Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cardilium

Cardilium

Fingimento

Finjo que não reparo nos teus olhos brilhantes que me apetece seduzir, e, desta marina ancorada soltar as amarras e bolinar oceano adentro uma noite inteira tornada momento. Finjo que não reparo no teu elegante caminhar, e na forma como os teus lábios exalam as palavras perseverança, encantamento e esperança. Finjo que não reparo na forma como deitas os olhos ao mar. Finjo que não reparo nas tuas mãos desenfreadas, bailando no convite que as minhas ambicionam sonhar, sem anúncio prévio e concedido. Finjo que não reparo na existência de fé na tua face. Finjo que não reparo na minha própria vontade. Finjo que não reparo na forma como te abraço e no conteúdo do abraço teu. Finjo que o teu cheiro não me encanta e seduz. Finjo tanto, que de tanto fingir, forjado me torno real, julgando-me ainda o inventor de alquimia. Finjo que o tempo não voou e aquando do seu anúncio de partida, finjo aceitar que o tempo existe medido, e não na forma inexistente e do tamanho que o tempo tem. O tempo não existiu avaliado e parco, o tempo esta noite viveu vindo do mar, bonançoso, empurrado pelo vento da esperança, e pela madrugada alienada da vontade de o querer castrar, matando-lhe a existência e tornando aquele pedaço de vida, eternidade.

Finjo que os teus lábios não são lábios, que as tuas mãos não são mãos, e que o teu olhar não é luz. Finjo que o sonho não é meu, que o meu querer não é o teu. Finjo deste fingimento anunciando paixão.

Ausência da lenha ardida

Estou de alma limpa,

Purificado de enganos meus,

Amantizado com o passado, purgo-me,

Despertado numa madrugada infinita,

Numa vida que parece um sonho contado.

 

Estou debruçado sob uma manhã clara,

Erguendo-me de um precipício falido,

Fracturante e esguia realidade,

Gente canalha e abismo,

Guardo em mim um sorriso.

 

Defunto espasmo abandonado,

Alicerce erigido e cimentado,

Poeira dos cascos assente,

Da ausência da lenha ardida,

Nas noites de trevas e invernias.

 

O orgasmo cai no desejo,

Morte e vida metamorfose,

Índio, cigano, chão e lua,

Experiencia desengano,

Cerram-se em mim as noites, protestando.

 

Hipótese remota

Na hipótese remota de um dia me adequar ao sítio onde tenho que me habitar, solicito força divina na esperança de me ocupar em jeito de distracção. Não sou por natureza agradador ou pedinchão. Aceito com decisão o que se me opõe e disso faço obra. Não me adianta adiar ou querer transformar o que não é transformável.

 

A vida oferece-se ou impõe-se?

 

 A vida dá ou retira?

 

A vida escolhe ou dá a escolher?

 

A vida é desígnio ou solicitude?

 

A vida não é mais do que um embriagamento momentâneo de instantes não esperados, normalmente transformados em desesperadas vontades não cumpridas. Não adianta não cumprir o caminho. Não há outra forma de nos bastarmos, de nos conhecermos. A vida não nos pertence, a vida é um carnaval constante de máscaras e demências que se crê que, levadas a sério são a vida. A vida é potenciada por dissimulações de sorrisos e lágrimas de ocasião.

 

Um dia, um homem de longos e profundos olhos da cor do mar disse-me: “ a tua morte seria a minha vida”; não entendi tamanhas e desprovidas palavras de emoção. O tempo augurou-se nele próprio e uma dúzia de anos depois, entendi, que o sofrimento dos que amamos poderá ser libertado na alegria que a morte pode vivenciar. Um homem sábio faz mais do que diz. Não diz: vou fazer, agora não é altura, não existem condições para. Um homem sábio faz, sem dar conta que o fez e não existe nas comemorações da sua obra. Um homem sábio faz as contas no fim de executado, e guarda os resultados no peito, feito de coração e alma.

 

Escrever é estripar-me, é dilacerar o meu sentir, é a forma mais real de desconhecer a vida, sentindo-a. Escrever é fazer contas comigo, é morrer cada dia vivendo-o, é viver cada momento no estranho esquecimento da existência. Viver é descobrir na filosofia, as questões que jamais alguém nos responderá. Acredito antes da religião, no debruce do ser humano enquanto indivíduo, residente e alugado, neste universo, como entidade de sobrevivência. As redes sociais são a continuação da demência colectiva enquanto “post´s” dos pensamentos dos outros, pela incapacidade de isolamento e contacto, com o que se quer ser, ou dizer. São a alienação e projecção de nós nos outros.

Não espero ser compreendido. Isso seria a morte da morte, na minha vida.

 

Na hipótese remota de um dia me adequar a este sítio, vou-me habitando no pós FMI.

