Sigo-te pelo perfume que os teus passos deixam ao passares. Sigo-te pelas palavras que os teus olhos dizem quando me olhas sem me veres. Sigo-te pela voz que oiço das palavras que não pronunciamos. Alimento-me nos sonhos invisíveis e secretos que me embrulham. Enlouqueço-me neste fim de tarde na espera que, visível me reconheças. Sinto-me escondido do mundo desassociado de ti. Presença estranha e recôndita de um presságio sem anúncio. Idealizo mil momentos, frases, gestos, olhares, sons, sorrisos, nasceres de sol, luares exclusivos, montanhas de riachos cristalinos, mares revoltos, sedução da natureza passeando à minha frente envaidecida e gloriosa, pedaços de neve, gentes de luz, invasão de nós, pronúncia e línguas desenfreadas nos nossos beijos. Sentado sob esta ilusão, espero que repares em mim sentado no areal, como se de mim, saíssem labaredas em sinal de presença, fogo e marcas de vida que não vês. Cada vez mais azul o mar distancia-se na maré vaza. Na espuma branca balançam-se gaivotas que eu invejo no seu baloiço. Já quis ser gaivota, céu, nevoeiro e até morte. Mas sou vida. Vida que questiono, vida a que pergunto e não responde. Já sobem as madrugadas rua acima, quando os meus pés moídos de mil pensamentos se descalçam e descansam. Do outro lado do mundo anoitece, e a vil esperança mantêm-se inalterada e destrançada, sem movimento e inerte, nesta erva plantada de árvores onde me espreguicei no cansaço de não querer mais, querer-me. Esta vida a sós é desistência. Desistência no sentido de uma não existência. De não existir. Resistência de não ser existente enquanto desistente. Continuo com os ombros carregados de mundo. De mundo denso de esforço. Do peso do recomeço e do medo de não reparares que sou ..........… igualmente perfume e palavras.
O passado, essa oferta envenenada do presente. O presente, esse adiar constante do passado. As amarras cravadas erguem as fundações que sustentam o meu aqui e agora. As mãos já negras de tanto pisadas, ensanguentam-me a alma de medo, essa imagem invisível presente e envelhecida.
Um dia, num bosque perdido de mim e de caminho, vislumbrei entre as folhas cerradas das arvores um raio de luz. De já nada ter a perder por já tudo ter perdido, ergui-me e segui-o dentro do escuro, às cegas, aquele breu foi ficando menos negro, clareou, e embranqueceu cada vez mais. As dores passaram-me, os suores ficaram indolores, e a cegueira menos autista. Entre as folhas rarefeitas, não procrastinado, dei-me com o azul dos olhos do meu pai, chorosos de ausência, risonhos de presença. Deu-me o seu braço, que acabava na sua mão apertada na minha, e caminhou comigo até aqui.
Num outro dia semelhante, abracei a minha filha, vida da minha vida, vida que gerei numa madrugada à beira de uma fonte. Nascente de vida esta graça. A luz e a existência uniram-se naquele momento, agregando neste dia o prodígio de permanecer presença. Sem palavras dei-lhe o meu peito, e o conforto do seu corpo no meu colo, engrandeceu de vida o meu coração, transformado agora em entidade soberana e superior.
É dos pequenos raios de luz que recebo os sinais. É na mudança da estação que me transformo. É no cair das folhas húmidas de Outono, que os meus passos se tornam macios e silenciosos. É no frio que corta a cútis que a metamorfose se instala em mim. É nas noites longas e invernosas que me embebedo de mim, e as amarras não me permitem atordoar-me de ti.
Vivo angustiado de desconhecimento. Quem me conhece? Quem sabe que um dia morto sobrevivi. Quem me entende ateu? Quem me aceita alienado, exasperado, sereno, brando, refugiado nos meus papéis, nos meus acordes, na minha diferença, nos meus desgostos, nos meus prantos, nas minhas viagens de insignificância, nos meus valores concretizados?
Quase nada me interessa, do que interessa aos demais. Quase nada do que me faz rir, faz rir alguém. Quase tudo o que me faz chorar é diminuto na consciência colectiva.
Sou coercivo e demagogo,
Foz e poente estridente,
Bolina mal vinda num fim de tarde de verão.
Sou ventania em agudo,
Zumbido constante,
Vida dos que não me querem.
