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Cardilium

Cardilium

Poente

Já nada me resta agora,

Sossego-me na beira da fonte de outrora.

Já não existem fontes como dantes,

Se as fontes não secaram as nascentes,

E as nascentes não secaram as fontes,

Onde estão as olhos-d ‘água então? E os poentes?

 

Já tudo o que me é devido me foi retirado,

Tudo o que me foi dado me foi excluído.

A paz, o amor, a liberdade e a vontade,

A lua, os olhos e os baloiços,

Tudo tudo e tanto me foi confiscado,

E foi deus pela mão do diabo.

 

Só eu me incorporo e já,

Como dantes e como agora.

Feliz anuncio aferrolhado,

Deste mundo que me elabora,

Caminho denso padecimento,

A cada hora circulada de minutos.

Devir da prossecução

Se um homem se transfere no devir da prossecução, não é mais verdade que a descendência assegura essa continuidade. Assegurei-a e, orgulhosamente, não poderia achar tamanho legado mais bem entregue do que aquele que me foi confiado a mim. Não sou um homem crente, sou mesmo um homem descrente.

 

Descrente no sentido piedoso e religioso do termo. Creio na força do universo, no cosmos, no trabalho, na visão e na inteligência. Creio na isenção e no pensamento. Creio nos pensadores. Nas frases descobertas e inventadas por mim. Nos conceitos averiguados.

 

Creio no meu passado como desígnio do meu futuro, como se as portas de uma prisão se tivessem escancarado, e uma força desconhecida me tivesse empurrado para a liberdade em forma de abismo, com muito poucas ferramentas, mas como uma acérrima vontade e crença, como se um imenso e duradouro terramoto me fizesse constantemente precaver e arriscar, e, não sendo crente, creio.

 

Sinto uma enorme necessidade de ter asas e não as tenho, dá-me medo, dá-me medo ter que voar e não ter asas.

 

A minha primogénita nasceu ontem e eu ainda estou para nascer. Nasço entretanto, sei-o. Regressei à vida e a vida dar-lhe-ei em pequenos pedaços de porções de mim, por sua parte, ela já junta as pequenas porções de mim e modifica-as na vida dela. Revejo-me.

 

Elejo-a como a pessoa que me faz crer no desafio que é a minha vida.

 

- No desafio de entendimento constante do que sinto e de não ser capaz ou saber, não sentir muito.

- De ser um ser, emocional e estafado, disposto a ser um guerreiro honorário.

 

 

 

 

Novembro adiantado de vida

De dentro do sol fogem raios que me aquecem o Novembro,

Mês antecedente de vida,

Mês bravio,

Acalorado pronúncio,

Escarnecido que foi o passado,

Final de ano,

De um ano iniciado,

Vida depositada,

Frangalhos de nuvens esfarrapadas,

Esperança solta,

Desconhecido sentido.

 

Sei que me nasceu uma filha,

E que nasci após o seu nascimento,

Alguns dias depois.

 

Novembro adiantado de vida …

Teoria da felicidade relativa

A felicidade não sendo continua ou definitiva, é sempre relativa e dependente dos subúrbios da alma. Se estou abarcado na coerência de mim próprio serei propício à felicidade. Se estou afastado do que construí sinto-me dilacerado, logo, sinto a condicionalidade da felicidade como uma desconhecida e sem razão aparente de ser, infelicidade. Serei tão ou mais feliz, de cada vez que encurto ou estendo a mim próprio o que acredito ou quero.

 

A felicidade é o subúrbio que escolho habitar.

 

Dar-me o direito de me sentir infeliz aproxima-me da felicidade. O que me torna ou exclui, aglomera ou circunscreve, é a minha rota desviada, é alteração do meu caminho em prol de alguma coisa que não faz de mim o que sou. Eu sou mais de ser e nada de ter. Sou o que resta das minhas gavetas de anos por remexer, sou o antro do que quero compreender, sem querer ao mesmo tempo, rebentar com a fechadura onde a chave já não pertence.

