Paz podre, silêncio e mudez. Palavras por dizer, gritos por gritar. Repensar é benévolo. Pensar a memória, a morte, a vida, a fome, a guerra, o romantismo, o sonho e a ficção, os sentimentos de cristal despedaçáveis, frágeis e quebráveis, o futuro feito ontem, o depois do amanhã vindouro, a história feita de estórias, os filhos e o medo, isto é a memória do que sou, subsisti e habitei. O silêncio é, um aliado necessário, irmão da solidão, trilho para a decisão. Os sabores, as cores e os cheiros, alteraram-se. As montanhas, os mares e o sotaque, são esta coisa de que sou feito hoje, a que chamo memória, passado, património, o que quer que seja, é este arco entre o que foi e o que é, que faz de mim o que sou.
O que recordo?
Lembro o Pessoa, o O´Neil, o Torga, o Eça ou o Camões e outros viajantes primeiros e principais. As personagens que crio são a natureza que invento, a democracia prezada já exilada e ausente. Pensar faz falta mas está desusada, logo, não se pode repensar. Já não sei se o que cresce é a lua, ou o luar, se é o meu olhar, ou esse lugar na noite que contemplo. Já não sei se existe meia-lua ou lua meia, maré vaza ou mar por transbordar, como quando eu me transformo em reflexão e resposta.
Transborda de mim memória, morte, vida, fome, guerra, romantismo, sonho, ficção, sentimentos de cristal despedaçáveis, frágeis, quebráveis, futuro, amanhã, história, estórias, filhos, medo, silêncio, amores, solidão, trilho, decisão, sabores, cores, cheiros, montanhas, mares, sotaque, passado, património, o que quer que seja …
É este o arco, entre o que foi e o que é, que faz de mim o que sou.
Denomina-se por contradição o processo de maturidade de uma decisão. Começa-se nos “prós e contras” e termina-se nos prós / prós da vontade, subtraindo-se assim, a fase antecedida e denominada, contras / contras. Assim se vai abalançando e apreciando a vontade e o desejo, em prol da irracionalidade estoirada e exausta de tanta racionalidade, dando assim azo, à emocionalidade vigente da felicidade, mesmo que amiúde, ténue, disfarçada e/ou efémera.
Parece complicado e dissemelhante este exercício mental e incoerente do espaço que habita entre “os prós e os contras”, mas sem ele, jamais poderia alcançar a paz conquistada pela liberdade decisória e resolutiva, quando não tenho a certeza do que fazer, dizer, ou simplesmente ser.
Possuo compassos e pautas dentro de mim, rimas feitas de flores, olhares meigos, sorrisos esboçados, lírios desabrochados, faces rosadas como romãs, cabelos de fios de oiro, adornos construídos de cheiros, imagens transpiradas de carnalidade, luxúria, concupiscência, acordes de passadas sôfregas, sal no olhar, dores no peito, músculos de seixo, rostos inesquecíveis, viagens por repetir e muitas por iniciar. A cada hora que se esgota, renovo esta troca gasosa entre a respiração orgânica de ser vivo, e a oxigenada corrente sanguínea que me abre a mente e me reduz ao meu estado de anti ego, desinflamação necessária a que me remeto mais o mar. Adormeço a não pensar em nada, depois de em tudo ter pensado, agora, imperturbável embalo-me, não rezo, mas escuto o vento baralhado de estrelas…
Uma árvore cria raízes no solo que a sustenta. Uma vida sustenta-se nos paradigmas existencialistas e no seu reconhecimento. Ambas são móveis e evolutivas. O antes não é igual ao agora e não será nunca semelhante ao depois. O fascínio da quimera seduz a própria evolução. Presenteio-me muitas vezes com paisagens e cheiros, isso basta-me. Outras, sonho antes de alcançar, sempre o sonho equacionou e decidiu por ele, o que a tomada de decisão adiou. O enclave geracional transportou-me. O certo e o errado, a guerra e a paz, o bonito e o feio, as boas maneiras e a má educação, a sexualidade e a perversão, o pecado e a santidade, deus e o diabo, o frio e o calor como analogia no sentido lato da preguiça e do trabalho, o fascismo e a democracia, o amor e o desamor, a rejeição e a concordância, a alienação e a sobriedade. Todos estes conceitos são castradores e por norma induzidos. Quando não aprofundados pela existência e experimentados pela vida, podem ser perigosamente autoflagelados em nós mesmos. A vida é desordeira por si própria. Revolucionária em idade jovem, amadurecida pelo amanhecer mais tarde. A fase de sabedoria é o resultado da soma dos dias, são as dores e as alegrias, o prazer, a espera, o encantamento, o visionário sentir, o respeito, o tempo como ele é e a adivinhação experimentalista da vida, que nos amadurece e sustenta, como uma árvore que cria raízes no solo que a sustenta.