Sou sol doirado de inverno,
Pacatez sossegada,
Embriaguez fascinada.
Sou tudo isto e não sou nada,
Abundância e madrugada,
Passado e promessa envenenada.
Sou floresta e bosque constante,
Solidão, presença e encantamento,
Refúgio de mim demente.
Fiquei fascinado com aquele homem que me falou desta maneira e se descreveu assim. Perguntei-lhe: - és deus?
Sorriu baixinho e disse: - deus e diabos somos todos nós e não o é ninguém. Somos apenas desejo e vontade, e quando elas são muitos fortes, todos somos o que desconhecemos ser. Senão repara, continuou. Os políticos, os padres, os filósofos, os poetas, os médicos, os professores, os pagãos, os colonizadores, e tudo o que se possa ser, estão ou estarão algum dia tão perto da morte que a aceitem? Estarão um dia tão perto da tristeza que a tolerem? Estarão algum dia tão perto do desencantamento humano que cedam? Estarão tão perto um dia da pobreza que não promovam a guerra? Estarão algum dia tão perto da fome que não ambicionem a fartura? Estarão alguma vez tão perto do desamor que não mintam por sexo? Estarão algum dia tão perto do suicídio que o entendam como liberdade? …
Aquele homem teve todas as respostas com as perguntas que me fez. Entre a neblina suave que acordou com o fim do dia, apertou o seu peito de encontro ao meu, e disse num tom que eu nunca ouvira antes. Até sempre. Numa despedida permanente e adiada … partiu mas ficou.
Restos de bocados de homem despedaçado em fragmentos de dor, passeia-se vagabundeando pela cidade tardia. Melindrado pela angústia de uma lacuna parte de si, insensível e roubada, pela necessidade de numa noite se ter ausentado de si mesmo, aniquilou o sentir e não mais voltou. Estilhaçado, procura as porções de si, em cada vida dos outros. Parece inteiro por fora, sem passado e sem memória, fala fluente, mas não ri. Lê e escreve, faz canções que não canta, mas que guarda em cada estrela de baú. Sofre-se mais do que se devia e do que se devia mais de sofrer. Encanta mais do que sorri. Fascina-se nos olhares fixos e longínquos, meios esquizofrénicos e absurdos, não ouve por aí além. As palavras ditas são o seu cansaço e as escritas a sua liberdade. As horas são mais transferências de quebranto do que de momento. A sedução tem-na na natureza. O passado é um presente inesquecível. Bairros amargurados de crianças recordadas pela miséria de se ter nascido sem merecimento. Homens e mulheres autómatos, movidos por sinais e rituais que ninguém entende, porque não se lê o que se sente, não se estuda o que não se entende, não se disserta ausência, apenas se vive o que se sente. Estado demente e dormente este, feito de opiário. Recordo Álvaro de Campos:
Por isso eu tomo ópio. É um remédio Sou um convalescente do Momento. Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.
Escrevo estas linhas. Parece impossível Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta! O fato é que esta vida é uma quinta Onde se aborrece uma alma sensível.
É antes do ópio que a minh'alma é doente. Sentir a vida convalesce e estiola E eu vou buscar ao ópio que consola Um Oriente ao oriente do Oriente.
De repente, na calmaria da noite na baía, ergueram-se ondas. Corpos submersos e amados rebolam-se no chão de lodo e areia grossa que deixa marcas nos nossos corpos. As estrelas tocam-nos na passagem da noite para madrugada. Semi-nus antes, nus depois, rimos, nadámos e não dissemos nada, vociferámos silêncios, e trocámos as nossas bocas de língua. Cheira a lenha ardida e fumo repousado na outra margem. A noite não existe, excepto ali. Não está frio, nem faz calor. O tempo está descansado com o céu em nós, junto com as nossas mãos, desbravando a isenção de peso na lagoa fundida connosco. Sabe-me bem o cigarro e o sorriso do inesperado. Nada é novo, quando os dias não se separam dentro dos anos. Nada é novo, se um dia já o foi. Nada é novo, se uma noite te acariciei a alma com o coração. Nada é novo, quando posso ser eu existência. Nada é nada. Nada é a simplicidade de muito e tanto. Os teus orgasmos mantêm-se em tremor, gemidos, com a mesma entoação de sempre A saudade cresce no momento seguinte ao subsequente. A barragem imóvel espelha-nos. Secamo-nos ao vento e alisamos os cabelos entre os dedos, não tarda a civilização está aí, e, precisamos abordá-la respeitosamente. A loucura do momento está presente nesta ausência de anúncio. O segredo é o recato das palavras, a decência do vento a tocar-nos, o embalo suave dos pássaros. A felicidade é este chão, este fogo, este céu, este rio, este cheiro, este pinhal, esta estrada, esta foz, este convento, esta praça, esta aldeia, estas estrelas, este silêncio, esta agitação e este abraço prestes de explosão e distância aguardada.
