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Cardilium

Cardilium

Ecos

Não comentes este meu sentir frásico,

Que eu jamais saberei dizer por palavras,

Que as palavras ditas maduras,

Dentro de mim ecoam surdas,

Fora de mim soluçam mudas,

De silencio e ruído amedrontado,

Alta lua,

Madrugada.

 

Jamais saberei soltar-te juras,

Cumprimentos,

Decisões,

Traições feitas de vocábulos.

 

Apenas sentir-te-ei no abraço,

Sem as palavras serem bradadas.

 

 

 

 

 

Desfiladeiro

Se já antes assim fora,

Tendo eu a demente ideia,

De fazer do mar abundancia,

Abrindo assim o mundo,

De negada evidência.

Os meus olhos vêem os teus braços a enlaçar a lua,

Porque teimas tu em dizer-me que não?

A minha verdade contempla um desfiladeiro,

Um rio revoltoso já seco,

Lagrimas que me abandonam os olhos,

Combatentes do amor,

Flecha dilacerada,

Elevada bandeira hasteada,

Desofuscada.

Sinal de bem-querer,

Mutação de desamparo em esperança.

 

Se na tua fonte gemo em ti mais do que um lamento, pelo mesmo motivo não jorro em ti esta inquietação.

Dias não são dias

Dia da felicidade, do pai, da mãe, do natal, da pascoa, mais do beijo e da amizade e do trabalhador e da revolução e não sei quantos mais dias de não sei o quê, porque na verdade a banalização das datas destes, não é mais do que a insignificância que elas representam. Não há pachorra para tanta celebração de nada. Todos são unânimes no esvaziamento de sentido.

 

Assinalar para quê e o quê?

 

Bem sei que a Grândola se vende bem outra vez, que os poetas regressaram às ruas nas bocas dos indignados, que a palavra é uma arma que faz a revolução.

 

Mas alguma vez deixou de o ser?

 

A Força do poder de compra trás e leva da mente dos que se aglomeram a importância relativa da luta. A luta baixou a guarda e é o que se vê. Sempre existiram manifestações, estavam eram vazias, vazias de gente vazia que agora acordou e as enche de um significado que não tem. A luta tem em si própria o significado de luta, num país com cinquenta anos de luta, a luta não é nova, a luta é experiente, madura, leal, eterna e justa. A luta não pode existir porque agora é precisa. A luta sempre foi precisa e quando mais foi, ninguém lá estava, ou estavam os do costume, os apontados, os que agora não estão, porque não precisam de estar, por sempre lá terem estado.

 

Abril está aí novamente, o ano passado não se celebrou e este ano não se celebrará. Abril não sai às ruas pelos motivos que tem saído. Abril é o episódio mais significativo do seculo XX no nosso País e considerámos (por votação nacional) a figura do século, o ditador. Que memória colectiva nos assiste afinal? Quantos destas manifestações modernas votaram nele, neles, nos que nos têm governado? Quantos adormeceram? Quantos acordaram agora? Agora o tempo urge e esgota-se… agora há que penar … é o preço da distracção da ignorância da poesia nas ruas, nos muros, nas palavras e nas alma.

 

Na madrugada de abril as gargantas estavam embriagadas de uma guerra sem sentido. Estavam cautelosamente a chorar a morte dos seus filhos. As prisões eram férteis em ideais dos que estavam presos pelo pensamento. O pensamento foi o que fez a liberdade bramir, que nos despojou de uma igreja castradora, sentada na mesma cadeira salazarenta.

 

O que nos igualou aos poucos ao direito a saber ler e escrever? De um salario justo? De o direito à igualdade e mais do que tudo, de reconhecer na palavra a força que mata a escuridão? Foram os do costume, os que não estão agora nas manifestações, porque pertencem a elas...

 

A palavra é uma arma que não mata,

É uma arma que ama,

Que alimenta e desengana.

 

A palavra feita de paixão,

É comida, sopa e pão,

Castração da desilusão.

 

A palavra tem o dever de ser pronunciada,

É possível e praticável,

Bendita e admirável.

 

A palavra não a leva o vento,

Se for saída de dentro,

Como um ventre segurado nas mãos da verdade.

Frescos singulares

Frescos singulares desprendem-se das árvores vazias. Um homem senta-se de frente para a sua sombra e respira. Deixa ali mesmo o cansaço como se um afago ou um abraço lhe tivesse sido dado. As raízes suportam um e outro inverno e são elas que sustentam a vida. As árvores não acreditam no pecado nem no inferno. As árvores são apaixonadas e constantes.

 

Ontem, observei uma que estava desnudada como se, se tivesse a despedir, e o outono a estivesse a possuir e embelezar. Sorria e dançava. Sorria de um castanho posto nos lábios encantado de luz. Dançava de corpo solto e peito breve e firme. Um banco de pedra fria e antiga, pequeno e atarracado, permanecia submisso na meia-luz do encantamento da  sua penumbra.

