Sou sempre pequeno de idade, insuficiente em sabedoria, parco de ideias, escasso nas decisões mas abundante em ideais, assim me descrevo como homem. Tenho poucos amigos e gosto muito, de poucas pessoas. Por vezes entendo-me como uma aberração desprovida de sensatez, ou capacidade de criar laços. Sou demasiado exigente, pouco normal, mas cheio de uma normalidade que acho tão comum e rara. Não gosto de “bons gostos”, de bom senso, de moda, carros, telemóveis, essas coisas. Não me dizem nada, essas mundanas iguarias. Uma parte de mim quase não sabe falar, outra não se cala. Meia parte de mim é alegre e raramente ri, outra chora por nada e por quase tudo. Estar sozinho é a minha companhia, quando acompanhado fico enfadado, sem espirito de identificação ou pertença. Conheço-me tao mal que, acho que ninguém me conhece. Não tenho crises existenciais, mas sinto transmiti-las a quem me julga conhecer. Gosto de viajar sozinho, ver concertos sozinho, ir ao futebol sozinho. Estar acompanhado assusta-me, nunca sei a que minuto fico farto, e me apetece estar com a minha companhia. Gosto da noite e da manhã. Gosto de escrever. De me redescobrir. Da minha viola. Da minha filha. Do rio que rasga a minha cidade. Das ruinas romanas. Das estradas que eu conheço intransitáveis. De teatro. De livros. De t´shirts. De idosos e crianças. De mar. Muito de nevoeiro. De olhos. De lilás. De cheiros. De sexo oral. Da penumbra. De seminudez. Da montanha que avisto da minha varanda. Da minha varanda. Da minha mota. Da minha língua paterna. Do meu país. De futebol. De apaixonamentos. De Africa. Versos. Democracia. Liberdade. Pluralismo. De estudar. De ensinar. De verbos sem conjugação. De correr. De nadar. De consubstanciar.
Pára. Ouvi de repente mesmo do lado de onde oiço pior. Oiço menos do lado direito. O meu organismo escolheu livremente o lado de onde não quer ouvir a mensagem. Oiço mais e melhor do meu lado esquerdo, por inteiro.
Pára, já te disse. Toma um café forte, e um banho frio. Estás a delirar, lembras-te de alguma coisa que disseste? Na verdade não me recordava de nada. Acordei meio estremunhado. O meu dia ia ser farto de umas daquelas reuniões onde as pessoas se gostam de ouvir, e ao invés, de acrescentar, retiram. Afunilam. Degeneralizam.
O tempo que eu perco nestas patetices para ganhar a vida. Eu. Logo eu, que nasci desnascido de uma mãe.
Justiniano era o Incas, um engraxador que não falava, só sorria. Demorava horas a fumar um cigarro, que se lhe apagava no canto da boca e por ali ficava, húmido e escuro. O Incas era amigo dos que não tinham amigos, dos do gueto. Para a idade que tinha era muito idealista e visionário. Acompanhava os foragidos da lei como o Jeremias e a Etelvina, criações humanizadas pelo Sérgio Godinho. Não falava, mas do fundo do seu olhar olharento, balbuciava palavras que entendíamos conforme as queríamos entender. Ele não se importava. A sua filha fizera um filho num interail, como bónus do conhecimento europeu. A sua mulher vendia verduras no mercado diário e depositava as moedas no avental, e as notas no peito dentro do soutien. O Incas ajudava-a, sempre de sorriso misturado com um cigarro, sem palavras, mas vertendo no olhar um sorriso. Bebia mais de mil copos pequenos de vinho ao dia. Era o seu momento repetido, tão natural como a forma como respirava. Nunca o vi comer. Nunca. A forma como caminhava lembrava-me a cadência do relógio da torre, quando avançava a perna esquerda, inclinava a cabeça para a direita, e simetricamente o contrário. De quando em vez fugia deste mundo. Fixava os olhos num imaginado (para mim) ponto, em que se deliciava sorrindo e dizia qualquer coisa imperceptível, era bom de se ouvir pela revelação feliz do seu rosto, era como se tocasse os anjos com um beijo.
O Incas era o engraxador do Oásis, amigo do Burro Velho que deus tem.
A sazonalidade repete-se a cada estação. Jogam-se as sementes na terra remexida, como se remexe o coração com a paixão. Colhe-se o elixir, dádiva da estação, pronuncio abundante e sôfrego, recebimento da terra. É a admissão do milagre que se transforma nas mãos rudes do amanho apaixonado do sustento dos filhos feudais e latifundiários.
Nas sombras, dormem crianças filhas da terra. Uma cadela com ar terno olha-as, e de cada vez que um suspiro mais forte se respira, ou um dedo treme, as orelhas endireitadas e atentas escutam a vida pelo amor de somente cuidar. Os cantos do trabalho ouvem-se cada vez mais distantes num murmúrio de força colectiva, quando mais de longe se ouvem, menos terra falta por julgar, menos terra que falta à fome.