Irei edificar um altar à nossa senhora do silêncio. Não me conste que exista essa santidade, tal é árdua e inexequível a sua manutenção na tarefa do silêncio, esse bem precioso, magnífico, desusado, que escasseia, e é cada vez mais raro. No Livro do Desassossego, Bernardo Soares bem tentou desfolhar os seus sonhos silenciosos em folhas secas de palavras ditas. As palavras são isso mesmo, as necessárias, e não mais do que as necessárias. Há palavras em demasia, usadas demasiadas vezes, em desregramento e de uma forma desconjecturada. Quando era miúdo, a minha avó pedia-me para ir comprar qualquer coisa, ela dava-me a demasia, e a demasia, era a demasia, era o troco do que sobrasse da compra. E as palavras são isso mesmo, o troco do pensamento, do sonho, de um reposta. É a demasia que, com conta, peso e medida, medida pelo silêncio, nos vigora as oportunidades.
O excesso polui, é supérfluo, e torna-se numa necessidade psicológica de divã. Leio, cada vez mais, na intemperança das palavras mal aplicadas, carência social, solidão, miserabilidade, brilho intempestivo, inadequação, barulho, necessidade de aceitação. As palavras mutam-se desregradas, semeadas de risos inapropriados e nervosos. Como sempre, o exemplo vem de cima. Desorganizada, a social demência politica que nos domina, assaz, obriga-nos a ser inventivos em defesa da maliciosidade dos nossos dias, decretados em leis escondidas e promulgadas, sem direito a opinião. O silêncio geral isenta o pensamento, o debruce das ideias, a conclusão dos ideais.
O ruído é o que dá jeito. O ruído morde-nos a alma. O ruído espelha-se nos jornais e noticiários. O ruído reflecte-se na fome e na amordaça. O ruído reflecte-se no silêncio da revolta. O silêncio promove o direito à revolta. Há que manter o ruído, aniquilar o silêncio. Mas não …
…. Na verdade há que em silêncio deixar gritar o pensamento. O ruído castra. O silêncio é evolutivo. No silêncio tudo se escuta e se decide.
Parcas, suaves e singelas são estas palavras que te dedico sob este silêncio da noite, para que não as escutes ou as saibas aqui, tao longe de mim quanto de ti, que os meus dias nunca mais foram iguais ou parecidos com o nosso futuro já longínquo de passado que me entregaste. Nas mãos tenho umas linhas fundas e profundas, a que os magos chamam destino, não crente, creio nos âmagos dos beijos que me deste e na devolução das noites em que te amei. Possuo em mim, do lado de dentro da minha pele, um cheiro impregnado que nunca ousou ausentar-se nem satisfazer-me, constituindo-se pela verdade e ausência, em saudade.
Gozo a memória do meu arrepio e prazer, do deslumbramento poeirento da seara onde se ergueram as musicas que nos tornaram autistas, desconstantes, descoerentes e coloridos, numa falência humana desorganizada sentimentalmente, única e irrepetível.
Sinto em mim esse verão feito de um frio descomandando e visceral, logo seguido de uma tórrida dor no peito. As casas semelhantes de um piso só, regularmente caiadas e frescas ao entardecer, são o movimento da imobilidade daquela terra, semeada de paixão que nunca foi colhida no meu ser. Regressado cem mil vezes aquele sítio, nem de uma só vez se deixou o meu sorriso aparecer. Revejo-te em cada madrugada no morro defronte ao mar.
Descortino nas rochas onde adormecemos a maré com que acordamos, mas tu não estás, a maré não te traz, foste na maré cheia e não vens na maré vaza e cem mil marés já se fizeram, cem mil voos de gaivotas grasnados me comoveram, e mais de mil pensamentos de ti não assassinaram a tua lembrança, o teu cabelo, o teu ar de menina do mundo, os teus passos reluzidos na areia húmida como os nossos beijos, beijados pela maré.
