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Cardilium

Cardilium

Quando as raízes se desprendem da terra mãe, existe vida.

Quando as raízes prendidas se desprendem da terra mãe, os sonhos alvitrados de alegorias e penumbra, nevoeiro e maresia, sucumbem no deserto que as alberga. A pele enrugada dos anos vividos, são a marca que exibo como um mapa geológico de minerais descritos, tendo cada ruga a sua pertença. De dentro da alma uma rusga prendeu-me as marcas que soltei das amarras. Desprendeu-se-me sem ordenação da matéria desprovida de sentido. Cristalizei todas as experiencias sensoriais que me fizeram ser, aquilo a que chamo somático, e banalizei todo o experimentalismo totalitário não abnegado e de improvável felicidade. A fortuna que carrego está representada no mapa lacrimejal não sustido de água, que deixo de quando em vez ser nascente sentida. O património é o que levo, não o que exibo. O dia de hoje não tem particular significado exibicional ou exposicional. O dia de hoje é retiro e pacatez, como uma ordem matemática ordinária e qualitativa, não é quantitativa de aferição de valores somados. O dia de hoje é de ordenamento emocional e sementeira dos dias seguintes, pondo em ênfase a forma e não o conteúdo. É da forma que se trata, a forma como me trato, como trato os outros e me retrato e equaciono. As pombas brancas que se esvoaçam pelos campos, debicam sementes esquecidas e são tão felizes como o foram ontem. A serra não se engalana hoje mais do que amanhã. Os rios mantêm-se frios e circundantes, e nos açudes se esfumam. O sol deu sinal de vida e a lua iluminará como um abraço esta noite.

 

Quando as raízes se desprendem da terra mãe, existe vida.

As palavras são adúlteras

Vi-me dez anos à frente e embriaguei-me. Cortei os pulsos e preparei uma forca na oliveira mais baixa e larga que habita o largo de Cardílium, às ruínas Romanas. É lá que falecerei. Poderei, eventualmente escolher tomar de uma forma intravenosa, uma droga qualquer que me aliene, misturada com uma que me devolva a paz. Felizmente, dez anos à frente são hoje. Dez anos à frente não existem. Ontem, não existe. Amanhã, ainda não existe. O hoje existe, é flácido e tem lastro. O fundamento é tão válido como a caça às bruxas, esse chavão nacionalista que incorpora a incompetência, e a invoca como uma oração, sempre que não “seja feito à sua vontade”. Estruturo o meu pensamento como se de lógica abstracta se trate. Esta dissonância disruptiva e cognitiva, desafina os acordes que piso na escala, faz do fado lamúria e das palavras acesas, Lisboa.

 

A nação. Composta por “poetas castrados”, grita um uníssono não veemente. O mais certo como forma de vida será a fome ou a prisão. A fome, porque a poesia não dá sustento. A prisão, porque as palavras são adúlteras, famintas de igualdade, incómodas e escandalosas de um Abril adiado, de uma promessa roubada, gritada e esperançada em sonetos de poesia, “que os outros se mascaram mas tu não”. O tempo retira a razão ao poeta sonhador e visionário. O sonho impele o impedimento de “comandar a vida”.

 

Onde está Gedeão, Ary, e Sophia?

Onde dormem os operários?

De onde ressuscitou o fascismo?

 

O povo anda entretido com o novo acordo ortográfico, com a última geração de todos os produtos, com tudo aquilo com que os chineses nos entortam os olhos. Estamos de olhos enviesados. Eles, com os olhos bem abertos e redondinhos. Nós, os do velho continente e da velha senhora europeia, de olhos em bico, e, como Camões calculou, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”.

 

Já fomos um País de poetas que sonhou com a liberdade.