A casa de semblante frio de pedra milenar remete-me ao cheiro quente da lenha ardida em invernos ternos de luz ténue, e do tempo recorrido lentamente. No inicio da rua, logo no inicio, um tanque mantém embranquecidos os lençóis onde me deito. A cada noite me espero e invento um novo dia. Imóvel, o holocausto civilizacional, tornou este lugar de prados e vales de cor, no espaço mais perto do céu reconhecido por mim.
Renuncio à loucura sôfrega de estar sem me encontrar, de ser sem me apresentar, de continuar sem me verter, de sobreviver sem me reinventar. Desconexo caminho sem saber ou preocupar. Apenas respiro a cada passo as memórias que carrego. Hoje, o sol dá-me alimento. A terra seca de fendas abertas, demonstra-me as rugas da idade e do conhecimento que possui. O solo abre-se dos segredos que guarda, do gozo que tem no silêncio, da loucura que satisfaz a demência, no regozijo da incompreensão. Apenas alguns lêem as entrelinhas dos sinais expressos na natureza, escassamente outros acreditam num deus secreto e selvagem, todos os seres se revelam na não vontade profetizada.
Tenho saudades tuas e do castelo que habitas. Dos pequenos seios rijos e alvos, do teu pequeno tamanho, e do tamanho da altura que tens, das tuas mãos adivinhas do meu prazer, e dos teus lábios rosa nos meus, do teu arfar lânguido e desconcertante, do teu prazer imenso, das tuas intenções dadas com o olhar, da normalidade com que aceitas o meu distorcido método e ordem, sofismo e retórica. Acredito que nas brechas gretadas na terra, existes. Que no céu colado no mar, resistes. Que na sombria resistência, te invades. Que no amanhecer, vives e na existência sobrevives.
Fundem-se as almas antes dos corpos desassossegados de vontade. Parar o tempo pela eternidade existe somente numa obra-prima, na magia e no querer. As palavras soltam-se aladas e ritmadas por entre os lábios mordiscados e beijados. Um rio, transforma-se da nascente até à foz. Os nossos corpos ajustam-se da foz à nascente, percorridos numa metamorfose e magnificência. A nascente geme água de vida. A foz, desagua e salga de beijos as nossas bocas incandescentes e descendentes. Os nossos dedos entrelaçados de mãos ascendem e percorrem-me arrepiado, cada milímetro de pele desejada. A tua tez morena encadeia-me. Ainda me cheiras nos poros. Os nossos corpos colados não se querem separar, querem-se siameses. Prazer este privilégio ocorrido a cada cem mil anos, idade que contam as estrelas. Respiramo-nos em partes iguais, nós mesmos, como um todo. O sorriso acariciado descansa-me e alberga-me e, assim oferecido, retempera-me. Desenho no teu corpo mil imagens que cristalizo na minha memória. A madrugada já se despoja, não tarda, a manhã clareia. Não me importo. Se feliz, acordado me rejuvenesço.
Se numa única vez na vida existo, tem uma vida então, este minuto.
