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Cardilium

Cardilium

Avenida marginal

Um frio de rachar fragmentava-me a face. Sentia os olhos encovados, como se se escondessem do frio abrupto e inclinado, que me fazia caminhar rápido em direcção a casa, sabedor que me acolhia um terno sentir, uma doce segurança e um confortável aconchego. Cada passo a mais dado, é um passo a menos por dar. O rio, transeunte confirmado e normal da cidade, adormece invernoso e enfumarado no seu leito. Apetece-me confrontar a minha resistência e balançar-me na noite cândida e inacabada. Sôfrego, disperso-me de mim próprio e elevo-me nas minhas recordações. Outrora, verti aqui no extenso deste jardim, papoilas coloridas que me enfeitaram de luz a alma. A alameda construída, depois de desmanchada a fábrica velha, modificou a minha infância e adequou-me a uma existência induzida, elegível do agrado que julguei ser importante existir fora de mim. Uma agradabilidade distante e distorcida, construída por uma disparidade eloquente, de aceitação e presença. O menino que se passeou do lado marginal desta avenida, é hoje o homem que se mantém preso nas alegorias cáusticas da vida, desenhadas por questões existencialistas e de um não saber sequer, se saber alguma coisa, interessa ou importa na teoria vivente, claustrofóbica e inadequada que é o amontoado de dias a que chamamos vida, como se fossem um monte de trapos apregoados numa feira semanal a preço “de excedente”. Os dias, a vida, não tem valor negociável ou saldos que se proclamem, ou muito menos se celebrem. Comemorar mais um ano não é nenhum motivo extraordinário de confraternização. Sou avesso ao assinalamento de datas. Isso castra-me. Inibi-me. Não me seduz. É infértil. É piroso e envergonha-me. Gosto de festejos imprevistos e inesperados. De música desconhecida e descoberta. De sorrisos espontâneos e voluntários. De palavras novas e adolescentes, passiveis de crescimento sensorial. De frases com “sentidos”. De cheiros promíscuos e sofridos. Gosto de resistir e de me suportar. Aqui, no lado ribeirinho desta avenida marginal, choro com os chorões que penteiam o rio. Choro de saudade e presença.

Viagem alterada

Nascido depois de semeado,

O meu amor brotou,

Insensato,

Desprotegido.

Por fim o princípio,

Se alterou,

Adulterado no durante faleceu,

A tua boca desejosa inicial do meu beijo.

Em metamorfose e cobrança se transformou,

O fogo dos nossos corpos incendiados,

Apagou-se.

A sede ocorreu morta,

Como se em nós,

Seres individuais,

Uma nascente desabrochasse,

Como flores campestres,

Voo migratório de aves,

Uma viagem.

Assim o nosso amor falecido,

Jaz em paz,

Apodrecido.

Café com sol ao acordar

Sentado no campo a perder de vista deixo o olhar do outro lado da fronteira. As mãos construídas pelos dedos grossos demonstram trabalho, perseverança, entreajuda e espirito de sacrifício. De, quando em vez, espelham um certo espirito visionário. O denso cheio a pinheiros alimenta os meus sonhos. As estradas da minha infância mantem-se até hoje intactas. Os meus amigos que não o eram, foram naturalmente substituídos ou simplesmente perdidos. Perdidos porque não se substituem amigos. Isso seria comparar ou minimizar os novos amigos, dar-lhes uma igualha que jamais poderá ser acrescentada. Assim como os que se foram, nunca se aniquilará o património conjunto, a obra conjuntural, confidente e emocional por excelência existente. Se já o foi, já se viveu, continuará vivo e torna-se em história.

 

Não existe passado na amizade, ela é viva, mesmo que no presente. Os traçados de vida podem com alguma naturalidade tornarem-se divergentes, mas isso não a torna efémera para sempre, nem por nunca ser, definitiva.

 

Calculo as horas que me restam deste dia pelo balanço do sol. Está a meio do dia a felicidade, reconheço-a. Os cafés não me sabem todos desiguais. Uns sabem-me a rapidamente, outros, demoradamente a paz. Cheira-me a banho tomado pela casa toda. Gosto deste cheiro. Os cheiros adivinham a minha forma visceral de sentir. A minha emoção torna os cheiros mais ácidos e agudos, torna-os impossíveis de não serem contidos, compreendidos, envolvidos e desfrutados. O cheiro da tua pele é como a amizade, nunca será replicado, particularmente jamais sairá da minha tez
agreste. O pó que reparo que se levanta da terra ao meu pisar, é suave e lento, ou espezinhado e forte, depende do meu cuidado comigo mesmo, da forma como me prendo ou me solto. Eu vivo sem alguém, não consigo viver sem ninguém. As pessoas são as minhas partículas de um deus não concebido. Todas as pessoas. O ensinamento experiencial de vida ensinou-me a quebrar as verdades inexistentes e absolutas. Ensinou-me a dar tempo às horas e aos segundos minutos, indicou-me a usar este tempo único e possível de usufruir, que é o agora mesmo. O já. O imediatamente. O presente.

