Se um homem se transfere no devir da prossecução, não é mais verdade que a descendência assegura essa continuidade. Assegurei-a e, orgulhosamente, não poderia achar tamanho legado mais bem entregue do que aquele que me foi confiado a mim. Não sou um homem crente, sou mesmo um homem descrente.
Descrente no sentido piedoso e religioso do termo. Creio na força do universo, no cosmos, no trabalho, na visão e na inteligência. Creio na isenção e no pensamento. Creio nos pensadores. Nas frases descobertas e inventadas por mim. Nos conceitos averiguados.
Creio no meu passado como desígnio do meu futuro, como se as portas de uma prisão se tivessem escancarado, e uma força desconhecida me tivesse empurrado para a liberdade em forma de abismo, com muito poucas ferramentas, mas como uma acérrima vontade e crença, como se um imenso e duradouro terramoto me fizesse constantemente precaver e arriscar, e, não sendo crente, creio.
Sinto uma enorme necessidade de ter asas e não as tenho, dá-me medo, dá-me medo ter que voar e não ter asas.
A minha primogénita nasceu ontem e eu ainda estou para nascer. Nasço entretanto, sei-o. Regressei à vida e a vida dar-lhe-ei em pequenos pedaços de porções de mim, por sua parte, ela já junta as pequenas porções de mim e modifica-as na vida dela. Revejo-me.
Elejo-a como a pessoa que me faz crer no desafio que é a minha vida.
- No desafio de entendimento constante do que sinto e de não ser capaz ou saber, não sentir muito.
- De ser um ser, emocional e estafado, disposto a ser um guerreiro honorário.
A felicidade não sendo continua ou definitiva, é sempre relativa e dependente dos subúrbios da alma. Se estou abarcado na coerência de mim próprio serei propício à felicidade. Se estou afastado do que construí sinto-me dilacerado, logo, sinto a condicionalidade da felicidade como uma desconhecida e sem razão aparente de ser, infelicidade. Serei tão ou mais feliz, de cada vez que encurto ou estendo a mim próprio o que acredito ou quero.
A felicidade é o subúrbio que escolho habitar.
Dar-me o direito de me sentir infeliz aproxima-me da felicidade. O que me torna ou exclui, aglomera ou circunscreve, é a minha rota desviada, é alteração do meu caminho em prol de alguma coisa que não faz de mim o que sou. Eu sou mais de ser e nada de ter. Sou o que resta das minhas gavetas de anos por remexer, sou o antro do que quero compreender, sem querer ao mesmo tempo, rebentar com a fechadura onde a chave já não pertence.
As chaves e as fechaduras deixam de se pertencer com o tempo e o desuso. Deixar-me merecer o bolor das arrecadações é envinagrar a minha alma. Despoluo-me com a graça de azedar e voltar à doçura do olhar. À minha volta sempre existiu o mar, o luar, as flores, e as míseras e afortunadas cores a que dou, ou retiro encanto, conforme me sinta pertencente ou não ao subúrbio, é lá que pouso a relatividade da minha (in) felicidade.
A dificuldade do amor está na equação participativa da divisão.
Em muitos momentos se entende ser na multiplicação e na agregação da matéria ou no mútuo entendimento do conceito ou directriz, mas não, o amor é um pote cheio de amantes no sentido endógeno da palavra, e no sentido físico e exógeno também, ou seja, da interioridade do segredo dos vulcões, e dos maciços seguintes em que se transformam.
O segredo é sentido da não exposição dos nossos verdadeiros cheiros ou sabores.
O segredo no sentido ritmado do dia-a-dia.
A multiplicação virá somente na soma contínua das emoções.
Vejo titubeantes passos e uma animada conversa sem ninguém que pudesse responder. Um homem envolto em solidão pergunta e responde a ele próprio, próprias questões animadas por um hálito retardado de anos de álcool. Não o sei triste ou infeliz. Sei-o animado na procura de quem lhe foge. Pessoas.
Saio rápido de casa e vou para o outro lado da rua para me cruzar com ele na esperança que ele me reparasse. Reparou-me e ignorou-me mesmo antes que se tenha excluído o segundo seguinte. Pensei. Ele está muito menos só do que eu, ou seja, está muito mais acompanhado. Fingi um caminhar lento de forma a ficar ao seu alcance o máximo de tempo possível. Mas ele tinha uma rota e uma companhia, senti-o a esvair-se pela noite adentro, rua afora, de uma forma segura a que eu chamo desígnio pessoal, ou intenção direccionada de vida.
Ainda pensei perguntar-lhe numa abordagem inadequada com uma daquelas patetices de ocasião como por exemplo:
“ Está uma bela noite, o frio não há meio de se demitir”.
Nada disse e tentei imitá-lo. Fui parafraseando ladainhas de loucura como:
“Então, não me vês, escuta o sol, verde é a esperança do pensamento no gelo que cobre a calçada num outro tempo melhor (numa alegórica forma politica de pensamento), o mar jamais se transformará no sonho que julguei um dia adiar, trocar ou negociar com a morte, na isenção sentida da felicidade”.
Nada me sai com sentido. Nada se me constrói com desígnio. As palavras soltam-se-me com as badaladas com que regresso ao meu mundo, que não sei mesmo ser o meu planeta subsistido. Na verdade, se me basto, é porque nunca experimentei a felicidade. Se me basto por companhia, é porque sempre estive sozinho. Se me basto sexualmente, é porque nunca senti satisfação. Se me basto, é porque me incorporo num egoísmo que me turva a partilha. Pelo menos que alcançasse sair por aí e falar para quem me quisesse ouvir, ou me sentasse no chão a oferecer palavras, às pessoas tal como as vejo.