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Cardilium

Cardilium

Desunido

Não quero que me compreendas ou discutas,

Quero apenas que me albergues o silêncio, e me deixes navegar a minha rota,

Que me deixes sentir o luar, sem teres que entender na lua o sentido que entendo sentindo,

Quero que me deixes entrar pelas tempestades adentro e voltar delas por mim.

 

Não quero que me compreendas ou discutas,

Quando estou, sem sentires que estou,

Quando as noites me chamam para um mundo diferente do teu,

Quando escuto vozes ou, questiono existir desta forma.

 

Não quero que me compreendas ou discutas,

Quando não sinto tristeza com a partida do verão, e júbilo o regressado Outono,

Quando o cheiro a terra molhada me excita numa configuração sensual,

Quando sou mais desperto a isto, do que a outra substância qualquer.

 

Não quero que me compreendas ou discutas,

Te identifiques ou julgues,

Que sofras ou te alegres,

Por eu ser assim, aparentando ser, desunido e alheado.

 

Jamais quero que me compreendas ou discutas …

 

 

 

Gaivota

Aguia elevada de elegante voo,

Invejo-te.

 

Invejo-te a perspectiva e o sonho,

O alcance e o encalço,

O enlaço estonteante balançado de mar.

 

Humano, não me sinto muito,

Desumano? menos sentir sou,

Não sou céu,

Nem o encanto,

Nem o pranto,

Que em mim brotou.

 

Sou maresia em olhos cegos de tanto ver,

Sou a bruma da manha cálida,

E o ardor de tanto te querer.

 

Aguia elevada de elegante voo,

Invejo o teu viver…

Desocupado

Habitado por ideias florescentes,

Não sossega em mim este cérebro penoso,

Que não descansa ou dorme,

Que não se satisfaz ou cala,

Que não finda execução,

Que não encerra obra acabada.

 

Habitado por bairros inexistentes,

Não se demovem de mim,

Estas ruas ruinosas e apodrecidas,

Não se demovem de mim,

Estas cores esbatidas,

De um mundo por acabar.

 

Habitado em mim por mim,

Não se exclui este desconhecimento,

Este sítios por preencher,

Estas viagens por executar,

Este deus por castrar,

E este diabo por educar.

 

Desabitado sou feliz,

Sem sabedoria ou lucidez,

Como se diz serem os loucos,

Sem bom senso ou timidez,

Desocupado de boas maneiras,

Ser feliz e louco … de vez.

Ardida vida minha

Ardeu o cimo da serra do meu monte. Agora despido de verde, ficou negro. Está cor de carvão a montanha dos meus sonhos. Agrura desmedida fecunda no meu peito, de cada vez que circundo a velha estrada do meu refúgio. Um dia o meu peito revigora, no outro acabrunha. O lago anil desconfigurou, a acidez latente humana espelhou-se na serra. É sempre assim a cada temporal de verão que por aqui passa.

 

Agora recomeçará a época que rebentará em novas flores e pinhos, e amaciará o chão seco de estação. Isto tudo, e tudo isto, é como a minha alma. É como a alegria e a tristeza, é como o deambular por entre a multidão, é como a invisibilidade, é como a solidão e os afectos. Tudo isto é, a expressão vigorosa de sentir. Tudo isto se reflecte e me projecta para o meu eu, sacrificado e glorificado. Para o meu eu ateu e crente, satisfeito e insaciado.

 

As estações são como os meus estados de espirito, podendo este não se identificar com o que normalmente são as estações. Sou feliz no inverno podendo não sê-lo de verão. Sou tudo e nada, e nada é, muitas vezes tudo o que necessito para ser tudo.

 

Esta louca magia faz em mim brotar um sentir são, que preservo numa esquizofrenia residual e residente. Os montes de serras, as marés do mar, os elísios ventos, as tempestades, o sol, a lua e o luar, são demoníacos estados de calmaria e bem-aventurança que detenho, a cada dia viajado que me é dado pela idade.

 

Arde em mim como na serra, vida !

Sinais


A rebate tocaram os sinos,
Sinais de um anúncio prévio de partida,
Julgaram ser por Amélia,
Por desdita ser sua sina,
Julgaram ser por António,
Por não andar já há três anos.

Nenhum sino em sinal tocou,...
A rebate de infortúnio de alma,
Tocou em alerta,
Em convocação,
Pela miséria que se juntou,
No povo.

Falta o pão,
Reboliço no adro da igreja,
Onde se junta a multidão,
Lançando chamas de ideias,
Juntando o pó do terreiro,
Pelo passos combinados.

Vida a devolver-se,
Ficaram os castos e os pecadores,
Na roda dada de mãos,
Para pensar o futuro,
Dos filhos e dos irmãos.

Tocou a rebate o sino,
Sinais prenhes de união,
Badaladas de abraços,
Esperança,
Associação.

Velhos ideais,
Acção,
Existência,
Conjugação,
Tocou assim a rebate o sino de população.

Amigo

Amigo.

 

Coisa rara.

 

Todos temos gente que nos quer bem, mas amigos são feitos de outra substância, é uma entidade relacional, quase matrimonial.

 

Quando na relação a intensidade baixa, pode ser necessário fazer o luto.

 

Mesmo não equacionando a essência da amizade, ela pode ser abalada no essencial.

 

Amigo, esse ser raro e necessário.

