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Cardilium

Cardilium

Lírio e a alecrim salgado a mar

As mulheres que me amaram foram todas, tantas e nenhumas e todas as que eu amei foram escassas, parcas e fugidias. Resta-me pouco mais que as noites fragmentadas de trabalho e sono. Amei uma que tinha nas mãos um jardim, no cabelo caracóis e no peito poesia aos quadrados de xadrez colorido. Outra carregava encanto nos ombros e ao caminhar, os seus passos faziam desenhos lindos que não mais vi igual, cheirava a lírio e a alecrim. Outra, na cintura adelgaçava de meninez e inquietude e o seu olhar era como duas luas cheias, o sangue ouvia-se a correr de vida quando adormecia, e o seu cheiro era salgado a mar. Ambas sorriam pelos poros e as palavras só atrapalhavam o discurso. Sim, porque as palavras às vezes só atrapalham, ou só me atrapalham, como o vento que me arrefece, despenteia e as leva em vocábulos. Amei pouco e tanto. Amei muito e nada. De uma tive uma filha, e dos filhos não há muito a dizer, só há sentir. As mulheres que amei foram as mesmas que me amaram, embora no durante não o soubéssemos. Não se ama só uma vez na vida. Ama-se sempre e para sempre.

Descondizente

Púrpura cor esta enfeitada de laços,

Em olhos baços de tristeza,

Ora antecipada,

Depois projectada,

Nunca adiada,

Sempre molhada.

 

Cascatas de lágrimas

Ciosas de nada,

Cuidam-se como flores,

Em jardins,

De bálsamos,

Descondizentes.

 

Antes da sorte,

A morte,

Depois do pranto,

O encanto,

Antes e depois,

Depois e dantes.

Debraçado desisto

Outonal, quente e estrelado e de lua crescente, está revisitado, o mar. A costumeira rocha de farol incandescente a nascente, continua eréctil e arrogante de beleza. A cada pulsar de luz, o teu coração ilumina o teu rosto. Aquele pedaço moreno de mar continua intacto, tal como o teu sorriso. O teu cheiro comungado é como o gosto pela vida, fortificado.

 

Abraço,

Conhecido tempero da vida,

Que volta,

E não volta,

E na volta,

Apetecido,

Não fica.

Em ti,

De mim,

Se ficar,

Esse abraço,

Vociferado,

Mais que exigido,

Preciso.

Sem constituição,

Sem razão,

Sem emoção,

Isento de lei ou norma,

Vida,

É como o ar,

Que me oxigena,

E mantém vivo.

De outra forma,

De qualquer forma,

Fico?

Não fico?

Debraçado,

Desisto.

Da libido ao placebo

Suado de mil pensamentos, embrulho-me no frio que faz a madrugada desperta, e balanço-me nas pernas fracas e ténues rua abaixo. Não espero ver ninguém e muito menos espero que me vejam a mim. Ao longe, oiço o reboliço do vento. Sinto o meu olhar escuro e oiço vozes. Reconheço a voz das vozes que oiço e sinto saudades, não sei se em suplica ou brado. Como disse o poeta “ouvir de novo a tua voz, seria matar a sede com água salgada”. As luzes cegam-me. Cegam-me tanto que apago ou transformo a libido em placebo, essa mentira de efeito terapêutico sugestionada pela crença. Como passo eu assim deste incontrolável anseio, á paz sugestionada? Explico isso facilmente. Afinal a libido, não é apenas e aquilo que achei que era. A libido sofre de transferência, tal qual as transferências que eu sofro. A libido “sciendi” é o meu desejo de conhecimento. A libido “sentiendi” ajusta o meu desejo sensual no sentido mais amplo que o afecto encerra. A libido “dominendi” ordena-me o desejo de dominar. Estou aliviado. Entendo melhor esta minha, auto-preservação. Do placebo já eu depreendia ser, a etapa da negação ao ajustamento. Da libido ao placebo, tal como os meus suados pensamentos embrulhados, no frio da madrugada desperta.