Na alvorada cor de cinza partiste. No refúgio de mim me refugiei, mais, muitas mulheres tomei na esperança ignóbil de que fosses uma delas, sabendo que nenhuma delas serias tu. Não existe uma aclaração em mim de ti. Não existe nada oculto se existe tudo tão claro.
Um dia, trar-te-ei novamente como um pássaro/peixe/paisagem/mar fecundo e plural. Um dia feito de ti não terá vinte e quatro horas, um dia feito de ti, tem a eternidade do sonho descrito e desaparecido. Um dia feito de ti, seremos nós.
Não sendo, estou de bom senso, estando ergo o momento. Os deslumbres interiores produzem-se a partir de estereótipos, ora sonhados, ora transmitidos ou apreendidos. Nenhuns destes estágios são definitivos. A sociedade organiza-se em fundações analógicas, depende sempre do lugar onde nos inserimos e da perspectiva de onde observamos. Os pressupostos que partilhamos ou defendemos são meras utopias induzidas e calculadas. Numa visão egoísta suplicamos o que necessitamos, despreocupados com a justiça social ou as síndromes e inquietações provocados em alguém. Conjecturamos humanamente o futuro, sustentamos em palavras felizes a nossa própria necessidade ou vontade, desculpabilizando-nos pelos acessos concebidos, nas atitudes usadas, nos nomes trocados, nos autores que nos amparam o momento ou a frustração idealizada castrada. Socorremo-nos de Gandhi, de Pessoa, da Madre Teresa, sei lá, de todo e qualquer pensador que admitimos que pense por nós, retirando do contexto, o alterando a pontuação, serve-nos para isso, a modernidade contemporânea de uma qualquer rede social. Pensar faz falta. Não ter ideias próprias é carência. Não arriscar, é privação do próprio ser, enquanto ser.
Janelas? Tenho-as! Com luz. Janelas que fecho e abro sem obrigações. Sem debitar a responsabilidade de mim, em palavras desusadas, tantas vezes desconceituadas e descontextualizadas em interpretes celebres numa qualquer rede social. Sou responsável. Assumo as minhas ideias, ideais, coerência ou não, mas sou e estou.
Não sendo, estou de bom senso, estando ergo o momento …
No elevado do monte sublime a lua fica mais perto. Quase que lhe consigo tocar. Iluminada, a escuridão fica límpida. A alma leve, transparente e cristalina. Os olhares ofuscam-se encandeados e brilhantes. As folhas das árvores tornam-se luminosas e a brisa fascinante. Nos poros da terra a esperança vigora rejuvenescida. As rochas amontoadas gemem húmidas, a luz que se reflecte nas sombras dos corpos nus, despidos de preconceito, e das mãos apalpadas pelos corpos igualmente. Parou o mundo cinco minutos, não, vinte cinco minutos, trinta minutos, sei lá quanto foi o tempo. Os pólos não degelaram também. Ao longe, as luzes tornam-se ténues e candentes pela distância, assimétrica. Houve-se roufenhos ruídos de animais residentes no seu habitat, a espaços, no seu espaço. Pousada no céu, a lua, não tardará a juntar-se ao mar, como horas antes o sol o fez, sossegadamente.
O momento é de vislumbre, o teu rosto cândido antes, fogo depois, o teu olhar a pedires-me, a tua respiração a despedir-se da normalidade, o teu peito incandescente e as tuas mãos a cravarem-se-me nas minhas costas, excluem-me a frequência do meu coração. Já não falamos mais língua nenhuma que não as nossas e a dos nossos corpos. Curvas-te em sigilo, pedes-me com o teu braço no meu ombro que te tenha, como o brilho que temos da lua, perfeita, simbiótica, harmoniosa, sem pecado, animalescamente ternurenta. Sabedor da ressaca do dia seguinte, alheio-me, perpetuo-me de seguida nas gargalhadas satisfeitas do momento, aliviado, renovado, sentido, cúmplice, retornado às arrecuas e aos avanços sensoriais, únicos, indecifráveis e indiscritíveis que me deste tu ... luz de lua, feitiço e encantamento.