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Cardilium

Cardilium

É como baralhar os elementos

Fazer da ausência presença é como baralhar os elementos. A terra, o ar, o fogo e a água, são analogamente consubstanciados pela admiração, confiança, desejo, paz e esperança. Ter-me é ter-te. Da enfadonha madrugada soltei-me. Cheguei à partida e fiquei. No fosso que existe do verão para o outono existe um limbo que me exalta de vida. A passarada ruma ao sul por esta altura, em esvoaçadas maratonas que representam o meu caminho feito de cicatrizes saradas, e outras por sarar. Depositar-me na compreensão e adormecer no afago, era, o que não alcançava enquanto existência. Assumir dentro de mim “o nós” da caminhada, era o segredo que teimava em manter. Nada por mal. Nada por acaso. Nada, por nada ser. Sentires irracionais não delineados na vontade. A minha casa sempre foi o abismo onde prendi as minhas amarras, onde as minhas âncoras sem lastro me prendiam, numa desconfiança colorida de não entrega, apenas pela entrega. Sempre confiei que podia não ser mais, mas se algum dia o fosse, seria disruptivo e coincidente com o adormecer desamedrontado de um acordar sorrido desassossegadamente tranquilo, abonado e sereno. A tranquilidade do meu pedaço moreno de mar teria que me acompanhar, de outra forma, seria a miserabilidade costumeira, de umas palavras soltas de entretenimento puro, improfícuo e desprazeiroso. Teria que ser uma viagem onde o tempo não me parecesse prazo, onde as estações não me parecessem cinza em pedaços de nuvens, e o vento se entendesse mensageiro como ele é. Para ser, teria que ser descomandado, tórrido e desnorteado. Sem norte mesmo. Teria que possuir a dor da ausência e a mascara da saudade. Teria que ter a saudade saboreada de reencontro e as noites não deterem pressa ou regresso. Os nomes não teriam que se constituir em nomes. O mundo teria que ser bem-querer e cuidado, amor dos que se amam, e dos que nos amam por sermos amor. Os convites não poderão ser convites, terão que ser vontade sem convite essencial ou necessário. A celebração será em conjectura, predição e adivinhação. Será apenas de alguns. Será dos da luz, dos do pensamento, e dos da emoção.

 

Quase que respiro e adormeço fundido na essência que me une ao silêncio, e, assim me fundo no desentendimento do sonho, o que o torna real, uno e partilhado.

 

É como baralhar os elementos e ir a jogo.

Purpura

É urgente, muito urgente saber de ti,

Não te saber iminente,

É como afrontar os lírios que secam sem a água das minhas lágrimas.

 

Comprovado. Existes como Fellini, feiticeira dos meus feitiços,

Sacrossanto este sentir estanque.

Não te saber iminente é a urgência da minha demência.

 

Estás, estou, somos, sou

Sentir esta anunciada e oculta presença carnal acontecida,

Decifrada foi  na manhã de luz cometida.

 

É tanto, mais do que eu próprio,

Ter o teu corpo em tremura,

Os meus beijos são a saudade, a cor?

 

…É purpura.

Da baía até ti

Do cimo do meu olhar recôndito, adivinhei sentida a existência de mais do que vida na floresta densa e inacessível. Decidido em ser água gemida da rocha inclinada em que me sentei, reconstruí um caminho que a atravessasse e nela me pudesse balançar e encantar. Numa gestação de vida anunciada, nove meses separaram o desejo da travessia, ao abraço, segredo e existência. Do sonho das marés das quase madrugadas e da areia branca decalcada pelos andados passos, se construiu o caminho, sem afinal se saber que se estava a traçar o trilho da descoberta do coração, acompanhado de oração e silencio, como que por coincidência anónima se conjecturou no firmamento, o que haveria de ser presente, o futuro.

 

Faltava aniquilar algumas parcelas de tempo. Confirmar breves reencontros. Devolver a candura do astro e deixar a quimera incendiar-se. Faltava soltar palavras simples e verificar o olhar dentro do olhar. O que era agua gemida da pedra já se fecundara em vida, já desmoronava clareira adentro, e as margens já se embelezavam de coração e quietude. Faltava somente as mãos serem dadas e sentir o peito tremer de lágrimas seguradas e bênção do momento. Parecia que faltava tudo e já não faltava nada, quando o jazz inundou a praça repleta de ninguém, ofuscada por nós simplesmente. Quando os amigos nos acompanharam ate nós e connosco ficaram para que nós ficássemos, estavam a ser os arautos da nossa melodia. Quando a bola laranja de cristal nos anunciou, subimos a escadaria que nos levou até nós e … sentámo-nos próximo. Quando as mil desculpas de resistência nos abalroaram ficámos, tornando as descoincidências meras estórias, que se desejam ser mutantes, história prometida e vindoura.