Esta forma de adormecimento

Morre-se por dentro de uma forma imoral e irracional, num processo de procura de réplicas e contradições emocionais. O pensamento é anti-inimigo da decisão. As mudanças mais importantes e profundas nas nossas vidas, centram-se no campo das relações pessoais. O chão salpicado de folhas amolecidas silenciam o caminho. Os beijos desprendidos prendem-se de recordações parcas e soltas. A minha aldeia está cada vez mais sossegada e fascinante. Jorra por esta época do ano a saudade. Geme das pedras que forram a montanha e dos olhos dos que abalaram após o verão, sangra das bocas de quem fica, mais do sossego da lenha no telheiro arrumada para o inverno, que já é frio mais a norte. As estações são como as contradições perturbantes do espírito. Nunca se ajustam, jamais se encaixam, ou satisfazem. São como um rio que nunca desagua. Um trovoada que se adivinha. Um pôr-do-sol adiado, ou uma gravidez inexistente, no compasso biológico de uma mulher descontente e infértil. A infertilidade é o que nos magoa. Não ser pródigo e plural é o que verdadeiramente nos castra. Esta forma de adormecimento. Esta cama redonda de voltas dadas, sem que o sono se semeie, nos desmaie e descanse. Daqui a pouco, pela janela, o sol obrigar-me-á a ser. Mesmo sem vontade existirei num ser. Tal qual o sorriso que me enfeitará, ou o bom dia de saudação conveniente e despropositado.  

 

O pensamento é anti-inimigo da decisão. A decisão é inimiga do pensamento.

Que o sol nunca seja empacotado

Holocausto mental invade quem nos governa. Quem por nós decide. Quem, com ou sem o nosso voto doado, emprestado, impensado, inopinado, abstencionista, ou qualquer outra forma de somenos importância para o caso, fazem decisões das nossas indecisões.

 

O que fazemos nós com as nossas decisões?

Que compromisso celebramos?

A que sacrifício nos comprometemos?

 

Esta forma de pagar para nos sacrificarmos é ancestral.  Reduz e deforma o ser humano das suas reais necessidades e equilíbrios energéticos. Reparo nisso nas bombas de abastecimento de combustíveis, nas madrugadas à porta dos postos médicos, nas entradas das escolas e cafés limítrofes, no cheiro das igrejas e dos estádios de futebol, no verão que se pôs Outono e no Outono que já não termina mais. O nosso primeiro-ministro está menos louro, o que publicita indirectamente e revitaliza, o celebre restaurador olex e muito em breve a pasta medicinal couto, tais são os sorrisos forjados e dilacerados. Porque não pôs um dinossauro o pata no meu quintal, quanto mais não fosse, isentava a minha filha de pagamento de propinas, segundo consta. Cansa-me esta miserabilidade. Quero ser farto de esperança e acreditar que o trabalho vale mais, que o xico espertismo. Acredito na providência divina e no restabelecimento dos laços. Lembro-me dos laranjas e dos azuis clarinhos da minha infância. Recordo os vermelhos e os verdes. Os segundos muito mais interessantes que os primeiros. Apesar de alguns ajustamentos, a coisa mantém-se e o casamento não se desfaz. Voto, quer apenas dizer, juramento, sufrágio, parecer, arbítrio, decisão e afins. Tudo palavras sérias e inundadas de significado, apenas esvaziadas pela tomada de decisão, das nossas indecisões.

 

Que o sol brilhe à borla e nunca se consiga empacotar, para que não seja vendido num hipermercado perto de si, ou no sítio do costume, de forma a que não tenhamos que comprar detergente e sol, no mesmo corredor ou prateleira do sabão clarim.

O homem dividido

O homem dividido que emerge dos regos secos da terra é feito meio de pó, e de outra metade de fronteira. O espaço confinado que se sabe existir entre a alma e o espírito é divisível, não divisão. O cheiro a mulher e criança são as cores mais fortes e cegantes que existem. Cisão. Terra, mulher. Mãe, equilíbrio. Filha, semente. Origem, nascimento. Desapegado de ordens, ordeno desejo à própria fusão. O prazer de me dizer estranho entre gente, ou acompanhado na solidão, torna-me múltiplo, bilateral e multilateral. O que é isto senão uma unidade divisível, esta multiplicidade. Não é uma divisão de porções perdidas, previamente encontradas? Ou serão só, e tão-somente pedaços divisíveis aproximados, incorporados de alma e espírito, de energia e aventurança. Quem pensa é aborrecido e não dança nesta roda. Esta roda tem timbre. Tem palavra. Tem-me, de bruços debruçado, sobre as respostas encontradas às perguntas. É mais fácil responder do que perguntar. O discernimento está na pergunta, não na resposta. Na pergunta está a pertinência da resposta, a procura, a transformação, a mutação e a simbiose, a fractura das verdades absolutas, o peso desmedido e proscrito. Ninguém se eleva antes de tombar. Tombamos erectos mas levantamo-nos do chão, ou ainda mais abaixo do que o chão, porque existe esse sentir, mais abaixo do chão. Ou para lá do chão já não existe sentir? Existe apenas o milagre, talvez. Emanasse da morte como da vida, é igual. É a mesma coisa. A morte e a vida são a mesma coisa, de tão morta a vida está. Estará mais viva a morte na outra margem, para lá da fronteira do lado de cá do coração. Os rios têm pontes e os anos são tão sábios como as marés. Olho-me ao espelho, e, vestidas as calças que não me ficam bem, vou. Gosto antes das calças, de mim.  