Tenho uma gaveta que cheira a um amontoado de papéis antigos

Tenho uma gaveta que cheira a um amontoado de papéis antigos, que sentem o que eu senti e ali depositei confiado. São os meus pedaços sentidos de vida. São os meus segredos revelados, as minhas angústias divididas, as minhas manhãs de ressaca, o meu dia adiado de décadas. Não creio nos desígnios de deus, não creio que ele retire ou acrescente pessoas à minha vida. Não sei porque deixa ele morrer os nossos pais, ou, mais doloroso ainda, morrerem os nossos filhos antes de nós. Quando o vento sopra inspiro nele, ar. Faço-lhe peito e nele me vou. A vida é feita de dias pequenos e noites desmedidas e demoradas. As noites dormidas são desencantadas, é como se morrêssemos nessas horas, e não pudéssemos viver o que a noite tem para nos entregar. As noites acordadas são sentimentalmente mais ricas, ou porque o sentir é tanto que não nos deixa adormecer, ou porque o medo é do tamanho da própria escuridão, ou ainda e simplesmente, porque o amor embriaga-nos de tal forma, que ao fecharmos os olhos agoniamos. A vida corre da nascente para a foz, sem percebermos que no seu leito existem afluentes, zonas estreitas e rápidos, lagos mansos, e margens verdes enfeitadas de cheiros a flores, com árvores cambaleantes e curvas como nós, com o tempo, havemos de ficar.

 

Tenho uma gaveta que cheira a um amontoado de papéis antigos que está cheia. Cheia de prantos e orações, de convites e negações, de pó metido nas veias e suor carregado de sal. Está cheia de lugares com ruas calcetadas e calcorreadas, de esquinas apodrecidas de solidão e luz ténue quase extinta. Está cheia de mulheres sem existência, desnudadas de vida, esquecidas dos filhos que pariram, cheia de pancada e polícia de choque, de fugas e labirintos, de carne apodrecida e morte a monte.

 

Tenho uma gaveta que cheira a um amontoado de papéis antigos que se está a encher. Está a encher-se de alma. De nuvens cinzentas rasgadas contra o sol. De abraços desgarrados e anunciados, e de algumas pessoas de quem eu gosto. Está cheia de garra e esforço, de sucesso e não desistência, de fé e trabalho, de noites acordadas e vividas e de prantos. Está igualmente cheia de beijos e café, e de um trilho feito sem desenho, levado pelas marés da intuição. A minha intuição é o que vale. Não vou em nomes de família ou desenhos arquitectados de agradabilidade. O genuíno não se anuncia, apresenta-se tal como é, sabe entrelaçar os dedos da mão que dá, não come sushi e gosta de arroz de tomate com pimentos e carapaus pequeninos fritos.

 

Tenho uma gaveta que cheira a um amontoado de papéis antigos, cheia de vida e alma.

“adeus tristeza até depois"

Bem-vinda sejas livre de idade,

A que chamas liberdade.

Soltadas as amarras,

Desprendidos os pensamentos,

Experiência emancipada de vida.

 

Bem-vinda seja o teu nome,

Debruçada na memória.

Mutação, reflexão, metamorfose e parecer,

Valor dado às promessas expressas,

Sem ontem serem hoje, as que não foram.

 

Bem-vindas as palavras de ajuntamento,

Ao invés das que se afastam.

Livre arbítrio amortalhado,

Que se fecundem ramos de abril esquecido,

E nas nossas vidas voltem as madrugadas de: “adeus tristeza até depois”…

Haja tacto

Tenho a sensação que as manif´s são a continuação dos festivais de verão. Parece que esta merda sempre esteve boa e, agora, por obra do divino ficou má. Por onde se têm passeado estes “agitadores sociais” nos últimos 37 anos. Tenho a sensação que, quem vem protestar tem muitas culpas no cartório. Onde estava esta gente no reinado do cavaco e do durão, do soares e do sampaio, do guterres e do santana. Uma pergunta mais simples ainda, onde estava esta gente, nas autárquicas, nas presidenciais e nas legislativas.

 

Agora? Agora já era. Os de esquerda eram isto e aquilo, raios e coriscos, mas vai-se a ver e … estava tudo lá, não foi por falta de aviso. Já desci a avenida sim, éramos seiscentos e no final estava a polícia à nossa espera. Tantas palavras me explodem na cabeça que me retiram a força de falar. Não desço nem subo mais avenidas. Isto está como está, pela distracção e ausência de décadas. Agora, está feito … agora que o umbigo está a descoberto, preocupam-se. Estava tudo revelado, nada se está a revelar… o 15 de Setembro de 2012 não é diferente do de 1984 ou de 2000. Haja tacto.

Filha maior, vida minha

Sonho o ventre arredondado e belo, antes mesmo de te tocar parida. Pronúncio, vento de mudança eternamente fundido em mim, chama de luz e caminho, sono e mensagem exalada de ti, transbordante alegria e sorriso, filha maior, vida minha. Decido nascer contigo mais adiante, para juntos crescermos sem termo. No teu encanto habito. A tua sofreguidão no olhar acende-me a cada momento pensado de desistência. Não precisas de palavras para me dizer o que tens para me dizer. O teu feitiço está na tua existência, o prodígio na tua vida, o que nos acontece é abraço vivo e robusto. Oiço-te cantarolar desafinada, aos meus ouvidos soa, como a mais bela sinfonia. A saudade não avisa quando me invade. A alegria, igualmente não se separa com a saudade, e, assim faço da saudade e alegria a tua presença, e, com as duas, existes dentro de mim.

