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Cardilium

Cardilium

Afortunado

A minha fortuna é o meu pequeno espaço. Não possuo riqueza que me exclua o sono, sou dono de bens que se exaltam em forma de vida. O agradecimento que tenho é recordar-me do que não tive. Não crente, não deixo de rogar. Não crente, não deixo de verificar. Não crente, não deixo de me sentir afortunado. É à natureza que me vergo, com as crianças que me fascino, e com os velhos que me cultivo. Numa prece inventada dirigida e desprovida de entidade, elevo-me numa paz que procuro e perco e, perdida, reencontro. Tenho um rio, um pedaço moreno de mar, passadas do meu caminho, ressaca e ebriedade, sorrisos e amigos, um filho mulher, um pai, e o filho dele, uma data, áfrica, uma canção, um livro, um poema, sal em estado liquido descristalizado pelas minhas emoções. Não tenho roupa cara, um carro grande ou telemóvel pequeno. Não tenho seis assoalhadas ou jóias raras. A minha fortuna habita-me, vive num sítio pequenino dentro de mim.

Auto incluída, inclusão vivente

Com medo ninguém escreve. Se não se arrisca no silêncio branco de uma folha de papel, onde se pode fazer das palavras gritos e gemidos à dor, qual será outro, o momento, de coragem?

 

- Poderia aqui confirmar o meu pai ou desconfirmar a minha mãe. Poderia ressuscitar alguém ou matar um outro alguém, mas tudo se manteria inalterado, igual, decomposto, se a coragem inalterada se mantivesse. Quem não tem coragem não escreve. Não escreve a descoberta improfícua, escanzelada, insana, magra, arrogante, e vendida, que se agoniza no descrever da essência humana, auto incluída.

 

- Quem não se debate, não se descobre. Quem não foge, não escreve, e a poesia não é amor. São farpas ensanguentadas de quem vislumbra luz no pesar e claridade na penumbra. Quem não caminha, retrocede. Os versos que te dedico não é poesia, é alegria vingada de quietude. Não os lerás, e, assim, jamais saberás o timbre dos meus silêncios ou anseios, das minhas enxugadas lagrimas, da angústia da minha metade passada de vida.

 

- Dedilho uma música que construí e que ninguém igualmente ouvirá. Começam a habitar a minha vida muitas palavras não ouvidas, muitas músicas não cantadas, muitas horas desabitadas, muitas vezes, ninguém. Ninguém é a minha companhia. Sem medo componho, destruo, reconstruo, descubro, esta miserabilíssima essência improfícua, escanzelada, insana, magra, arrogante, vendida, agonizada e gloriosa … Auto incluída, inclusão vivente.

O exemplo é ele mesmo, modelo e paradigma, coerência e responsabilidade

Aborrecem-me as conversas soltas de palavras de nada, desconexas, isentas de conhecimento ou exemplo, arrogantes, sustentadas ou construídas de imagens inexistentes ou fantasiadas. Vai-se-me a paz, o tempo que se torna irrecuperável, perdido e transformado. Opinião é, atrevimento, substância, matéria, essência, ego e desnorte. O exemplo é ele mesmo, modelo e paradigma, coerência e responsabilidade. O exemplo não é induzido ou consubstanciado numa qualquer substancia indutora de coragem ou ousadia. As palavras não são de ninguém, são nossas, conceitos simples ou complexos, claros ou difusos, mas é património de quem as pensa, vive, exprime e usa. Ninguém vive por ninguém. O acto acusatório ou de cobrança da vida dos outros é cobardia. Demonstra somente incapacidade de se viver a própria vida. Demonstra incapacidade de caminharmos o caminho dos outros, de nos transportamos e identificarmos, de o sentirmos. A este conjunto de emoções dá-se o nome de empatia, o contrário é, ressentimento, ressabiamento ou insanidade, falta de juízo ou tontaria. O Medina Carreira tem os seus acertos. Os outros também. Tu, ele e os outros também. Todos nos também. Ninguém também. Ninguém é mais do que ninguém, mas menos também não. Também não é verbo. Sou o meu exemplo e os outros conjuntamente e similarmente o são identicamente. A minha travessia foi feita e descoberta, é obra interminável, mas só tem a duração de um dia, recomeçada no dia seguinte, exemplo do dia anterior. O meu deserto é frequentado nalguns dias, outros não, sou eu que escolho. Aceito palavras, adoro-as, são comunicação e conhecimento, mas tenho filtro. Tenho exemplo. Tenho património emocional de solidão e presença, de saúde e doença, de dúvida e decisão, de imaturidade e crescimento, de amor e desamor, mas essencialmente de caminho feito de passos meus. Feito ao contrário, da morte para a vida, de pai e mãe num só, de resistência sem desistência, de lagrimas feitas sorrisos.

