se quase não me matar,

Com a mesma violência com que me amo,

Escrever sem atingir,

É viver sem existir,

Escrevo porque careço de ar,

De terra,

De céu e chuva para me regar.

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