 

Jamais viverei o que foi, embora o guarde. Jamais viverei o que não sei sequer se existirei para usar. Vergo-me a todos os pensadores. A quem gosta de pensar. Pensar é existir. Pensar é decidir.     

Pouco mais … ou muito mais talvez….

Preencho uma ficha e espero cautelosamente o aguardado momento. A primavera já tinha abençoado o verão e partira. Dentro do ti jorravam perolas dos teus olhos de cada vez que muda, me olhavas. Finalmente ressoou o teu nome e partiste. Oiço os carris do comboio onde partiste até hoje. Um som férreo e duro tal como ficou o meu coração. Esperançado, até hoje espero a carta que não escreveste. Passado o verão de oitenta e cinco dissipei de mim vários mistérios. Todos os mistérios.

 

- Primeiro, descobri que detestava os meus pensamentos, que como vagões infligiam em mim um ruído insuportável.

 

- Depois, acedi a mim próprio como um ser diferenciado.

 

- Depois senti que não pertencia.

 

- Mais tarde vislumbrei o inferno e ardi nele.

 

- Antes percebera que a solidão me magoava e aliviava.

 

- Que as pessoas me assustavam e alegravam.

 

- Que o sol não era bem-vindo quando se abatia sobre mim.

 

- Que a lua me protegia.

 

- Tomei remédios que não me remediaram.

 

- Mudei de mezinhas.

 

- De lugar.

 

- De família.

 

Mas…mas nunca consegui mudar de mim o meu próprio lugar.

 

A minha identidade ou sexo.

 

Desta incoerência incompatível com a felicidade restou-me anos a fio ser quem não era. Ser quem não fui, verificar o incumprimento de promessas diárias, de ver pastosa a minha gosma pegar-se a quem me queria bem, que já não era ninguém.

 

Quando se chega a um dia, o dia em que na vida, a morte para quem nos ama é a nossa libertação, apenas nos resta ela própria, apenas ela própria nos seduz cobardemente, ou resta-nos o milagre desacreditado, que é o próprio milagre em si.

 

Quando as sombras quase esquizofrénicas nos seduzem e o pensamento morto de tão obcecado nos guia, resta-nos a coragem longínqua, inacessível e desconhecida do poder da reconstrução.

 

Como posso voltar a ser?

 

Como posso voltar a ser?

 

Esta foi a substituição da azáfama assustadora que me dominou desde o dia em que parti de mim, ate ao dia em que me cheguei em descoberta. Estações e apeadeiros podres me tiveram e consumiram parte de mim, mas não me detiveram. Finalmente decidi. Decidi voar. Deixei que o tempo se resolvesse em mim e dispus-me a aceitar as partículas, que se me foram acrescentando em crescendo às minha decisões.

 

Fiquei limpo e pouco mais … ou muito mais talvez….

Manhã branca

Manhã acordada,

Branca,

Lençóis perfumados,

Desenho de corpo,

Nosso.

Latejo de peito,

Vigor amado na escuridão,

Vertente chama,

Luz flamejada,

Perspectiva.

Mãos compreendidas,

Conhecidos momentos,

Hálito fresco,

Mencionado,

Expressão e prazer,

Eternizado.

Corpos nossos,

Manhãs brancas,

Lençóis perfumados.

Duas, três ou quatro assoalhadas ?

As tábuas de soalho de onde deriva o conceito e expressão assoalhadas já não o são. Deveriam agora as casas denominaram-se de duas, três ou quatro aparquetadas, ou aparquetadas flutuantes, já que deixou de ranger às nossas passadas o soalho e passou a segurar-nos os passos o parquet, posteriormente flutuante. As escadas de soalho deixaram de se desfazer languidamente rangidas. Os quartos assoalhados de tacos matematicamente enviesados deixaram de cheirar a cera, e de se poder neles escorregar com na geada. Antes, começava a fazer amor no chão encerado junto à janela e acabava junto da porta. Não havia tracção e deixávamos ir escorregando os nossos corpos no encerado do chão assoalhado. Contava pelo ranger dos degraus a altura de a chave entrar na fechadura e da porta se abrir. Podia assim, preparar uma recepção pela mnemónica construída. Pela contagem dos sons sabia se era a minha porta que se ia abrir e se tu romperias exausta nos meus braços que te depositavam no sofá de molas partidas do início das nossas vidas. As bisnagas de cera amarela deliciavam-me com o seu cheiro limpo e aromatizado, quase que me apetecia barrar o pão desconstruído em torradas quentes e domingueiras. Já não existem casas assim, embora apregoadas como assoalhadas. Agora são-no outras coisas qualquer. Menos familiares, apetecíveis e pessoais. Sem espirito de pertença e vizinhança.