 

Aborrecem-me as conversas soltas de palavras de nada, desconexas, isentas de conhecimento ou exemplo, arrogantes, sustentadas ou construídas de imagens inexistentes ou fantasiadas.

Desobrigação

Passei do pseudo progresso, movimentado e rude, para o campo. Primavera começada, os campos engalanados de cores, tranquilizados, vaidosamente se exibem ao dia. Perfumam-se pela manhã. O cheiro, enquanto o sol os transpira, altera-se. Ao acordar, cheiram forte a terra húmida, como se a madrugada tivesse encharcado os lençóis, de desnudados corpos sequiosos e amantes. Depois, o dia cresce, e as flores, pólen da vida, soltam-se em crescendo numa prosa invisível. Ao meio do dia, o perfume transforma-se em bálsamo, o balsamo em odor, o odor em aroma, e o aroma em fragância, e eu, invadido de mim mesmo e pleno, adormeço fraco, na extensão do meu eu análogo, extorquido à essência do que sou, terra, ar, agua e fogo. Desenho a primavera a carvão, isenta e descolorida de desnecessária coloração. A primavera é desobrigada, detém sentir, entusiasmo, vontade, animo, emoção, motim, desordem, tumulto e revolta. É imune e descomposta, ordeira e cumpridora. As promessas cumprem-se após cada acto, e em cada acto, existe um prometimento sentido, um garantido enlaço, uma abonada e combalida verdade. As palavras são mais doces que perversas, mais cheias do que vazias. São doutrina e ensinamento. São mãos dadas, caminho, inundação e enchente do coração. As palavras são o antes da exaltação e o antecedente do amor. As palavras e as estações são o apeadeiro da alma. São as bocas enamoradas do desejo. Do tal beijo, para sempre.

Contestatário, navegante e viajante.

 

Azul estrelado, rosa cru, ou vermelho esperança, tanto faz, neste negro claro, acordado por este dia. O que me faz sentir para além das cores é a forma como as vejo e não a forma como as olho. Dias há, em que ganho por olhar, outros, apenas por existir e ver. Faço o que me apetece e não tenho o firmamento. Quando não o faço, tenho-o. Sinto-me um desconhecido no mundo. Ninguém sabe da existência de vida, de uma parte louca e precisa em mim. Porções de pessoas me olham, quase ninguém me vê. A religião não me basta ou sustenta. O espirito e a fé são eu mesmo, quando não me sinto cego. Adormeço-me no desconhecido, que o conhecido enraivece-me de medo, e o que sinto, é o que vejo. Leio mais um livro do Pessoa. É de letras minhas, escritas por ele. O sossegado em mim não existe, existe tão-somente e apenas … presença.

 

A poesia é um olhar.

 

Um olhar de ver semeado,

 

É dizer dizendo,

 

Que os campos são como os corpos,

 

Nascidos e criados,

 

Renascidos como a morte.

 

Ter norte é ser meridiano,

 

É curar-me e ser maleita

 

Melhorar sem curandeiro.

 

É ousar no silêncio de ninguém,

 

Ser alguém,

 

É nunca estar perdido,

 

Nem encontrado,

 

Contestatário, navegante e viajante.