 

As chaves e as fechaduras deixam de se pertencer com o tempo e o desuso. Deixar-me merecer o bolor das arrecadações é envinagrar a minha alma. Despoluo-me com a graça de azedar e voltar à doçura do olhar. À minha volta sempre existiu o mar, o luar, as flores, e as míseras e afortunadas cores a que dou, ou retiro encanto, conforme me sinta pertencente ou não ao subúrbio, é lá que pouso a relatividade da minha (in) felicidade.

Muliplicar a divisão

A dificuldade do amor está na equação participativa da divisão.

 

Em muitos momentos se entende ser na multiplicação e na agregação da matéria ou no mútuo entendimento do conceito ou directriz, mas não, o amor é um pote cheio de amantes no sentido endógeno da palavra, e no sentido físico e exógeno também, ou seja, da interioridade do segredo dos vulcões, e dos maciços seguintes em que se transformam.

 

O segredo é sentido da não exposição dos nossos verdadeiros cheiros ou sabores.

O segredo no sentido ritmado do dia-a-dia.

A multiplicação virá somente na soma contínua das emoções.

Sou assim como os inícios antecipados de vida testada …

Não sou um homem nem sou mulher,

Não sou desumano,

Sou humano de humanidade,

Irreverencia da normalidade,

Tristeza abundante e jasmim,

Coração abonado de mim.

 

Sou quase nada e pérolas,

Mãos trémulas, inexistência,

Jardim plantado desbotado,

Um sem fim desiludido,

Recomeço na migração das aves,

Regressado na insónia da madrugada.

 

Afino acordes adormecidos,

Numa alma que se me padece,

Em parábolas inventadas,

Criações desconstruídas,

Disruptivas,

Finalizadas.

 

Sou assim como os inícios antecipados de vida testada …

Desígnio

Debruço-me.

 

Vejo titubeantes passos e uma animada conversa sem ninguém que pudesse responder. Um homem envolto em solidão pergunta e responde a ele próprio, próprias questões animadas por um hálito retardado de anos de álcool. Não o sei triste ou infeliz. Sei-o animado na procura de quem lhe foge. Pessoas.

 

Saio rápido de casa e vou para o outro lado da rua para me cruzar com ele na esperança que ele me reparasse. Reparou-me e ignorou-me mesmo antes que se tenha excluído o segundo seguinte. Pensei. Ele está muito menos só do que eu, ou seja, está muito mais acompanhado. Fingi um caminhar lento de forma a ficar ao seu alcance o máximo de tempo possível. Mas ele tinha uma rota e uma companhia, senti-o a esvair-se pela noite adentro, rua afora, de uma forma segura a que eu chamo desígnio pessoal, ou intenção direccionada de vida.

 

Ainda pensei perguntar-lhe numa abordagem inadequada com uma daquelas patetices de ocasião como por exemplo:

 

“ Está uma bela noite, o frio não há meio de se demitir”.

 

Nada disse e tentei imitá-lo. Fui parafraseando ladainhas de loucura como:

 

“Então, não me vês, escuta o sol, verde é a esperança do pensamento no gelo que cobre a calçada num outro tempo melhor (numa alegórica forma politica de pensamento), o mar jamais se transformará no sonho que julguei um dia adiar, trocar ou negociar com a morte, na isenção sentida da felicidade”.

 

Nada me sai com sentido. Nada se me constrói com desígnio. As palavras soltam-se-me com as badaladas com que regresso ao meu mundo, que não sei mesmo ser o meu planeta subsistido. Na verdade, se me basto, é porque nunca experimentei a felicidade. Se me basto por companhia, é porque sempre estive sozinho. Se me basto sexualmente, é porque nunca senti satisfação. Se me basto, é porque me incorporo num egoísmo que me turva a partilha. Pelo menos que alcançasse sair por aí e falar para quem me quisesse ouvir, ou me sentasse no chão a oferecer palavras, às pessoas tal como as vejo.

 

Se me basto, é porque me falta desígnio.