Travessa das gaivotas

Ao fundo da calçada do combro existe uma travessa designada por: travessa das gaivotas. Estreita, insinuosamente sinuosa, desfruta de portais e janelas particularmente desenhadas. Tem azulejos nas frontarias dos prédios e desenhos que britam da calçada. Possui passeios estreitos onde não cabe nem uma pessoa. Existe uma loja vazia iluminada por velas coloridas, onde se dita poesia mais do que se canta ao desbarato. Expõe-se com sentido. Poetas anónimos deixam por ali palavras misturadas com lagrimas, risos contidos de amargura, ajustamentos de vida, alegorias ao amor e odes continuadas de palavras bordadas com o coração na palma da mão. Contemplo peles mais escuras do que claras, cabelos mais curtos que compridos. Testemunho olhares mais bacentos que translúcidos, outros, mais luzentes que amorfos. Em passos de dança afinados, todos dançam da mesma musica que geme da claridade trémula lançada pela chama das velas. Sentado num canto vejo um miúdo. Sim, um miúdo, parco de idade, abundante de solidão. Declama qualquer coisa que diz, caído do céu e ensanguentado descolora as flores rarefeitas. Enquanto declama, tremem-lhe de embargo as mãos. Os seus olhos ficam cegos. A boca sinto-lhe a seca. Sinto-lhe o suor a escorrer entre as frases que perdem fulgor com o desânimo latente das palavras. Apeteceu-me abraça-lo, numa verificação producente e estéril da relação que lhe percebo desanimada com a vida. Ao invés, um italiano alto e esguio sorriem-lhe pela boca as palavras, verte ânimo e esperança, e uma elaborada e simples forma de expressão, curvada em gesto de vénia. Há poesia, sim, há poesia. Murmura parte do seu coração e da incerteza de uma cama onde dormir, ou de uma refeição para tomar, mas esboça desenhado um alento que em catarse me entusiasma, e, me faz querer ser ele. Dedilha numa viola um fá maior e um outro sustenido. Com duas notas somente faz ali dele o mundo inteiro. Retira-me da realidade e leva-me para outro sítio, onde desejei não sair mais. As velas acabaram de luz, quando o pavio igualmente se acabou. Não havia mais luz para a poesia, porém, existiu muito mais que poesia para além de luz. Na decifrada travessa das gaivotas aconteceu o raro. Aconteceu vida.

Ah, esta desarranjada existência

Ah, esta desarranjada existência,

Perturbada.

Penas imensuráveis,

Opacas.

Vidro cristal translúcido,

Pintura,

Escalpe,

Alma rupestre.

Sol brilhando de céu,

Noite de lua quente,

Altiva e nova.

Ah, se de tão desarranjada esta existência,

Vivente fosse,

A morte daria tréguas,

E madrugadas de tempo,

Ao tempo que se esgota,

Que não volta.

E, volta na volta,

Sucumbe pobremente,

Em feitiço e própria vontade,

Em mentira feita verdade,

De uma verdade infortunada.

Quarto de luz ténue,

Acobardado em nome da sorte,

Antes vida,

Muito antes,

Antes da morte.

A batida do amar

Não consigo deixar de misturar a natureza em mim. Não me separo da ponte que as tempestades criam no meu ser, ou na acalmia que designam as minhas mãos. Descendo o empedrado da calçada, o musgo nascente entre os seixos não deixam nunca de me lembrar a minha avó que vi morrer numa cadeira em paz sentada. Não consigo deixar de reparar nas variantes que a luz tem, no final do dia, e no correr dele para a noite. Não existe musica mais suave que o vento, ou métrica musical mais certa que a batida do amar. Não existe foto mais bela que a paisagem decifrada do cimo de uma montanha, ou amor mais belo que o abraço do sol adormecido na planície. Não existe maior encantamento que os pássaros e o seu voo, ou as crianças desarvoradas em correrias de crescimento. Não existe maior feitiço que a saudade da infância. Hoje, prendido nos meus pensamentos vi um fio de água que se tornou rio mediante a aproximação. As margens de tão iguais, diferentes se presenteiam. O algoritmo da estatística da natureza fecundou-se na simetria. A gravidez é a forma mais encantada de vida. São lindas as barrigas crescidas de vida. O amor, é o maior sossego que senti e a forma mais desprendida que conheço de matéria. Quando apaixonado, o desprendimento de bens materiais foi a melhor fortuna que experimentei. Desencanto-me no adormecimento incapaz de sentir, escrevendo palavras soltas feitas de esperança.

Num dia ...

Deambulando sou,

Vertente de mim.

Crucificado me encontro quando perdido,

Ai se eu pudesse parar esta espiral pensada.

Vociferada liberdade por aí,

Aqui, o meu corpo será pó.

A minha alma, ente e luz,

Azul o meu pranto.

Vermelho o meu encanto,

O cabelo que enlaças em caxemira ondulado.

Faz-me sentir baço,

O teu cinzento é o teu travo.

Chorei lágrimas lilases,

A cor do meio do arco-íris.

Ri alegria desprendida e solta,

Vagueaste por mim no teu perfume.

Terra, ar, céu, sol, mar, misturada fantasia,

Agora vou renascer.

Soltar as asas,

Embelezar-me de coração.

E por aí deambular,

Sou eu incognitamente descoberto.

Finito e transitório.

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