Debruçando o peito nas costas das minhas mãos sobre os joelhos dobrados, fixei os meus olhos nos verdes que se me apresentam bucólicos, brotado de entre as pedras frescas da fenda de uma rocha.
Isento-me. Ausento-me. Despertenço-me.
Construo ágeis pensamentos na calmaria que me conquista. Sossego-me de pareceres. As aguias em voo de abutre são rapinas e predadoras, descrevendo sem engano o meu medo, a minha sorte e o meu encantamento. Estranha analogia que se me apossa. Preciso de a entender.
- Voo, aberto, frontal e belo. Sedução.
- Rapina associada aos meus medos quase vernáculos.
- Predadora esta minha necessidade de consumação de mim mesmo.
Vejo num voo, o despir das minhas sensações, dos meus desapegos, das minhas indiferenças, dos meus alheamentos, da força com que faço a minha multidão e o meu silêncio. Vejo na serra que rasga o caminho para o mar, esta lua de hoje, repousada, desfadigada e emudecida. Viva de uma beleza de brilho.
Continuo imóvel debruçando o peito nas costas das minhas mãos sobre os joelhos dobrados sem querer sequer respirar.
Não pretendo hipotecar o que penso, ou danificar o que sinto.
- Esta imobilidade preserva-me o momento.
- Esta inactividade é activa.
- Esta inércia é polvorosa.
- Esta ociosidade é labor.
Este eu, sou eu também.
Ergo agora e somente os olhos, porque a lua balançou e voltou a conchegar-se no alto da montanha. Uma nuvem sombreou-a por instantes. Eu, inanimado ressuscito e, preparo-me para respirar.
Pego na despertença que tinha pousado a meu lado, isento-me, e preparo-me para me ausentar.
A escolha dos últimos momentos escritos em madrugada de insónia e recordação são a procura do entendimento para o sentido da vida.
Escrever este amontoado de palavras feitas de letras, é querer ficar contigo sem sentir que a partida é um final, e querer transformar esta experiencia terrena em cristalizada presença.
Não entendendo os motivos na vida, não entendo igualmente as razões porque me despeço em saudade na morte.
A morte é mais do que os motivos e as razões, é um por do sol de trovoada e um desaparecer no horizonte, sem renascença no dia seguinte.
É o mundo inteiro perecer, e faltar-nos elementos, que sabemos necessários à existência de nós mesmo.
Os dias vão-nos afastando e as noites vão-se deslocando.
Questiono realmente o que fica e o que parte?
O que nos abastece e o que nos falta?
A morte é a saudade.
A vida é um património que se esgota sem tempo combinado, sem anúncio publicado.
Hoje, esgotado ficou o sol, que se transformou em estrela que o céu negro roubou.
Não sei rezar, não quero rezar.
Hoje é dia de declamar odes ao presente, porque o presente tem passado, mas não tem futuro.
Mais tarde junto à fonte onde me encarcerei de amores por uma mulher ainda rapariga, entristeci ao vê-la seca como o nosso amor. A nascente das entranhas da encosta secara, tal qual secou a nossa querença. Naquela sufocante tela pintada de resina e caruma acumulada de outono, não quero acreditar que as fontes também secam. Preciso do entendimento deste enxugo. Não quero crer que as nascentes se recusam a parir a água que me refresca, atordoa e dá vida, não quero crer na grandeza desta injustiça.
Se as fontes secam e as nascentes não se rejuvenescem, como posso eu querer sentir mais do que a distinta natureza?
Afinal, a natureza oferece-me a sentido e a explicação de que eu preciso. A primeira parte desta questão de existência está resolvida no meu interior sedento de resposta, mas o pedaço seguinte não tem resolução.
- Eu não quero perder a memória enquanto património de mim mesmo.
- Eu não quero ser absolvido pelos meus pecados que tão prazeirosos me souberam.
- Eu não quero ser submisso a uma lei que não subescrevi.
- Eu não quero deixar de sentir que os tempos se mudam no íntimo das vontades, e que as vontades são como as fontes, que secam na nascente das entranhas da encosta.
- Alcanço agora, que antes das fontes, secam as nascentes.
