Duas vidas numa existência é uma dádiva ou um roubo?
A uma estrela só se pode oferecer o céu. A um homem só se lhe pode oferecer uma vida.
Um homem que nasceu com vida de uma vida, e durante o seu percurso se aproximou da morte, o retorno ao seu legitimado direito de viver é uma dádiva, ou antes foi um desvio antinatural da sua própria existência?
É que a vida, pelo que me tem dado a observar, tem momentos mais próximos do seu propósito existencial, uns que outros.
As escolhas dessa mesma existência advêm de muitos e diversos factores e momentos. Há os escolhidos adivinhando-se os resultados, os não escolhidos e não aceites, os escolhidos e aceites, os propositados, os desconhecidos, os de alma, os de solidão, os de medo, os de risco, os seguros, os procurados, os ignorados, os intemporais, os das madrugadas e os dos anoiteceres.
Se reflicto sobre isto, e reflicto, concluo que o natural acto de existir nos dá existência.
A existência apesar de poder enclausurar algumas escolhas é mais uma dádiva do que não, e, enquanto seres humanos, quanto mais nos aproximarmos da liberdade, mais nos aproximamos da vida. Quanto menos nos “pendurarmos” em desculpas, mais cristalizamos a existência em nós.
Tudo na vida é feito de dor e paz, de verdade e inverdade, de pequenos quereres e poderes que se tornam em obra, e se transformam em si mesmos, no nosso património emocional.
A vida é como a natureza, é uma transformação em crescendo de um aperfeiçoamento pessoal, que com tempo se torna visionário pelas experiencias e amadurecimento pessoal. A vida para ser existência tem que ter, entidade, presença, intuição, assiduidade e comparência e ser.
A vida é uma adição de momentos, com subtracções a ela própria pelo meio.
Encantas-me com essa luz emergente que emanas dos teus olhos. Soltas fresco o Outubro nesse andar dançante. A lua dependurada prende-te o cabelo. Descalça, sais com o final do brilho do dia e, na noite, enlaças o mar por inteiro nas tuas mãos. Escutas breve o momento dilacerado do grito da rocha penetrada pelo desaguar da maré. O céu sorri inteiro na tua boca e no teu peito sucumbe a madrugada. Devota, ergues o que de ti te prende à vida, em orações representadas nas planícies que herdaste do vento e marcas na areia. Não és mais a foz, transformaste-te na nascente, abraçada, rejuvenesceste. Renasceste como um jardim branco de rosas reflorescidas. Como um voo recuperado de esperança, terno e longo, como o afago do reencontro com a saudade.
Quando me cruzo em ti, um motim incontrolável desconstrói a minha alma e razão. Um precipício obsceno de descaro sai em tremura nos meus passos e em gaguez das minhas palavras. Suo, quase desfaleço de não te querer diante de mim, nem longe do meu espírito. Não sei dizer o meu nome e esqueço o que aprendi. Sinto-me prematuramente ausente, como se, se tivesse apagado em mim, eu próprio. Não sei o que significa amor, dei-lhe um significado inexistente, apenas sei o que significa este desajustado sentir e esta inadequada e intimidada atitude. Já não me revejo, mas sinto que o mundo inteiro me observa, e os amantes me comtemplam, no entendimento que desentendo por desconhecido.
Ao invés, tu exalas um ar leve e tens no alaranjado sorriso, o pôr-do-sol no teu âmago. Calças sandálias que te desnudam os passos, e, sei-te, abençoada numa praia onde não vou estar, porque escolhi o som do deserto para a estrelar a minha noite. Tu junto ao mar e eu dentro do meu deserto.
Espero reencontra-te no Outubro que soltas fresco na tua imensidão.
Deambulava pela estrada sem sorriso ou alento. Mil ideias feitas de revolução ardiam nos seus olhos transformados em pranto. Era dia de feira, ao longe, ouviam-se apregoados pregões de uns dizeres roucos e roufenhos não entendidos, mas ele sabia que se tratava das habituais ladainhas das terças-feiras de feira. Sabia existir uma multidão em formigueiro, há procura de uma outra multidão, não muito longe da sua solidão.
A feira não era apenas um sítio onde se trocava dinheiro por alimentos frescos ou roupa barata. A feira era tudo. Era o encontro semanal de olhares. Os bons dias em saudação habituais. Os sorrisos. As mulheres. Os homens. As crianças. Os velhos. Os novos e os de meia-idade. A feira era a cidade num largo improvisado de vida e reencontro. Era quase uma oração conjunta e simultânea. Era quase a decisão política e o futebol. A revolução e a tomada de decisão. Era o anúncio da maternidade e o obituário. Era a gente séria e a outra. O ébrio e o sóbrio. Os militares e os civis. Era tudo e era ninguém. Era o rio mesmo ali. E eram as caras. As caras feitas de face rosadas e plácidas, o povo e os senhores, as mulheres e as amantes, tudo junto na terças-feiras da minha cidade.
A feira é a minha cidade, num largo improvisado de vida e reencontro às terças-feiras abraçada.