 

Coincidência esta que não o é: rio calmo e translúcido, arrebatado e sonhado, crente e amado, que se eleva anti natura da foz para a nascente, e da nascente para a foz, sem nunca desaguar de forma que se possa dar como terminado.

 

Corrente esta que me invade, floresta azul e sol nascente, clareiras de sorrisos abertos e densos abraços únicos e nossos, só nossos.

 

Celebração aguardada em forma de aliança que nos ofereceremos numa manhã feita de maré quase madrugada …

“Tens-me”

Estou exausto. Exausto de me carregar por estas escadas, depois da longa viagem. Exausto desta semana adiada e suportada. Deste ano idealizado, tornado longínquo e improfícuo. A vida é, como as tempestades. Do nada, ergue-se um tens-me, que me dilacera e me torna incapacitado de reacção, ou execução. Um tens-me, que me deixa atónito, inerte, surpreso, assustado, reactivo, agradecido, aborrecido, torturado, libertado, invadido, desconcertado, sufocado, arrepiado, descondizente, obcecado, incendiado, gelado, agoniado, dormente, demente, fascinado, feliz e aliviado.

 

Meter isto tudo num tens-me, assim, de uma vez só, retira-me as forças até de caminhar.

 

Preciso de voltar a mim. Agora de uma forma diferente. Não regresso da mesma forma que parti. Regresso um outro homem. Um homem acompanhado de mim, todo, por inteiro, com a minha essência dividida com quem ouve a mesma poesia. Um homem dividido no sonho, no olhar, no beijo da manhã, e nas mãos dadas da noite.

 

Regresso a mim enquanto a espera se tornou vida. Regresso a mim enquanto esperei, não sabendo estar a esperar. Regresso a mim preparado sem me saber pronto e disposto. Regresso com o teu cheiro e o teu corpo fundido no meu. Com o sorriso tornado vulcão e gargalhada. Com o mesmo chão divido pelos nossos corpos, o mesmo sofá, o mesmo cansaço, a mesma ousadia de querer gritar tão pouca palavra, para tanta vida e conteúdo. . . “Tens-me” aqui, assim, sabias?

 

És tu estrela,

Sôfrego respirar,

Desafio,

O meu desassossegado diamante,

Existência contida,

Explosão de uma vida numa noite só …

Escolhe-se o que se aceita ....

Não se entende este sentido que a vida nos dá. Entende-se, o que achamos que devia ser a nossa vontade, geralmente antagónica, ao acontecimento que nos está reservado. A vida divide-se em partes incontroláveis de escolhas “não nossas”. Não se escolhem os pais ou os filhos, os amigos ou as mulheres, os países ou as estações. Tudo é escolhido para nós. Tudo nos é brindado. A nós, apenas nos cabe aceitar as escolhas que nos são majestosamente dedicadas.

 

Mas quem nos escolhe, ou escolhe para nós?

 

Muitas vezes não aceito, porque estou ocupado a escolher. Se pensar que posso aceitar numa base cega de fé num desacreditado e crescente sentir, baixo esta resistência espiritual e, talvez me ajuste melhor às minhas inquietações, às minhas incompreensíveis questões e, dê de mim, aquando de uma oferta não entendível e/ou questionada oportunidade de, saber que o que sinto pode ser para mim, subtraindo as escolhas que na verdade não o são.

 

Ser, não é somente existir. Alienar, não unicamente vender a “alma ao diabo”. Demitir-me, não é exclusivamente abandonar-me antes de abandonar. Egoísmo é, uma óptima desculpa “anti-risco”, sustentada na antecipação do medo de chegada, sem saborear os degraus, as esquinas, as íngremes descidas, e as inclinadas barreiras. Egoísmo, tem o lastro de se poder “fazer de boa pessoa”, construindo os medos dos outros na protecção que lhe podemos oferecer, fugindo. A “coisa” é simples. As escolhas não são nossas. A nós cabe-nos aceitar, a felicidade ou a isenção dela.

 

As escolhas são: as nossas aceitações de coração.

 

Mas quem nos escolhe, ou escolhe para nós?

 

Escolhe-se o que se aceita ....

E até o Jazz foi presente e dedicado

Tenho o teu cheiro nas minhas veias, o teu abraço sufocado no meu pescoço. Tenho a tua boca na minha, mel, beijos e segredos confiados. Erguem-se os corpos ao espelho do sol. Recolho o que sobra da face e dos braços de cada jornada de ausência. O rio visto da encosta é sofrido e desenfreado, inquieto e endiabrado de tranquilidade.

 

Pérolas são os teus olhos,

Cicatriz que fica do teu abraço,

Palavras soltas que me soprastes,

E até o Jazz foi presente e dedicado,

Numa noite tardia inacabada.

 

Descida a rua, juntos bebericamos,

Palavras gastas de uma companhia não convidada,

Que nos incendiou de fogo o peito,

De tamanha ousadia,

Em nós descrente.