Faltam três quartos de sol à esteira. A água tem a hora da nascente presente. Numa enfusa de barro moldado bebe-se fresca pela cortiça de uma mão concha. Mais longe, despenteados os sobreiros testemunham, o sono, a escravatura, o sol cego e vermelho, a terra aberta de fendas, a revolta rangida pelos dentes cerrados, a música a esvair-se com a solidão e a raiva a nascer-se nos dentes. As carabinas a qualquer momento podem uivar de pólvora, assim nasça ali um qualquer letrado, exilado, regressado.
Não há machado que corte a raiz ao sentir e a escolha ao pensamento.
“Louca dor insuportável que me altera a expressão, que me entorta os olhos e denuncia a minha face afogueada. Uma droga qualquer aliviar-me-ia deste sufoco quase irrespirável. Suporto-me bem, aguento normalmente o meu corpo, mas cortava a minha cabeça …. E assim continuei disparando palavras fortes e imperceptíveis ”
O meu amigo de sempre olhava-me fixamente. Eu, não conseguia parar, enquanto não detectasse nele, algum tipo de sentimento reactivo a mim próprio. Ao invés, sabiamente, ele não me ligou nenhuma e começou-me a falar de um qualquer e endiabrado romance acerca dele próprio, com poucos, mas maquiavélicos intervenientes. Como gosto de estórias, ouvi-o com atenção. Construi e destruí várias vezes os meus conceitos opinativos acerca da sua estória, que, pelo avançar dos meses se transformou em história. Numa base de criação disruptiva, imaginei-me em cada um dos seus personagens, que já eram mais externos do que internos, e, apenas consegui não alcançar nada, a não ser a sabedoria do silêncio, e a isenção respeitosa de não saber o que é melhor para mim também.
Tinha ali então, em pedaços de construção extra pessoal, as minhas angústias saradas, os meus desejos bifurcados em rotundas e cruzamentos a perder de vista. As minhas palavras eram agora mais calmas, sentado do lado de cá de mim mesmo, onde fica a floresta à direita e a lagoa com cheiro a pinhal mesmo à minha frente, já não me enfrentava, apenas convivia enleado em paz e cheiros. Os cheiros alteram-se quando eu me altero. A minha cor altera-se comigo. As minhas mãos sentem e tremem comigo. Os meus pés feitos de passadas perdem-se no caminho. Eu fico lascivo ou casto, mediante as minhas cores de paixão, ou a minha rebeldia de solidão. Esta mescla desmensurada, alivia-me e pesa-me, e, isto tudo daria muito menos trabalho, se eu mesmo tivesse nascido eu.
A vida é feita de repetições sentidas de maneira diferente. É cíclico a forma de nos sentirmos, embora os acontecimentos possam ser desiguais, pelo contexto inerente ou temporal. Chocam-me as repetidas frases retiradas de pensadores publicados no facebook. São procuradas e interpretadas, pela cruel necessidade momentânea, de justificar as repetições sentidas, as vivencias que quase se acreditam ser reais. Na verdade, ter uma janela escancarada ao mundo de mim, não é ideia que me agrade por aí além. As pessoas podem construir e modificar as suas opiniões a respeito de si mesmas, as pessoas usam a sua experiência para se definir, para se auto-iludirem. A vida acontece, do lado de fora da vida, do lado de fora de nós próprios. Acontece nas montanhas, sitio onde o sol queima e o vento despenteia, onde a coragem impera, e sobra pouco de conforto. Sobre este processo de identificação, acontece um “mapa de percepções” que não espelham a própria realidade, ou o campo de experimentação humana, é um mundo privativo e pessoal, que não pode, nem corresponde à realidade objectiva, e é desconfortável. Já não posso, com os bons dias, com um vou ao híper, com um estou na A17, com o estado é complicado, com as boas noites… imagino isto dito de um megafone no meio de uma multidão chamada mundo. Todos nós acharíamos desadequado e demente, se cada um de nós andasse por aí a gritar ao mundo, estou a cagar, estão 27 graus, tenho tesão etc etc… pior do que tudo. Ali, tudo parece calmo, bom, amoroso, cor-de-rosa, cheiroso, lamechas e fantástico. Fico doido, não sinto companhia, entendimento, ou o que quer que seja, numa janela aberta do outro lado do mundo, muito menos do outro lado do País, ou da rua.
A vida é feita de repetições sentidas, sempre de maneira diferente.
Gosto de cheiros intensos e luzes cintilantes ao longe na noite. Deambulando na planície, vejo erguida e distante a montanha. Subindo a serra, vejo plantada nos meus olhos a planície longínqua. Ambos me asfixiam com cheiros, um mais fresco que o outro, mas ambos fortes, intensos, e desafiadores. Tudo está longe, tudo está perto. Eu estou, eu sou, equidistante de mim próprio, como uma circunferência e a equidistância matemática dos seus pontos. Não sei se gostava de ter pensamentos normais, porque não sei nada acerca da normalidade dos pensamentos. Apenas sei, acerca da anormalidade ou normalidade dos meus pensamentos. As minhas opiniões são dementes e alienadas, calmas e lúcidas, como os meus pensamentos reflectivos. Sentir-me desequilibrado é comparar-me ao equilíbrio que julgo saber existir, isso faz de mim, equilíbrio afinal. É como a humildade, essa senhora que não é mais do que uma táctica de inflamação do ego. Não rezo, reflicto. Não creio, verifico. Desentendo-me regularmente com as palavras, mas amo-as. Também gostos de números, dão-me o ritmo que preciso para a poesia. As palavras são os meus pensares, engolidos e expostos. Gosto quando me dizem: “vou-te deixar” sem terem que me deixar. Se não existem raízes ou sementes, não há deixar. Só e apenas existe, semear. Aí penso: “estou sano”.