“Quero, posso e mando”

“Quero, posso e mando” respondeu-me, sem sequer me olhar e não se importando com o que eu, antecipadamente, pudesse pensar da sua gélida expressão.

 

Eu também não disse nada. Continuei imóvel a remexer as brasas soltas, invernosas e estaladiças que dançavam na lareira. O frio lá de fora não entrava por aquela porta. Estava desautorizado. O silêncio era solidário com o inverno. A chuva com o vento. Os trovões com o ar zangado dela.

 

De repente soltou um:

“Então, não dizes nada, és como a morte, mais valia estar acompanhada por ela mesmo, assim não tinha que te ver vivo sem viver. Estás aborrecido? O que tens? Havias de arranjar uma fêmea que te cedesse o seu corpo, sempre te entretinhas a ti e entediavas a ela, em vez de a mim”.

 

Continuei entretido com as minhas brasas simétricas e companheiras.

Voltou a falar-me, agora menos zangada, mas mais enfurecida:

 

“Fala homem, não te esfaqueies assim tanto por dentro, o que tens? Vá lá, troveja”.

 

Olhei-a com uns olhos que detesto, por sentir que gritam perturbação e disse:

 “ Se tu queres, podes e mandas, eu ambiciono, anseio e dirijo”

 

“ O quê? Esse teu cérebro transformou-se na adega onde vives, acrescentou a gritar. Eu posso sim senhora, posso lembrar-me da felicidade, escolher desistir, recordar o meu homem, e o que ele fazia ao meu corpo. Posso lembrar-me da sua boca, das suas mãos, das suas costas, pernas e peito. Posso rebolar-me na eira a cada descamisada. Posso olhar o rio e dizer que ele se enrola comigo. Posso não cumprimentar. Posso ser ateia e crente. Isto, eu posso tudo. Isto tudo eu quero, e nisto tudo eu mando, entendes? Entendes tu esta ausência? Entendes tu este querer, de poder e mandar? Ouviste? Eu quero, posso e mando.

 

Quero de querer,

Posso de possibilidade,

Mando de determinação …

 

Ousa querer … e podes. Recomendou-me

Sem "favores"

A meu favor não tenho nada,

A desfavor também não,

Mulher ávida,

Vida,

Tormento e espirito,

Mãe dos meus filhos.

 

A meu desfavor sem favor,

Nada possuo,

Vida de vida,

Filhos meus,

Senhora mãe,

Agradeço.

 

Sem favor,

Com fervor,

Ilumino o rosto com os meus lábios,

Sorrio à lua aos quartos,

E crescente sou,

Inteiro.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



Regressado

Como que regressado de países longínquos, por vezes sinto-me estranho aqui;

Como que regressado da morte por vezes sinto-me estranho na vida;

Como que regressado da ausência, por vezes sinto-me estranho em presença;

 

Como que regressado do sossego, por vezes sinto-me estranho na confusão e o contrário também é verdade;

Como que regressado da riqueza, por vezes sinto-me estranho na necessidade e o contrário também é verdade;

 

Como que regressado da inexistência, por vezes sinto-me estranho na subsistência;

Como que regressado do passado, por vezes sinto-me estranho no presente;

Como que regressado da rua, por vezes sinto-me estranho em casa;

 

Como que regressado a mim, por vezes sinto-me estranho na tua cama e o contrário também é verdade;

Como que regressado de temporais, por vezes sinto-me estranho como as tormentas e o contrário também é verdade;

 

Como que regressado das recordações, por vezes sinto-me estranho com o esquecimento;

Como que regressado da poesia, por vezes sinto-me estranho com a ausência das palavras;

Como que regressado da guerra, por vezes sinto-me estranho na paz.

 

 

Agora, aglutinado e regressado, vou saborear este pão com céu, que só existe fresco na minha varanda ….

 

Agora regressado dos anos desta ausência.

“Eu já sou”, não me convides como todos, a deixar de ser.

Sem tréguas nem amarras suspensas no saber que os dias me dão, despeço-me na encruzilhada, sedento de uma desconstrução que a ignorância me poderá devolver.

 

Junto ao cedros da despedida, o cheiro, e a terra, são secos. A pontiaguda sombra, desenha a forma mais do que o formato. O imaginado suspiro sai-me em forma deformada, num sorriso acenado por uns ombros carregados de mundo.

 

Sinto-me desprendido da vida, renegado por uma anti vontade de firmeza, que desconheço até então. A minha actualidade não existe. Descendente e ingreme, as minas veias soltam brasas e bátegas de lagrimas contidas. Desacertado, cerro os punhos e os olhos, e deixo a brisa quente da noite, levar-me pela confusão dos sonhos adiados.

 

O mundo não é meu mais do que a minha alma.

 

O meu universo tem a ressonância do meu âmago, espelhado em vagas de luz da lua, e, tem a direcção, das correntes nas marés.

 

Abraça-me, pedi a um pedinte barbado numa esquina inerte dele e, movimentada de mundo. Ele abraçou-me com os olhos embaciados de surpresa.

 

Queres tomar um café? Conversar? Desnascer?

 

Voltou a acenar-me com um sim apático, como se eu me tivesse enganado na abordagem, tão habituado era a existir desconhecido.

 

Anda, vamos caminhar e ser, convidei.

 

Recolhi apenas um imperturbável:

 

“Eu já sou”, não me convides como todos, a deixar de ser.

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