 

Mesmo sem te ter aqui, aqui te sei,

Melodia e vontade,

De mais te ter e saber,

Desse nome de guerra que não o é,

E que nunca achei que o fosse.

 

Por não te saber conhecida, este sentir não está errado. Retenho o teu cheiro nas minhas veias.

Crise

Um povo imbecilizado é um povo subjugado. Estamos para os políticos como futebol está para os “treinadores de bancada”. A crise como se apraz dimensionar não é nada de novo. A crise sempre existiu, em todas as vertentes sociais deste país. A crise na agricultura, na educação, na saúde, na justiça, nos valores, na identidade, na sexualidade, nos relacionamentos, nas gerações. A crise por si só cresceu connosco. Não me espanta em nada, esta “crise dos escondidos”. É uma crise falaciosa e sem sentido.

 

A crise é alguma coisa que pressupõe uma profiláctica mudança. Se nada se muda aquando a identificação da crise, tenta-se mudar depois dela instalada?

 

A crise foi, quando se achou normal existir um país de analfabetos. Quando se achou inevitável haver terras por cultivar, e se achou coerente distribuir a riqueza de forma desigual entre o patronato e os assalariados.

 

O que há de novo nesta crise? Nada!

 

E o que há de velho nesta crise? Tudo!

 

Os intervenientes são os mesmos, os de sempre, os de centro moderado e os de esquerda convertida. Depois, existem os poetas, os de sempre, e desglorificados.

 

Porque estão as mensagens das cantigas de Abril tão actuais?

 

Quando o poeta dizia: “vi-te a trabalhar o dia inteiro, construir as cidades para os outros, muita força por pouco dinheiro” era agitador social.

Quando os sindicatos eram dos trabalhadores e passaram a ser dos patrões, e o poeta cantou em tom de aviso: “aprende a nadar companheiro que a maré se vai levantar” era anticristo e voz da reacção.

 

A crise não é o hoje nem será o amanhã.

 

A crise foi o ontem distraído de quem se deixou distrair, pelas migalhas e imbecilidade colectiva.

 

A crise foi a abstenção.

 

A crise foi, não ensinarmos aos nossos filhos, o verdadeiro sentido de Abril. Foi não promovermos neles a responsabilidade do seu próprio futuro.

 

A crise foi, não ensinarmos as pessoas a pensar.

 

A crise é não termos “tomates” para recuar, avançando com o sonho de sermos livres.

 

A crise não existe, é uma manobra de distracção social, engalanada de subterfúgios diários e pidescos.

 

Um homem novo faz-se em sessenta e tal anos… o futuro traz-nos o ensinamento do passado. Sem ensinamento a crise instalou-se e não mudará sem o presságio que amanhã será melhor. Não será melhor coisa nenhuma, o povo está surdo e sabe tudo. Quando aprendermos, quando sentirmos que, genuinamente merecemos a nossa dignidade, seremos desenraizados da crise, e a felicidade brotará, depois de semeada.

 

Não se colhe antes de se plantar. O homem novo será, a semente de um homem livre.   

Ventre de mel

Sabe a mel o cheiro fresco destas manhãs. Estes últimos amanhecimentos são-me recordados pela ausência. Sabe-me a fel cada noite apartada. Na junção das estações, enquanto uma não acaba definitivamente e a outra decisivamente não recomeça, junto-me às folhas que amaciam o caminho, e, respiro fresco o ar que me embriaga. Desnudado, de cada vez que em desabafo suspiro, oiço roufenho o meu peito despertencente do meu corpo. Cego, trago no ventre o vento que me sustem. Não tive mãe pertencente ou sinto pertença de uma mãe. Construí a mãe no pai da minha filha. Elevo o sangue juntando corações que se quedam no horizonte inquieto. Turbulenta, a vida passa-me numa rajada de ventania, dilacerando-me o corpo presença de traição e amor injustificado. Juro vingança aos céus inexistentes de deus, pela ensanguentada juventude na mórbida vontade de estar vivo. Anos depois de “amorfinado” me encantar, canto em acordes inventados, uma canção que dedico às flores. Sorrio em tons suaves de violeta o regresso, saúdo a existência da liberdade e os pedaços de florestas amortalhados em mim. Desencanto encantamento em cada canto de mim, e, sublime vejo a vida de beijoqueiros namorados soltar-se em lírios perfumados, desafiando-me para além dos anos. A idade não tem tempo e o tempo não tem idade. Cabem mil anos numa vida e tempo nenhum na permanência arrastada dos dias. O cheiro a mel nesta terra adormecida entontece-me e purifica-me. O odor a semi-geada é cerebral. Sinto-o do ano que não passou, sinto-o do ano que ficou na minha alma. Os anos fedem iguais, em estações diferentes. Os anos, as estações, e os cheiros, são como eu. Reinventam-se nas quimeras azuis do céu.