Ardeu o cimo da serra do meu monte. Agora despido de verde, ficou negro. Está cor de carvão a montanha dos meus sonhos. Agrura desmedida fecunda no meu peito, de cada vez que circundo a velha estrada do meu refúgio. Um dia o meu peito revigora, no outro acabrunha. O lago anil desconfigurou, a acidez latente humana espelhou-se na serra. É sempre assim a cada temporal de verão que por aqui passa.
Agora recomeçará a época que rebentará em novas flores e pinhos, e amaciará o chão seco de estação. Isto tudo, e tudo isto, é como a minha alma. É como a alegria e a tristeza, é como o deambular por entre a multidão, é como a invisibilidade, é como a solidão e os afectos. Tudo isto é, a expressão vigorosa de sentir. Tudo isto se reflecte e me projecta para o meu eu, sacrificado e glorificado. Para o meu eu ateu e crente, satisfeito e insaciado.
As estações são como os meus estados de espirito, podendo este não se identificar com o que normalmente são as estações. Sou feliz no inverno podendo não sê-lo de verão. Sou tudo e nada, e nada é, muitas vezes tudo o que necessito para ser tudo.
Esta louca magia faz em mim brotar um sentir são, que preservo numa esquizofrenia residual e residente. Os montes de serras, as marés do mar, os elísios ventos, as tempestades, o sol, a lua e o luar, são demoníacos estados de calmaria e bem-aventurança que detenho, a cada dia viajado que me é dado pela idade.
A rebate tocaram os sinos, Sinais de um anúncio prévio de partida, Julgaram ser por Amélia, Por desdita ser sua sina, Julgaram ser por António, Por não andar já há três anos.
Nenhum sino em sinal tocou,... A rebate de infortúnio de alma, Tocou em alerta, Em convocação, Pela miséria que se juntou, No povo.
Falta o pão, Reboliço no adro da igreja, Onde se junta a multidão, Lançando chamas de ideias, Juntando o pó do terreiro, Pelo passos combinados.
Vida a devolver-se, Ficaram os castos e os pecadores, Na roda dada de mãos, Para pensar o futuro, Dos filhos e dos irmãos.
Tocou a rebate o sino, Sinais prenhes de união, Badaladas de abraços, Esperança, Associação.
Velhos ideais, Acção, Existência, Conjugação, Tocou assim a rebate o sino de população.
“Quero, posso e mando” respondeu-me, sem sequer me olhar e não se importando com o que eu, antecipadamente, pudesse pensar da sua gélida expressão.
Eu também não disse nada. Continuei imóvel a remexer as brasas soltas, invernosas e estaladiças que dançavam na lareira. O frio lá de fora não entrava por aquela porta. Estava desautorizado. O silêncio era solidário com o inverno. A chuva com o vento. Os trovões com o ar zangado dela.
De repente soltou um:
“Então, não dizes nada, és como a morte, mais valia estar acompanhada por ela mesmo, assim não tinha que te ver vivo sem viver. Estás aborrecido? O que tens? Havias de arranjar uma fêmea que te cedesse o seu corpo, sempre te entretinhas a ti e entediavas a ela, em vez de a mim”.
Continuei entretido com as minhas brasas simétricas e companheiras.
Voltou a falar-me, agora menos zangada, mas mais enfurecida:
“Fala homem, não te esfaqueies assim tanto por dentro, o que tens? Vá lá, troveja”.
Olhei-a com uns olhos que detesto, por sentir que gritam perturbação e disse:
“ Se tu queres, podes e mandas, eu ambiciono, anseio e dirijo”
“ O quê? Esse teu cérebro transformou-se na adega onde vives, acrescentou a gritar. Eu posso sim senhora, posso lembrar-me da felicidade, escolher desistir, recordar o meu homem, e o que ele fazia ao meu corpo. Posso lembrar-me da sua boca, das suas mãos, das suas costas, pernas e peito. Posso rebolar-me na eira a cada descamisada. Posso olhar o rio e dizer que ele se enrola comigo. Posso não cumprimentar. Posso ser ateia e crente. Isto, eu posso tudo. Isto tudo eu quero, e nisto tudo eu mando, entendes? Entendes tu esta ausência? Entendes tu este querer, de poder e mandar? Ouviste? Eu quero, posso e mando.
Sem tréguas nem amarras suspensas no saber que os dias me dão, despeço-me na encruzilhada, sedento de uma desconstrução que a ignorância me poderá devolver.
Junto ao cedros da despedida, o cheiro, e a terra, são secos. A pontiaguda sombra, desenha a forma mais do que o formato. O imaginado suspiro sai-me em forma deformada, num sorriso acenado por uns ombros carregados de mundo.
Sinto-me desprendido da vida, renegado por uma anti vontade de firmeza, que desconheço até então. A minha actualidade não existe. Descendente e ingreme, as minas veias soltam brasas e bátegas de lagrimas contidas. Desacertado, cerro os punhos e os olhos, e deixo a brisa quente da noite, levar-me pela confusão dos sonhos adiados.
O mundo não é meu mais do que a minha alma.
O meu universo tem a ressonância do meu âmago, espelhado em vagas de luz da lua, e, tem a direcção, das correntes nas marés.
Abraça-me, pedi a um pedinte barbado numa esquina inerte dele e, movimentada de mundo. Ele abraçou-me com os olhos embaciados de surpresa.
Queres tomar um café? Conversar? Desnascer?
Voltou a acenar-me com um sim apático, como se eu me tivesse enganado na abordagem, tão habituado era a existir desconhecido.
Anda, vamos caminhar e ser, convidei.
Recolhi apenas um imperturbável:
“Eu já sou”, não me convides como todos, a deixar de ser.