- Entendo agora que a nascente sou eu, e sou igualmente a fonte.
- Entendo agora todas as noites de saudade e todas a manhãs de esperança.
- Compreendo agora a coragem ausente de mim a que chamei tristeza, e toda a alegria a que chamei esperança, e toda a esperança a que chamei novidade.
Sentado nesta pedra defronte da fonte seca da nascente, revigorei-me, mas não deixei de sentir a minha ausência em ti e o teu cativeiro em mim, mas, encontrei a paz, ao saber que as nascentes secam antes do que as fontes.
Sei-me agora conduzido nesta sede de destino, fonte e nascente.
Detinha nos olhos pérolas ou diamantes, sei que era um ser de luz, não consegui verificar para além de tanta claridade. Sei o que se diz, e o que se diz é que mantem contactos com quem já partiu. A aldeia inteira foge do que dizem. Eu procuro o que oiço dizer, aquela cegueira de clareza chama-me.
Numa manhã morna de Maio, na calçada do ribeiro, cruzei-me com a Laura e sorri-lhe. Logo ali me perguntou.
- Então, não tens medo do que dizem por aí de mim?
- Respondi que o que dizem, não é equivalente ao que oiço.
Num tom muito sumido balbuciou um: “sei”.
Disse-lhe que do local de onde eu venho, ouvir dizer, é como atirar pedras ao ribeiro que se ouve cristalino, e, esperar em troca que brote dele um oceano.
- Como assim? Respondeu!
Continuei. Normalmente o que se ouve dizer ganha a dimensão de um oceano e é apenas um ribeiro, ou é um ribeiro que dizem ser um oceano, eu, sem mergulhar em ambos, jamais saberei o tamanho da sua corrente, ou as lágrimas que eles contêm.
- Gosto de ti, disse-me. Entendo o tamanho do teu encantamento. Sabes, aqui a solidão é uma dádiva, não poderia nunca semear a minha liberdade nesta terra árida, onde nada se sabe, e tudo se diz, e, isso é apenas medo de se saber.
- Também te entendo, retorqui.
- E tu és do onde, perguntou-me?
Eu sou do sítio que me habitar, e não do sítio onde habito. Agora sou deste lugar que é o sítio que me habita. Mas já fui do céu, do mar, da terra, do vento, do sol, do nevoeiro, do trilho, da maresia, do poente e já fui pássaro de voar, mas sou humanidade mais do que outra coisa qualquer. Como poderia eu não ser isto e ser outra coisa qualquer?
- Olha, eu sou vida e a sua evolução. Sou todos os dias a vida e a morte. Morte pela solidão que me mantem viva, e vida porque te encontrei neste ermo, e hoje, tu és a minha vida. Tenho um filho que não vejo desde que partiu, e já partiu há muito, voltou hoje em ti, e é por estas diferenças destes meus “sentires” enganados, que as pessoas dizem o que eu não digo, por ouvir dizer…
Nesta misturada que são os números, as letras, os elementos e as pessoas, dei por mim a pensar que, quando não uso bem as letras e a pontuação, os números e as operações matemáticas, não me respeito e, acabo por não respeitar a ordenação.
De cada vez que não aplico um ponto final o quociente não é zero, logo, sobra-me vida.
Sobra-me vida que divido, sem hipótese de equação.
Sobram-me os desencontros e os encontros, e a impossibilidade da álgebra não se construir por letras.
As letras não são possíveis identidades quantificáveis, pois no seu âmago existe unicamente a qualificação.
Mas o que quero eu dizer com toda esta conversa?
Quero dizer que, quando adio começos ou finais, sobra-me vida e o que dela sinto, queira ou não queira, goste ou não goste.
De cada vez que não me afasto da árvore renego a minha alma e, continua-me a sobrar vida.
Sobrar vida é não a aplicar bem, ou viver de uma forma cega, com uma fórmula errada.
Descubro agora que viver sem sobrar-me vida é, faltar-me em parcelas de doses de tempo, por estar inundada, completa e habitada.
Sobra-me vida em tempo vazio, escasseiam-me as horas de vida preenchida!