 

Nas pedras também nascem flores, como no jardim da vida nascem seixos. Nos cabelos esvoaçados das fragâncias elixadas, junta-se um bando de passarada agitado e desconforme, vão rumo a sul num céu de migração. É a época de partir. É sempre época de partir. É sempre época de ficar. Época é, uma temporada de felicidade desnudada, assim esteja o céu de nuvens negras descarregado.

 

Eu, ali mesmo, mísero e estonteado, inerte fiz parte e obtuso comtemplei, o som terno das asas que se desagregam no rumo que compreendem. Como sempre, só uma parte perpétua de mim, a incessante, se apazigou. A outra, a insatisfeita, ficou presa na debandada que não usou mitigar o coração.

 

Vejo desenhado no céu as estrelas. Pouso a minha face na mão e encosto-me ao meu queixo. Descanso, contesto, clamo, brado e silencio. Gemo silêncio nos olhos.

 

Viajo e vou em mim, para um sítio que desconheço.

 

Necessito simplesmente de continuar a sentir os frescos singulares que se desprendem das árvores vazias… desentendidos de amanhãs.

O pecado, a mentira e a presença, não se dão

Habita-me um “eu” não visível que cuida de mim. Um “eu” que me sinaliza, desperta, previne e informa. Um “eu” que me diz sim e não, como um rio alvoraçado que não se pode desviar do seu caminho e do leito que o absorve. Um “eu” cuidador, amigo, terno, leal, cruel, implacável, tonto, lucido, sábio, ignorante, fugidio e presente.

 

De cada vez que me adio faleço, “ele”, ressuscita-me. A pressa que os dias e a vida possuem é essa mesma, falecer. A velocidade do tempo nada acrescenta, ao contrário, retira. O pensamento ágil e veloz, ao invés, adiciona e acumula.

 

Pensar, é o que o meu “eu” que me cuida desenvolve. Sentir, é o que o meu “eu” que me cuida faz, “eles” são residentes e permanentes.

 

Sou o representante dos dois mascarado e travestido de um. Um que não sente, o outro que não decide. Um está para mim como deus está para os que crêem. Outro está para o pecado, como a mentira para a verdade.

 

O pecado, a mentira e a presença, não se dão.

 

O pecado, não sei se existe ou tem presença. Uma coisa tem, isso eu sei, tem a culpa da mentira.

 

A mentira é simples, é o oposto e o inverso da verdade, muitas vezes promovida pelo afastamento do sentir induzido, que o medo da verdade contem. A mentira abranda bastantes vezes a dor, mas nunca a transforma. A mentira é sempre a mentira, e a dor é sempre a dor.

 

A verdade é um ribeiro forte e invernoso em debandada pelo seu leito. Não cuida enquanto presença, mas cuida após o passar. Cuida com a ruptura e a inexistência da presença.

 

Cuida, como cuida do luar. Cuida, como cuida da noite. Cuida, como o meu “eu” cuida de mim.

 

Por mais ou menos isto: O pecado, a mentira e a presença, não se dão.

Homenagem

A vida separa-nos sem que façamos nada por isso. Quando se experimenta a saudade existe porventura existência, e, é disso mesmo que sinto a falta, de existir.

 

Saudade da época em que habitavam músicas nas pessoas, perfumes e serões nas estações, esperança nos sonetos que me endiabravam a alma e a descoberta do sonho e da vida incluídos, pela espírito e o alento.

 

O sonho jamais termina se me recusar a apodrecer de conceitos e ideais. Pese embora os sonhos amadureçam com a minha existência, a entidade que os regula amadurece igualmente comigo.

 

Os canaviais já não são bravios como outrora, já não faço amor entre as giestas nas quintas-feiras das eiras e da ascensão, quarenta dias precedentemente da páscoa, onde o feno ainda fresco não secara. O corpo já não me deixa. O corpo já perdura uma manhã soalheira de sequeiro a fortalecer.

 

O mundo mudou de forma e a forma. Já não existem arco-íris que se acreditem ser os sorrisos do céu. Agora tudo se tenta explicar.

 

Tenho saudades do desentendimento do tempo. Da ingenuidade de não saber do vento, dos caminhos e da desvirgindade.

 

O ajuste da melancolia fez-se por ela própria, sem eu dar conta da mágoa que foi rasgar a minha cegueira, com as estrelas e o luar.

 

Agora já não há juízo, nem tempo.

 

Agora, somente existem fragâncias do que a vida separou de mim, sem eu dar conta dessa separação.

 

Agora existem mil pecados por perdoar, mil verdades de sentenças por ordenar, madrugadas por inventar e as noites que sobram para recordar.

 

As tuas mãos já não me afagam mais a vida. O que era queixume é agora incendiado o meu coração, vertendo-te homenagem em sonho, e em saudade.