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Cardilium

Cardilium

Ligaste! Disseste!

Quando se desperta o orvalho nos teus olhos,

Amanhecem nas minhas fantasias,

Alvoradas de passado,

O que sei certo?

É o presente,

Não conheço o futuro em detalhado.

 

Quando em debandada se augura o presente,

Vergam-se instintos e quimeras,

Loucuras, desconstruções,

Outras nem tanto, invenções,

Fico pobre de tanta riqueza,

E de tanta riqueza apodreço.

 

Ligaste! Disseste!

Ai, hoje estive deprimido e tal,

Deprimido?

Como estarão na terra seca,

As crianças desnutridas, sem vacinas,

Pinhais afiados de gérmenes,

Nos rostos gemidos por sorrisos,

Para as lagrimas lamber.

Deprimido?

Palhaço, falacioso intelectual, miserável, moribundo emocional.

Deprimido? Ataques de pânico? Solidão?

Ligaste egoísmo. Está dito!

Os poetas que sobraram

Os habitantes desta cidade murmuram sonhos. Murmuram anseios para que os filhos regressem vivos dessa loucura fascista, de se achar que se colonizam povos, para lhes devolver o que quer que seja. Os poetas desta cidade arriscaram a cantar versos sobre a liberdade, fraternidade e igualdade. Os analfabetos desta cidade, um dia, aprenderam a ler, chamaram-lhe aulas para adultos, nocturnas. As prisões desta cidade abriram-se num sem sentido de entendimento, acerca da estranheza que foi a liberdade, ou da desigualdade de todos terem o pão da igualdade. As portas desta cidade abriram-se aos pares e o refrão da canção cantava cuidadosamente, “que a liberdade está a passar por aqui”, “num depois do adeus”, num “adeus tristeza até depois”, e num “agora o povo unido jamais será vencido”. Os anos foram relativizando as conquistas de Abril a meio caminho de Maio. Nesta semana de intervalo, entre uma conquista e o direito aos trabalhadores de se associarem, reunirem e evocarem a liberdade, já nada vale, tudo apodrece nas mãos de uma “coisa” a que chamam “mercados financeiros” e dos seus lacaios ordeiros e vendidos. Já nada ou pouco importa, já não se sabe, lembra, dignifica, ou preserva a luta de tantos e tantos homens. Tornou-se isso num idealismo faccioso e falacioso, interessa passar isso, e a “coisa” tem passado. A liberdade precisa de voltar a “passar por aqui”, por esta surda e cega ignorância, por esta desfaçatez conjugada de embrutecimento de um povo. Este Abril esvaziou-se e o Maio antigo esmoreceu subjugado. Ainda resistem uns apontados e “fora de moda”, que recordam Abril e a sua poesia. Viva o 25 Abril e o 1º de Maio. Não é uma festa “dos comunistas”, como convém dizer, para catalogar, excluir ou julgar. É uma dádiva de respeito a que me vergo e relembro, vivente e pensante, emocionalmente presente como me quero na minha existência sensorial. Do sítio de onde em vim, trouxeram-me os ventos e as mares. De diferenças me igualo. Beijo-te Liberdade. Abraço poder reunir-me sem me esperar uma prisão, saúda-me poder ir ao teatro e haver livros para ler, música para ouvir e referências para me inspirar. Não podendo mudar, posso transmitir. Transmiti à minha descendência a importância vital de que tudo existe, porque tudo mudou, e acrescentei: não te esqueças que por nós, por mim, por ti, estiveram presos por amar, muitos dos nossos poetas que nos devolveram à liberdade … e nós somos, parte dos poetas que sobraram.