Contentores natalicios

É o fim. Depois de ter encerrado os portões de acesso à planície, sentei-me na pedra do costume e passei os olhos pelas notícias da semana anterior, escritas no jornal da semana passada. Nada tinha mudado. Estranhei. Não havia nada de novo no meu País e o mundo estava pacatamente absorvido em teorias políticas ou económicas acerca da crise presente. Presente em mim, existe a crise normal que a normalidade já nem cataloga de crise, mas de realidade. Aproxima-se a época do ano mais hipócrita, insensata, despropositada e inútil. Nem penso nela. Melhor, não consigo não pensar nela. Espera-me mais uma noite só, acompanhado por um filme ou qualquer outra coisa que eu decida ter ou fazer. Comprova-se o que penso, pelo aspecto inóspito dos contentores do lixo na manhã seguinte. Abarrotados de comida, laços e papéis coloridos, deposita-se aí a festa. A importância da noite está reflectida no lixo do dia seguinte. Pagãos, hereges, ateus, cristãos ou outros quaisquer, depositam o impregnado espírito natalício na manhã seguinte, e a ressaca espiritual do bem-fazer e do lugar-comum, “ano novo, vida nova” e mais três horas de felicidade induzida e falsa, que falseia a negação de uma mentira e a ajusta numa terrível verdade, é depositada a prazo na manhã seguinte, no sítio do costume, num lar perto de si. Eu tenho mais do mesmo. Pequenino como sou, escondo-me e purgo a minha emoção com a minha cognição, mas a verdade verdadeira, é que sou triste nesta época, porque me sinto sozinho de pensamento e presença.

Já é madrugada outra vez !...

Acordei a madrugada e levantei-me com ela. Tínhamos combinado escrever uma carta juntos, com as palavras que não me explodiram quando estiveste junto a mim. Com os socalcos de vontade que se desmoronaram na minha cabeça. Guardo as palavras para o próximo Fevereiro na Torre do Tombo. Estúpido. Estúpido é, como me sinto bastantes dias da minha vida. Bebemos café e foi-se embora.

 

Assim que saiu entrou a manhã. Vinha fresca. Tinha a frescura de quem tinha bem descansado. Enrolava nos lábios um sorriso mesclado de arte moderna que me faz lembrar, Amadeo Sousa Cardoso, esse pintor que necessito revisitar de tempos a tempos, esse homem que me dá cor às palavras, que entendo no seu traço. O teu olhar, carregava no entanto a crueldade descrita da pintura da Paula Rego. As tuas mãos. Não, os teus dedos. Esguios e habilidosos, são como os de uma estrela-do-mar, esse poema fingido do Jorge Palma. Gosto de ti, manhã. Tens sardas. Adoro mulheres com sardas. A minha mãe tem sardas. Mas isso não faz deste gostar, um gostar incestuoso. A manhã partiu de seguida.

 

Caminhei pela relva fresca da beira-rio. Depeniquei as folhas dos salgueiros que choram debruçados sobre o rio. Deitei-me e olhei o céu. Senti o mundo redondo como o vocábulo do Zeca. Senti calor ao meu lado. Era a tarde. A tarde, esse par longínquo de horas que se perdem pelo escurecer. Com a tarde não sinto nada. Sinto só e apenas, compaixão. Pena do ruído em que vive. Do bulício. Das horas intermináveis e de indetermináveis certezas erradas e erros tão certos. A tarde é uma prostituta cansada como todas as prostitutas. A tarde espera a oportunidade que a noite lhe dê. Uma prostituta é uma mulher. Uma mulher grande como a tarde, forte, atravancada de homens frágeis, descompensados, e de solidão cheia de sós. Pobres homens, os da tarde.

 

Levantei-me. O dia, soma de madrugada, manhã e tarde estava a refrescar. Precisava de uma camisola como aquela que o António Luís me fez. De malha, lilás, feita à mão. Entrei num café como antes, daqueles com fumo de cigarros amontoado, e sentei-me. Bebi chá de rosa / canela. Agora existem chás iguais com muitos nomes diferentes. O que mudou foram os corantes e conservantes. Li na etiqueta: “E” duzentos e não sei das quantas”, que já não vejo sem óculos o tamanho daquelas letras, não decifrei na plenitude.

 

A noite chegou na hora acordada e sentou-se. Desdobrou o jornal e comentou imperceptível, as notícias. Percebi Durão, Gaspar e Portas, que é a mesma coisa que não ter percebido nada. Nem quis perceber mais, que me bastou. Demorou-se na página que descrevia a vida de um sem abrigo. Disse-me olhos nos olhos: Conheço-o, vive em mim que sou noite, na praça da alegria, chama-se Jorge, dorme junto à raíz daquela árvore grande que lá existe no meio, defronte da polícia, enviesado ao Hot Club, sabes? Sei, respondi. Pedi-lhe então: não me contes as coisas que sabes da noite, noite. Não me apetece. Levantámo-nos e fomos dar um passeio em silêncio. Nós e as estrelas que, já acordadas cintilavam ténues no céu. De quando em vez ficavam encobertas por uma massa de ar que as envolvia, e que só me fazem lembrar um cobertor a aconchegá-las. Nunca me importei que as estrelas se escondessem. Primeiro, porque sei que sempre retornam. Depois, porque sempre acreditei que era como quando o meu pai me tapava e aconchegava antes de se ir deitar. Aconchegava-me e beijava-me, suave. Sempre achei que é o que as nuvens fazem às estrelas. Despedi-me da noite, abracei-a e fui. Fui perdido, ver se me encontrava na foz do rio junto do mar, e ao farol. Aquele farol seduz-me. Vejo nele um corpo de uma mulher e na luz o seu olhar envergonhado. Fui escolher as palavras que não disse. Substitui-las. Arranjar outras melhores. Inventá-las. Dizer de verdade as palavras.  