 

Filha maior, vida minha.

Do nada, tudo, num todo

Do nada, tudo, num todo. Já fui infeliz solitário e descontente acompanhado. Agradeço a todos os homens e mulheres que se despediram ao partir. Conservo os que fizeram parte da minha vida, na demora de um abraço. Zelo pelas almas que zelaram pela minha. Adubo a saudade que quero cultivar e sentir. A saudade retorna-me à felicidade e aos momentos que aceito existirem como únicos na minha vida. Quero aclamar a nostalgia como a alegria do retrocesso. Se, se foi feliz um dia, ser-se-á sempre contente nesse tempo. Ser-se-á sempre feliz noutros momentos igualmente que, o que o dia nos tem reservado em vida, não é desígnio fecundado pela vontade. É, tão e mais somente, uma dádiva eloquente e incontrolável do que não escolhemos, mas que apenas podemos aceitar. Os caminhos não se escolhem enquanto se erguem. A vida tem tanto de dor como de celebração. Os outros são ninguém, na nossa riqueza afectiva. Nada é diferente de ninguém. Ninguém é, a responsabilidade de nós sobre nós. Nada, é pobreza e a infelicidade da insignificância. Quando nos temos, temos alguém. Quando não temos nada, temos em sobra, ninguém.

 

O vento arrancou-me melancolicamente o coração, isentou-me a esperança, e recuperou-me a vida. Desapoiado alcancei-me. Numa noite de mato húmido, fria e invernosa, dei as minhas veias e fechei os olhos. Invadiu-me um vulcão que me cegou, para, segundos depois, me conquistar uma paz devoradora, que não mais quis que se fosse. Foram anos de ninguém, meses de nada, desmoronamentos ruinosos de morbidade desesperançada e, aí sim, me excluí num laivo de discernimento. Carregado de dores desentendi-me com a verdade que antes exaltei, e parti.  

 

Era tempo de partir para mim. Foi tempo de me receber. Desconhecido, aflito, inquieto, prenho de incertezas e sem me reconhecer, fingi. Fingi vida, sorrisos e até orações. Continuo numa deriva que questiono. Cada vez mais me excluo e incluo no mesmo minuto. Os anos ensinaram-me a não ter que ser. Ensinam-me a ser apenas pertença dos pedaços de mim, reedificado. Uma parte de mim é forte e decidida. Outra, fraca e não imune. Desintegro-me de pensamentos, de diferenças, mais do que semelhanças. Chego a ser único em mil. Atordoo o cinzentismo no olhar. Chego, e logo me apetece partir, e, quando parto, não tenho pressa de chegar. Sou metade loucura desta sanidade insensata e isenta que estimo.

 

Do nada sou tudo … num todo.

Lisboa

A primavera está em construção. Findaram as noites irradiadas de luz, acrescentadas à vontade de o dia não se ausentar. A passarada em debandada exclui-se por uma vida melhor, foram atrás dos dias das horas compridas. Devia assim acontecer aos mineiros, metalúrgicos, ilusionistas, carpinteiros e às mães. Às mães que precisam de pôr comida nas refeições dos filhos e pais desempregados. Devia ser simples como a debandada dos pássaros. Imigrar. Emigrar neste mar nosso e salgado, feito de lágrimas de Portugal.

 

Vi Lisboa de lágrimas nos olhos, adormecida na sua luz, sedenta de vida como o rio que lhe passa sem a rasgar. Vi o azul subir a encosta e o bosque descer até ao mar. Vi as ruas cheias de cidades e o mundo numa avenida só. Vi praças torneadas como as pernas de quem lhe passa. Vi a poesia solta aos malmequeres, nos bairros e no castelo altaneiro, erguido e calmo. Vi o sol esconder-se em monsanto e a lua elevar-se de prata, sob o bugio. Vi os jerónimos de mão dada com torre em belém, a beijarem-se. O marquês e o saldanha a rebolarem-se no parque. Vi a graça a seduzir a sé, e o tejo ajoelhado ao cristo rei. Vi as ruas enfeitadas de Santo António e a avenida engalanada de bailado. Vi o jazz sair à rua na praça da alegria, e o teatro esbracejado no dona maria. Vi o são jorge a rir-se com o tivoli e o coliseu alienado nas portas de santo antão. Vi os domingos rezados na estrela e o futebol dar vivas em alvalade. Vi uma cidade feita de um país e homens reconstruídos de um abril solidário e ausente. Vi o Almada e o Pessoa, o Eça e o Bocage, o Pacheco, o Saramago e o Camões maestro desta cidade, sitio encantado. Vi partirem os descobrimentos. E a liberdade a passear-se por aqui, nesta Lisboa irrepetível.