A velha senhora do contentor do lixo esconde-se quando passo. Gosto dela, mais do que de tantas. Já conheço o bater da tampa do caixote e dos passos surdos da sua direcção. Já reconheço o vulto curvo e a delineada sua sombra ao luar. Conheço-a, como conheço o meu pedaço moreno de mar a norte de São Pedro. Conheço-o tão bem. Conheço a areia onde enterro os meus pés e a madrugada onde me inquieto. Conheço o mar pelos sons das marés. A temperatura pelo frio, e o frio pela desobrigação de temperatura.
No carro tinha um papel que me pareceu uma multa. Não era. Era um papel molhado de madrugada, com um número de telefone onde se publicitava trabalhos sexuais. Pensei, a esta hora da madrugada até ia um abraço. Depois pensei, mas tenho que me despir, vestir, agitar, sorrir porventura, ocultar um choro, encovar-me de mim, ser quem não sou, e afinal só queria um abraço. Pensei novamente, se ligasse, quem se prostituía era eu. Não deixei de ficar indiferente ao papelinho molhado de madrugada no pára-brisas do meu carro junto ao mar, nunca tinha visto, nunca tinha assistido, não sabia da existência de papelinhos com tal conteúdo, nos vidros dos carros escorridos de água e maresia.
Não sei se gostava de ter pensamentos normais, porque não sei nada, acerca da normalidade dos pensamentos.
“…Um urso, abelhas e muitos potes de mel serviram ao jornalista João Miguel Tavares e ao ilustrador Nuno Saraiva para explicar aos mais novos - e aos pais - o que é crise, na estreia dos autores na literatura infanto-juvenil. O livro foi apresentado, em Lisboa, numa sessão que contou com o ministro das Finanças.
O jornalista, que assume ser de direita, convidou o autor de banda desenhada Nuno Saraiva, assumidamente de esquerda, para avançar com o livro ilustrado com dois pontos de vista distintos, sendo que não é verdadeiramente só para crianças.
De um lado - o da esquerda - a culpa da crise é de um enxame de abelhas furiosas (os mercados financeiros) que só pensam em fazer mel (dinheiro) para engordar os ursos (o défice), empurrando-os para "um beco sem saída".
Do outro lado - o da direita - a culpa da crise é do urso (o défice), gordo e guloso, que só pensa em mel (dinheiro) e está rodeado de abelhas (os mercados financeiros) prestáveis e trabalhadoras…”
Valha-me Deus, evoco aqui, e em consciência, o santo nome de Deus em vão. Os burgueses de barriga cheia versus o povo, que de cheia, só têm a alma. Os do lado difícil da vida, riqueza? Só de espirito. Um espirito solidário e obrigatoriamente empreendedor, criativo e inovador. Uns reconstroem ciclos de conceitos que se alternam numa simbiose metamórfica e metafórica de deslumbramento momentâneo e descoincidente, denominada por crise e retoma. Outros esquecem-se desse ciclos e, que do lado de onde estão agora, poderá ser contrário onde estarão um dia. Esquecem-se das crianças filhos dos outros, dos filhos de todos nós e, em banda desenhada, querem-lhes explicar a crise. Só se for aos filhos deles, porque os dos outros, estão a inventar brincadeiras e comida, aconchego e solidariedade e, não vão em bandas desenhada, gostam mais de sopa. As abelhas e os ursos inchados podem explicar o fecho diário de escolas e hospitais? E de um terço da população não ter onde trabalhar, com ou sem habilitações? E tanta, tanta, tantas mais coisas por explicar sem explicação possível dada por ursos ou abelhas!.. Claro que ao ministro dá um jeitão acreditarmos em estórias, ele é um às nisso, igualmente.
O governo sombra que eu admirava e era assíduo ouvinte directo ou em podcast, ruiu, caiu por terra. Nem este sobrevive à minha criticidade equitativa e humana. Já nem este faz sombra, nem sol, nem coisa nenhuma. Colaborativo no envenenamento popular, faccioso, deambula por aí imiscuindo-se nas mentes plebeias por modificar, na demência colectiva por “endireitar”.
Chega de retorica e demagogia. Lixado escreve-se com um F, digo eu à minha filha que põe um like no facebook do José Mário Branco, esse sim, adivinho dos tempos. Cada um conta a história que quiser contar aos filhos. A minha, foi feita de realidade, porque não há machado que corte, a raiz ao pensamento.