O libertino

Ele há coisas! E assim me deslumbro do poder espiritual que diariamente me é devolvido e enviado. Esta coisa do espiritual, em mim, vale o que vale. Vale coisa nenhuma, contudo, quando me ponho a somar as peças, vale em mim uma vida, a minha vida. Os sinais, no fundo são a confirmação da minha intuição. Fico feliz pela forma como aprendi a sentir. A minha intuição é a minha espiritualidade. Prevejo hipocrisia em discursos fingidos e perfeitos, desconfio sempre da perfeição, gera confusão aos meus defeitos. Esta coisa de mostrar para esconder, adivinho-as nas contradições, atento e pensante, detecto-as. Prevejo marés de afectos fora de época. Antecipo inícios e finais, traições e desencantos, esquizofrenias teatrais. De onde eu venho, ainda a tempestade por lá existe, não se apagou. Ainda por lá baloiça a maldade e a humilhação, e os mortos só saem nus. Tudo se pode trocar na gurita verde, do bairro esculpido a corpos magros e olhares desencantados e negros. Por lá, não existe paixão. De onde eu vim deu-me a vida a escola, a faculdade o ensinamento e os amigos a presença. Bendita intuição, minha última unção do dia em que me devolvi a esta sanidade, e o deserto não me fez recuar. Hoje brilho entre as lagrimas e sorrisos, como o libertino que se passeou por Braga, a idolátrica, o seu esplendor, que afirmava acertadamente amanhã morrerás. Nada mais verdade, num amanhã qualquer morrerás, morreremos apodrecidos de uma vida não vivida, ou não.

 

“… Acordo aos estremeções, aflito, com uma consciência muito nítida do encontro, e começo por fazer figas debaixo da roupa ao Intruso, mas depois, cheio duma superstição infantil (que me ficou da criança que fui, entenda-se), faço o sinal-da-cruz. E para não tirar as mãos debaixo do quente das mantas, engrolo gestos e palavras mesmo sobre o peito, à matroca, como um aprendiz de catequese faria. Sossego mais. Começo a pensar como morrerei. Desastre? colapso? ou loucura súbita e ogo suicida? Adormeço nisto. Ao acordar conto ao Forte o meu sonho, para o esconjurar. Ou talvez para criar uma testemunha do meu presságio nocturno, se sair certo. Figas! Cruzes! Malandro! Canhoto! E logo eu, que gosto tanto da Vida! A caminheta dos livros segue para Braga; primeira paragem, em Esporães ou Esporões, outra terra a que perdi o nome e depois Somar. Eis a grande revelação da jornada: Deolinda da Costa Rodrigues, 14 anos, no 3º ano do curso comercial, residente no lugar de Assento. Fico varado! Mas é a Lolita tal-e-qual do Nabokov, é a Super-Gêninha jamais esquecida. A Super-Super-Gêninha, que talvez me vá fazer esquecer de vez a outra. Baixa, encorpada, ancas cheias como se quer, barriga abaulada, leveza nos modos, gravidade e força de mulher no corpo, uma suave expectativa de adolescente. Que beleza! Que maravilha! Morena, olhos atentos, cabelo entrançado (seria? ou rabo-de-cavalo?). Adivinho e aspiro o perfume do seu sexo; leio-lhe nos olhos os gritos que ela daria de prazer se a possuísse agora, nesta luta de vida ou de morte contra o Mafarrico, a última, a grande vitória do Libertino. O espichar de corpo, o estrebuche no orgasmo, que beleza, que maravilha… “                                                                                                                                                                                                                                          (1970, Pacheco, Luiz)

 

 