Não é a morte que nos separa, é a falta de amor, essa divisão “inventada”

Que lugar é este?

 

Micondó respondeu ele secamente, ao perceber a minha ignorância!

 

Senti naquele momento, que a vida é para se viver e não para se evitar. E como eu sabia ter evitado mais do que vivido. Sempre a mesma merda. Responsabilidade, decisão, adiamento, e uma falta de tempo, que se esgota no tempo que me falta. O saldo ficará desequilibrado se não agir rapidamente. Quase cinquenta anos, sem sequer saber que aquele era o sitio a que chamavam Micondó. Ali, a roupa é lavada em água de rio corrente e secada em cima de pedras a olhar o céu. Há correria nesta abundância de felicidade, vista como necessidade do cimo da ignorância, que passa em carros potentes. Os petizes desnudados banham-se enquanto o cheiro a agua e sabão se misturam com o aroma dos frutos dependurados e verdes nas árvores. O lanche está á distância de uma pedra arremessada para derrube do manjar. A natureza eleva-se simbolicamente, numa simbiose harmónica de perfeição. Calor e água. Nuvens e sol. Picos e planícies. Mar, sal e fogueiras de peixe fresco. As vagas trazem os segredos simples dos laços que se criam, a cada braçada dada, nesse mar de azuis, de Micondó.

 

E a senhora de olhos fundos violeta do farol, pensei. Aquele farol que ilumina a noite no mar. Que reserva a giesta como oferta. O mar que dita os vocábulos compassados e ternos. A mulher, que conta com ardor no olhar a sua historia e a dos seus. A mãe, a avó, a mulher. Antes, os dias foram fartos de silêncio de uma boca amordaçada. Agora, as palavras fluem ensanguentadas de recordação, mas jorram calmas e límpidas como se a esperança renascida de igualdade, seja o seu exemplo. Ao longe, os palácios em ruínas rezam pela alma dos defuntos chicoteados. A bola de fogo que se deita no mar ao fim da tarde é o recomeço e não o fim. Amanha, erguer-se-á sem preguiça e cumprirá a sua missão. Terra generosa e abençoada a quem nada se poderá retirar, já que tudo nela existe. Paz, pão, crianças e velhos, e a doçura da expressão “leve-leve”.

 

Não é a morte que nos separa, é a falta de amor, essa divisão “inventada”.

A divisão do silêncio

Espírito crítico,

Massa crítica,

Crítica pela crítica,

Maledicência.

Se eu não fosse o que sou,

Seria apenas e tão-somente, eu.

Sou poeta, assumo,

E mesmo que as palavras não voem,

Tenho alma de viajante,

Sensibilidade de trovador.

O meu mundo só pode ser visto por mim,

Erro crasso verem-no em mim,

Erro maior,

Senti-lo por mim,

Erro máximo,

Vive-lo por mim,

Desacerto mínimo,

Regra de ouro,

A divisão do silêncio,

Encanta-me.

É tão ou mais ...

É tão ou mais difícil dizer que se deixou de amar, do que dizer que se ama, ou que nunca se amou.

 

Os finais são sempre mais dolorosos, doem sempre mais do que os começos. São diferentes na sua agonia. Se o primeiro existe pelo desconhecimento das respostas o segundo existe pelo conhecimento das objecções. O começo é indistinto e sombrio, o final é opaco, isento de luz ou de cor, despedaçado e desperançado. Entre a fé e a razão habitam emoções e atitudes. Deixar um mar daquele tamanho para trás, aquela terra da cor das pessoas, as crianças com olhos do tamanho do mundo, aquele sítio, onde se sabe poder ser feliz, e voltar às amargas horas de representação social, de procura nas horas de minutos de presença genuína e felicidade, faz da espera o pronuncio de uma delonga aguardada, faz deste vazio, solidão plena, inadequação desejada, identificação não encontrada. Apetece-me embriagar com álcool. Embriagar daquela embriaguez que deixei sóbrio. África está para mim, como a religião está, para quem nela sente a verdade. Tanto que por lá aprendo. Tanto, que por cá não quero esquecer. Aprendo com quem nem ler sabe, nem precisa, porque entende a Natureza e é livre. Amo aquela terra de ninguém e de todos. Partir é sempre mais difícil do que chegar.

 

É tão ou mais difícil dizer que se deixou de amar, do que dizer que se ama, ou que nunca se amou.