 

Cheiro húmido

Este cheiro húmido invade-me desprevenido. A intuição desalvorada e prenha de promessas fantasiosas e obscenas, auto engravida-me de esperança, numa fé irreconhecível. O pó do pátio em redondel fez as minhas tardes abonadas de correrias coloridas de castanho, nos mergulhos cristalinos da ribeira. A velha arvore breve e redonda, esconde até hoje os beijos soltos da minha boca desencorajada. Foram beijos de pensamento. Com a ideia te desabotoei, tantas e tantas vezes o vestido. Atrasado pela espera, antecipei o futuro, e mais além me detive, sustentando a resistência desdita e malograda da minha fantasia pelo teu corpo. Oiço raízes de pessoas declamadas pela inocência de uma criança gritando fuga, num bairro amaldiçoado uns dias e benzido outros tantos. Castro-me no âmago da minha alma, deturpando uma frágil e estúpida linha a que chamo insignificantemente felicidade. Esvaziada de conteúdo, o significado cresce harmonizado apenas com o sonho. De real nada existe, para além das estações. Depois da fresquidão outonal, solta-se o Inverno embaciado. Antes, o verão seguira-se à primavera. Nesta metamorfose metafísica visitei o céu e o inferno, e, após cada estação depositei na terra lavrada pelo arado, as minhas cicatrizes emocionais saradas de uma só vez, com abraços navegados. Aos domingos a solidão era maior. Difícil de entender este sítio onde me depositaram. Invejei o motor roufenho de uma mota que rasgava a madrugada. Invejei risos e lágrimas, prosas e poesias. Invejei até a morte. A serra adornada de ruídos, foi onde, noite após noite, acordado, encorajei o que me restou e prendeu. Voltei ao pátio que os anos desconfiguraram. Voltei novo de mais velho. Mais idoso de juventude. Mais vivo de anos e decisão. Menos sozinho de companhia. O átrio continua empoeirado, tagarelado pela mesma passarada. Os velhos são os mesmos revezados, e as crianças idênticas substituídas, e eu, grávido de esperança, numa fé reconhecível deste cheiro húmido e desprevenido.

Quem se encontrou com o amor?

Já não sei se me ausente,

Displicente,

Incoerente,

Demente,

Me aguente,

Essência semente,

Pungente,

Intransigente,

Comovente,

Ai de mim … que se ausentou torturado.

Anafado,

Estafado,

Ensonado,

Coração desencantado

Precipitado,

Esgotado,

Estagnado,

Ai de mim … que se encontrou com o mar.

Amar,

Desabafar,

Plantar,

Semear,

Agraciar,

Aventurar,

Abraçar,

Luar,

Ai de mim … que se encontrou com o amor

Dor indolor,

Cor incolor,

Quem se encontrou com o amor?

Ciclosísmica

Ciclosísmica é esta forma repetida e cíclica destes sismos emocionais nas caves da minha existência.Essa voz negra que cantas por dentro num sussurrado gemido de nós, enlouquece-me a alma e faz correr em mim o pranto do nosso reencontro. Essa paz duradoura é o feitiço momentâneo com que me presenteias, e que tornas irrepetível esse adorno do meu sonho. De dentro deste quadro pintado de fascínio e excitação, desenhas os trópicos e degelas os pólos. Adivinho a poesia descritiva de vida, na beleza roufenha da tua voz. Este rio aloirasse, fica doirado ao esconder do sol. Logo mais, madrugada adentro, ficará prateado, e, é nesta inocência do desejo da tua companhia, que distribuo e reparto este amontoado de palavras escritas para ti, sabendo que nunca as possuirás ou compreenderás. Despeço-me de ti assim, ausência. Sabendo não te ter, separar-me-ei igualmente de mim, serra virada para o mar, rio de angústia nascente e foz, mato rubro verde, ventre de mãe porto seguro. O amor é sempre sangrento, essencial e procurado. Flor de cheiro a pinho, primavera doce de olhos amargos. Beijo-te assim, depois da partida não anunciada e ciclosísmica.  