Quem não muda decompõe-se

Quem não muda decompõe-se. Decompus-me antes de mudar. Se não se o é antes, ser-se o há, depois. A capacidade de relativizar opiniões faz parte do meu crescimento. Há idade para errar, e erros ajustados à idade. Há infantilidade nos erros tardios e maturidade nos erros acertados e consertados. O exemplo não é feito por palavras, é feito por acções, essa riqueza imensurável. Assim errado, trouxe gravado em mim o teu sal perfumado, reparado num acto contínuo, nesse pedaço de mar azulado, inconstante, pérfido e desalinhado. O Bugio foi a testemunha estremunhada. A espuma dos nossos beijos, alinhados com as estrelas cadentes que vimos cair, dirigidas a Tróia, conduziu-nos para sul. Primeiro Marrocos, depois Tarifa, por fim, Melides esperou nos. Não existem mais viagens depois dessa. Chorosa saudade de nós, ali, perfumados de pinhal e de dedos soldados, acreditando na eternidade. O céu está na mesma, o assobiar da noite iguala-se a antigamente. Não me decompus mais, mudei, mudei-me. Enfatizo agora muito do querer de outrora. Represento papéis que me sustentam. Sou filosofia, pendência e aroma. O Alentejo é mais Alentejo junto ao mar, decompõe-se quando dele se afasta, tal qual a humanidade. Gosto do castanho enrugado da terra, do céu estrelado, e do mar moreno na pele daquelas gentes. Gosto dos lenços de ramagens à cabeça, das ceifeiras de Portugal. Gosto da sabedoria de quem acha, que nada sabe.É eterna,impaciente e necessária, a minha solidão.

Paz em ver-te

Viva, então tudo bem?

 

Paz em ver-te, adeus.

 

Está tudo?

 

Bom dia, tarde ou noite, é assim que nos saudamos desconhecidos, sem interesse, sem reparar nas palavras grunhidas, ou nos acenos flamejados, desguarnecidos de conteúdo. Descaminho é o rumo que traçamos. Escrevo para verbalizar. As palavras ditas altas por uma voz, mesmo que una, dão vida aos meus pensamentos, ganham sentido e contexto, incorporam opinião e juízo quando as escrevo. É como se, se transformassem numa criação disruptiva, mas evolutiva em mim, e para mim. É como se fossem um analista, ou um processo terapêutico de ajustamento individual. É como se ganhassem corpo e diminuta vitalidade, ou uma maior validade. A intimidade por vezes estraga tudo. Há realidades que eu não quero ou preciso saber. Não se divide facilmente intimidade. A minha reclusão é a minha divisão. É o que tenho para oferecer. As minhas namoradas são o meu elo com um mundo desconhecido, um mundo que não domino. Acho desvantajosa a relação que tenho com a humanidade. Sou pai solteiro, uma figura criada e percebida antes de acontecida. Tornei-me maior e com outro sorriso ao sê-lo. Interpreto agora melhor a mensagem subliminar, intrínseca e perceptível dessa “coisa” dos afectos desintencionais. Decifro agora melhor o valor da troca da vida, pela morte. Detesto bestas que se adoram ouvir, reuniões maçadoras, representações ignorantes de gestão, conceitos antiquados e, quiçá promíscuos. A gestão não é a demonstração de resultados, a isso chama-se estatística e pode-se facilmente manipular. Gestão são as pessoas, e as pessoas são, o que todos nós somos, isso gere-se, emocionalmente. Gestão é o contrário do praticado. Hei-de me guardar do processo cognitivo, em prol daquilo que sou, processo emocional.

O quê ?

Por vezes olho-me em redor e a azáfama descolorida da vida reduz-me. Está tarde, sentei-me num banco de um jardim com um amigo que estimo mas não frequento. Um amigo de caminhada que numa certa altura seguiu o seu trilho. Somos idênticos mas praticamos conceitos diferentes de vida. Estávamos saborosamente nas nossas conversas “ de pôr a escrita em dia” quando se aproximou uma gaja/miúda/mulher, refiro-me assim a tal personagem, porque foram estes, os papéis desempenhados. Aproximou-se como uma miúda, sentou-se como uma mulher e monopolizou a conversa como uma “gaja”. Três minutos depois eu estava impaciente e impacientado, desiludido com a vida, angustiado, agoniado e enraivecido. Apeteceu-me dizer - lhe que estava a invadir o nosso espaço que é raro, ou não é frequente e, ela, continuava dilaceradamente: “patati patatá, o meu João para aqui, a minha não sei das quantas para acolá, compras pela net, livros com 150 anos, a minha filha é muito esperta, o meu João é ainda mais … blá blá blá”. Eu e o meu amigo olhamos um para o outro, e percebemos que já na iriamos conversar mais, porque a estupidez veio como uma miúda, entrou como uma mulher e soltou se como uma "gaja". A este tipo de pessoas narcisistas, devia-se instalar à nascença um filtro, já que estão isentas de autocrítica, tacto, ou bom senso. Amigo, fica para a próxima a continuação da nossa conversa. Um abraço. Aquele abraço.