Ao segurança que não me deixou tirar fotos no concerto dos “The Cure”, embora mil pessoas o tivessem a fazer, por mera embirração. Aqui lhe dedico estas singelas palavras, porque sei que pela minha boa saúde nunca irá ler isto, por sorte a minha ou até talvez porque apenas não saiba ler, aqui vai, com amor. Com muito amor.
Conheço o género. O cabrão do meu primo Carlitos tem tipo de segurança e talvez por isso, me fosse fácil descrever o que o homem me fez sentir.
Os seguranças não têm infância. São cegos de olhar e isentos de sentimentos. Imperturbáveis. Pólvora por detonar. Parece que a qualquer momento o pescoço, vulgo cachaço, vai rebentar. Sem sorrisos expressos e cabelo a condizer, intimidam pela imobilidade geral. Seres precisados de luz e conversão. Rígidos, de braços cruzados ou atrás das costas, lembram-me um rottweiler esfomeado, só que em feio. Esperam o primeiro movimento brusco para ignição de tanto espartilho. Pode até ser um abraço terno e sentido, dado à sua frente e desde que brusco, repentino ou espontâneo, pode ser risco de vida. Arriscamo-nos a ser degolados, como interpretação de que, um abraço é uma tentativa de homicídio. Deviam usar açaime, coleira, e cartão sanitário em dia, devido à sua perigosidade iminente e perigo à saúde pública. Malditos humanos estes transformados nesta espécie autómata, comandados pelo gelo das noites quentes e bailadas. Têm a morte na vida sem norte. Nota-se-lhes a opacidade de uma forma translucida. Que a noite os adormeça dessa dormência basilar e não os acorde nunca mais. Não existem acordes que os acorde daquela “estatualidade” induzida.
Nasceu uma fonte em mim. Uma nascente de fogo, incandescente e cristalina, uma noite de lua cheia, música intemporal, aciprestes e lua. Os amigos encontraram-me mais a sul, mais a norte de Africa. Debruçado no meu peito, sinto o discurso magnificente e preocupado de saudade, debruada. Uma colina estranha empolga-se e crava-se nas minhas mãos devagar, tal como quando a bolina se levanta, antes do vento. Sem decisão, a vontade transpira-se nos corpos despidos, aguardando calmos o momento extasiado que se sonha ser eterno. Os sonhos são sempre exequíveis desde que, antes sonhados. Ontem, o hoje era um sonho. Antes, os sonhos foram quimeras, devaneios, congeminações energéticas, delírios, estrelas e entressonhos. Uma não estória é um esboço romanceado, um soneto, uma travessia, um lugar no mundo, um assento da alma. A dor é: um estado de alma, um alarme do âmago, um pré-reencontro com a vontade, a impossibilidade de abraçar, a ausência e o desejo. Um acorde é: o sustento de uma clave de sol, o sentido existencial de uma pauta onde gravo o teu nome. É como uma gota de chuva antes da enxurrada, ou uma sinfonia feita de gestos de enlaço, cheiros, bocas e olhares, fusões desnudadas e sentidas. Aclara-se-me o adjectivo que desconheço de nome amor, uma existente farpa da mente. O amor é tão simples, que por tão simples ser, não é entendível. Não é representado matematicamente de uma forma racional e logica, não tem algoritmo de Huffman, derivada, matriz, primitiva, estatística não paramétrica, equação de terceiro grau, o que quer que seja. O amor de tão simples ser, não poderá nunca ser desenhado arquitectonicamente. É ilógico. Irracional. Verdade também. A forma mais próxima de entendimento que conheço está na poesia. Na saudade. Na vontade. Na dor. Nas camas desfeitas. Nos caminhos. Nas mãos dadas. Na hora da chegada. Nos cabelos soltos ao andar. No sorriso. Na cumplicidade. No olhar. No querer mais do que bem-querer. No arriscar ser criança. Nas palavras e na dança.