O sítio onde habito, o sítio onde me habito

Brilhante, ficou o odor dos teus passos. O teu andar deixa uma fragrância à tua passagem. Num casario velho e estafado, quase ruinoso e decadente, é o sítio onde habito, onde me habito. Os degraus velhos em que subo são a metamorfose do meu corpo. Comparo duas fotos reais díspares no tempo. Uma a duas cores a que chamamos preto e branco, como se o preto e o branco não fossem igualmente cores. Uma a cores impressa e ainda outra não impressa, abarcada de nova tecnologia. Em todas me revejo e em nenhuma me excluo. Excluído afinal sou, das cores que enfeitam o arco-íris. Antes o tempo fosse, searas recomeçadas de sementeira e colheita. Antes eu fosse, pronúncio e atitude, projecto e obra executada. De cada vez que alcancei, antes sonhei. Em todos os momentos fui acreditar, em todas as aldeias pernoitadas fui eu, os meus dias. Em mais de mil dias de ausência me presenciei. Chilreio mentalmente uma melodia onde me acordo e balanço. Sinto renegadas as minhas mãos, num confronto constante e diário com a minha mente. Não sei afinal se existo em cada madrugada de nevoeiro contestada. Canso-me com o vazio da inquietação, fortaleço-me com o preenchimento da exaustão. Esta madrugada passada, trocá-la-ia sem hesitar por uma parte de mim próprio, não teria sido necessário o meu “eu todo”, teria sido bastante em mim, parte de mim exclusivo. Saudades de ti, filha menor. Saudades do teu berço e do teu sono velado. Do teu sorriso de sono. Dessa expressão confrontadora de protecção e paternidade. Escutei tamanho silêncio e fiquei. Tenho nas minhas veias, sangue corrido de tremor e tempestade. Tenho tatuado em algumas, a morte numa correria para a vida. Tenho lembranças visíveis que me prendem. Injecto vida aos pedaços, conhecimento e poesia. Acrescento menos abraços do que a felicidade me exige. Sobeja-me tempo que reclamo e adultero, em preguiça e acção.

 

Num casario velho e estafado, quase ruinoso e decadente, é o sítio onde habito, onde me habito.

Antes d´abril vivo

O restolho molhado e macio desenfreou os nossos limites. Entrámos dentro de nós próprios, cada um no outro. Setembro, talvez fosse esse o mês. Por lá vagueamos em juras prometidas, confinadas em desvario. O mês era vizinho e anunciado pela torre da igreja nas suas badaladas. A zona raiada das nossas faces era raiana, era a fronteira do nosso querer e brilho. Comunicávamos sem as palavras nos abastecerem ou serem esculpidas. Os nossos olhares, ora fugidios, ora extasiados eram clarão em noite escura. Tantas as noites que as nossas mãos cheias do nosso corpo nos sufocaram. A música que delicerámos, descompôs-nos e construiu-nos. O José Fandango viu-nos nus de roupa, com as nossas bocas unidas junto ao ribeiro, o louco. Como era, aos olhos do mundo louco, dividimos a nossa loucura com ele, sabendo que ninguém o levaria a sério e o nosso amor nascente e brotado, ficou para sempre entre nós, eu tu e o José. Ficou igualmente em sigilo, sabermos na nossa sapiência que, nenhum de nós é louco. A aldeia agora desumanizada, sem gente e imóvel, mantêm no restolho húmido os nossos corpos. A ti chamou-te a França, a mim a capital. Nenhuma mulher jamais, amei como a ti.

 

- Em quantas noites de Tejo, verti estas saudades na corrente duradoura das cheias invernosas?

- Quantas vezes, Paco de Lúcia me trouxe até ti?

- Quantas madrugadas foram as que fingi não existir, e em quantas bebedeiras ensolaradas pelo despertar da manhã, me refugiei?

 

Tantas e lestas horas desconstruí o teu nome de honor, Leonor. Trocaria todas estas rugas pelo teu ombro. Toda esta sobranceira tristeza por esse sorriso de luz. Toda esta saudade deprimida de mim próprio, por saber que no teu pensamento existo. A vida completa-se, quando deveria principiar-se. Malfadado momento pobre de pão e fascismo, que de ti me levou de assalto por montes de carabineiros ausentes, do lado de lá da fronteira. Desdita e ignóbil religião que cegou de pobreza aquela aldeia, que de mim te afastou. Hoje rico, pobre me sinto, e tão pobre me senti sempre sem fortuna avaliada, mesmo somada de números e vontades desatendidas. Tu foste, és e serás Leonor, a minha fortuna. Não fugirei de mais nada tendo eu tudo em mim. Ensinou-me isto, o amor.

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