Narrativa

Rótulo e preconceito são uma das fraquezas humanas. A nossa pele é apenas o que nos envolve como um tecido de marfim. Os adereços são a nossa forma de aproximação ao nosso “eu”, que vezes sem conta está rebuscado e escondido. Cuidamos do que sentimos ser a fonte de rejeição. Cuidamos do que destruímos, o nosso corpo. Enfeitamo-lo, e no entanto, um dia será pó ou cinza. Queremos ser gostados pela carne e não cuidamos verdadeiramente na nossa alma, essa sim, a nossa vida. Não cuidamos do que nos faz feliz, ao invés, cuidamos tao bem, o mal que nos faz o nosso corpo.

 

Mãos fortes são o caminho,

História feita de fortuna,

Rugas belas de experiência,

Lágrimas de sentimento,

Património, coração,

Narrativa vida ausente.

 

Pode alguém ser emoção,

Se outro alguém o for vivente?

Riqueza gasta de penúria,

Gente parca, mar ausente.

Espírito ingrato desagradecido.

Sentir farto a alma … mente.

Ventre do vento

Esperança trazida no ventre do vento,

Fogo queimado,

Lua incerta,

Aurora de outrora esbatida,

Cinzento mar sacrossanto,

Ruas reles povoadas,

Madrugadas de anos duradouras,

Loucos sorrisos exaltação,

Decotes desabotoados,

Música dentro de muros,

Já desfeitos inexistentes,

Cores de luzes desmaiadas,

Bairros onde me esbanjei,

Calçadas onde me deitei,

Manhãs acordadas de perdas,

Biqueiradas de bom dia,

Identificação pedida perdida,

Fotos de olheiras arquivadas,

Copos de jim morrison ébrio,

Fantasia psicadélica the cure,

Sonhos de paisagem neil young,

Verdades de bob dylan,

Passagem denunciada prisão,

Ao fundo a calçada do Combro,

Ao fundo, e em baixo,

Bem-aventurança.

Eu com os outros

Sinto tempestade na luz escassa da manhã. Experimento uma invasão descendente do medo. Não é primogénito. Não vejo nisso nem erro, nem acerto, é assim, porque é assim. Tenho uma guerra por travar, um momento medroso por desbravar, um sentir procrastinado para habitar. Tudo está claro, mas a angústia acomoda-se cintilante. Uma ordem formada em desalinho prende o que sinto. Rebato esta falta de liberdade e descubro a consciência da frustração. Sou libertado de seguida, não me quero habitado neste momento infinito e enclausurado. Não vejo. A luzência cega-me. Encandeia-me este forte desmesurado da minha essência castra. Esta raiva indolor abafa-me. Faz-me desejar ser outra fracção minha, de uma outra existência, que não esta. Já não sinto mãe, de ti, o teu sabor. O cheiro do fumo que se desenhava no tacho de comida ao lume, já não me cheira. O rádio verde roufenho que herdei, substituí-o por uma alta-fidelidade. É como se outra vida em mim existisse, e, essa de tão longínqua estar, na minha alma se detém em gemidos de angústia, saudade, e esculpida de um cinzento que tornou essa época de mim, fria, descristalizada de conceito e desumanizada de solidão. A solidão mais massacrante não é: eu comigo. Sou eu com os outros.