 

Já é madrugada outra vez !...

Desperdício

Desperdício é o suborno que a mente faz ao coração. O medo infundado a que cedo é tão-somente o ego que se dilacera numa estúpida e sem sentido grandiosidade. É a fuga inalterada e constante ao desconhecido, são as hipóteses adiadas e os beijos abraçados de plenitude e paz a que renego. Desperdício. Esse tempo que não se retêm, que se funde com o passado e não se glorifica no presente. O futuro é irrepetível porque é o passado no presente. Desperdício, esse vento de sul, que me empurra de mim antes de se separar de mim também. Não há ninguém que me queira tanto bem e mal quanto eu mesmo. Esta forma sádica a que por vezes me entrego, feita de sonhos simples e pensamentos elaborados tão distantes da minha própria imagem e essência, são o meu próprio inferno. O abraço adiado por falta de coragem ou a mão dada por falta de arrojo e bravura. Perco-me no turbilhão a que chamo complexidade mais do que complicação. Sou mais complexo do que complicado. Por vezes grávido de lucidez, travo comigo batalhas que se erguem de barreiras intransponíveis, de olhares envergonhados de desejo e de paixão fervente e humanizada. Ao fugir do dolo que é viver, perco-me da alegria que é existir. Semeio fartas marés de esperança, sonhando que nela desagúem lagos calmos e cristalinos enfeitados de pinheiros pontiagudos e barcos que pretendo habitar e possuir, e a eles chamar-lhes lar. Desperdício é sonhar e não fazer, não fazer subornado pela razão estúpida e traiçoeira do medo inexistente pela antecipação do resultado desconhecido.

Sobriedade

Frio, perdido, luz ténue,

Esperança baça,

Devassa mente,

Conspurcada,

Alienada,

Insatisfeita,

Luz forte,

Feito abraço,

Contigo fiquei,

Vida.

Antes a morte que tal sorte,

Se não pode alguém ser quem não é?

Não vivo,

Fugi,

Antes de morto,

Voltei costas ao destino,

Reescrevi,

Ressuscitado inventei,

Pessoas, sorrisos, oceano de simplicidade,

Se complicado não abundasse ser,

O destino,

Seis do doze de um ano por inventar?

É hoje todos os anos.

A poesia é uma arma carregada de futuro

A poesia é uma arma carregada de futuro, já o foi no tempo da ditadura e do prec. Não o será tanto hoje, porque a surdez se generalizou. Mas os poetas estão aí, de armas carregadas de destino, neste país onde o fado se tornou património mundial. O que é o fado senão poesia arrastada. As palavras quando bem usados são caminho, sentimento, história, pergaminho, e futuro. Muito futuro. Quando a poetisa nos diz “que os outros se vendem mas tu não”, ou quando os poetas nos dizem ”ouvir de novo a tua voz seria matar a sede com água salgada”, ou simplesmente “ poeta castrado não”, isso não será premonição ou alerta? Futurologia ou confissão? Desafogo ou permissão? Liberdade ou pluralismo? A palavra é uma arma, esquecida e abandonada, mas que contem as respostas necessárias ao bem viver e ao viver bem. As palavras são combate e revolução, revindicação e direito. A poesia é a chave para o entendimento e a lucidez. A poesia está viva e vive na rua, não vive unificada, vive reunida nas cabeças dos que não a aguentam e a fazem explodir.

 

A poesia explode e faz-me arder,

Arde-me em labaredas que decifro,

Em palavras descondizentes,

Que anunciam pedaços de mim.

Viva é, de entendimento e súplica,

De amor e desgraça,

De florestas e vento,

De igrejas decoradas,

E colares de flores com que me enfeito.

As palavras são a lágrima que lambo,

Os sorrisos que embargo,

As vontades com que me impeço,

O pedido a que rezo.

A poesia é tanto e mais do que eu,

É a adequação do que não sou,

E a verdade que me rege o pranto.

A poesia é uma arma carregada de futuro!