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Cardilium

Cardilium

Todas as noites estão nos meus dias

Muito devagar a saudade curvou-se e largou a âncora que nos prendia. Despediu-se assim, sem se despedir. Senti que voltaria numa qualquer noite de madrugada fresca, como um corpo amortalhado numa pedra fria, assim, tal qual como a morte quando ainda parece um sonho. Antes de se aceitar o fim, a morte ou a saudade, inventa-se o sonho. Depois, e aos poucos, os nossos olhos humedecem de tristeza e partem como a saudade partiu. Devagar. As perdas não levam necessariamente sete palmos de terra em cima, ou esvoaçam por aí em cinzas plantadas de sombras aprazíveis e desabafadas, ou em ondas vindas pela maré e levadas pela estação do vento. As tuas mãos. O teu sorriso tímido e desavergonhado, o cheiro do teu sexo na minha boca, as tuas sílabas em vernáculo decifradas, o teu cabelo desembrulhado em molhos pegados pela transpiração, a água que geme das tuas fontes e o teu corpo feito pela soma de espasmos, iluminam-te. De lado, e de joelhos dobrados, penduras o teu olhar na janela onde cai a luz da lua. Pareces ausente de tanta presença. Está o mundo terrivelmente parado. Está a saudade refeita no meu sonho. Não sei viver sem saber. Impaciente, amanhã, sei-me a esperar o dia. Outro dia. Mais um dia. Tantos dias. Nenhum dia. Não existem dias. Todas as noites estão nos meus dias. Penso até, que só existem noites em mim. Divido assim os meus dias em noites com claridade e pessoas. E dias com noites de mim e eu.

 

Um dia uma amiga disse-me: - Finges que não me vês. Pensei: - Ver vejo, mas vejo o que nem ela própria vê, e não lhe sei dizer isso, de tão bem que a entendo. Não tenho palavras para discursos começados por: - Eu agora já... Eu descobri-me... E já não preciso de... E eu...E eu... E eu...

 

O quarto minguante não é crescente, a lua nova não é cheia e a cheia não é nova, mas todos os quartos da lua fazem dela redonda, grande e linda de luz, e tal como a saudade, despede-se assim, sem se despedir.

 

Há quem repare. Há quem não repare.

Anterior à lágrima e subsequente ao sorriso

Um fio de luz irrompeu a penumbra clareando a escuridão. Irrigou e amanheceu-me as ideias, convertendo-as afirmativamente. O trabalho de que disponho desemaranhasse como um pião de madeira lançado num vertiginoso rodopio. Viver dá trabalho. Pelo menos viver pensando, decidindo, caminhando, não subestimando, não vendendo e esculpindo o caminho traçado. Lavrar, erigir e desobstruir, falece e anima a alma no minuto seguinte do outro, anterior à lágrima, e subsequente ao sorriso. Gosto de dar as mãos. Gosto de mãos. Mãos desenhadas e acabadas. Gosto das mãos que me fazem adormecer sem medo. Gosto do sono bom de bem acordar. As mãos são limpas. Uma vez sujas, jamais voltam a ser limpas. Como a mente. Uma vez conspurcada jamais deixará de o ser. E a amizade é igual. Uma vez seca, jamais será verdejante, tal como a colheita de uma sementeira. Tal como a desilusão. Esta, dificilmente deixará de ser desilusão. Como o desamor, que não mais será amor luxuriante. Estas “coisas” que sentimos são pedaços de nós, e tal como o vento que passa, desaparecem. Não se voltam a juntar.

Pai chão...

Tentar mudar os outros é sofrimento escolhido. Não se podem alterar escolhas que não as nossas, vontades ou decisões. Alterar o peito que não jorra, em nascente abundante é a inexistência do desejo. O chão térreo e firme decalca ensinamento. Recordo o meu pai e a sua protecção de cada vez que cai. Do seu olhar que me cegava e a da forma exígua como me levantei. O meu pai, chão e paixão. Sou desperto e iluminado pela capacidade de sentir. Os meus pés, sustentação de mim são alegorias metafóricas, combinações de átomos, fogo e céu, partículas incandescentes tornadas obra. Sinto-o ao correr e ao ler, mas muito mais ao reler o que não comando e escolho em mim. Vejo, mas vejo muito mais e em crescendo ao rever. Oiço, mas oiço diferente ao escutar. A escuridão é uma prima construção do silêncio, o silêncio oxigena a minha existência e verdade. No escuro do silêncio decido sem medo, abraço-me, num merecimento de mim mesmo. Na desconstrução nasce a decisão. A dúvida semeia o não, a verdade decide a inteireza da resolução. De audácia me deixo marejar olhos dentro, pelos sorrisos abertos de quem me olha e vê. De quem se desagrada de mim, por de mim se entender. Terra firme, pai e chão.

Imune aos cálculos de perdas e lucros

O processo de estar vivo faz-se de apegos e aversões. O bem pelo bem. O mal pelo mal. A meditação é como agua purificada correndo cristalina pela nossa alma. O vento está-se a pôr. O sol quando se põe desaparece. O vento quando se põe acontece. Acontece em formas únicas e sons singulares. O vento está posto esta noite. Deposta está, a capacidade de entendimento vinda do nada e trazida pelo vento. Há situações que só mais à frente são entendíveis. A incoerência mói e despedaça fragmentos de vida. Não ser lembrado por quem nos lembramos, não ser entendido por quem entendemos, não convidado a quem convidamos, mata. A vida é uma atitude dinâmica. Não basta juntar anos, em cima de uma decisão de anos, e não fazer disso um processo dinâmico e evolutivo. A vida não é estanque e quando nisso se torna, torna os intervenientes quadrados de estanquicidade. Na verdade, cada vez mais, menos me identifico com os meus companheiros. A minha solidão quase me basta. O meu pensamento faz-me companhia. Divirto-me a crescer. Apegos, diz-me a experiencia são ilusões transformadas de aversões e as aversões são o resultado dos apegos. O budismo como filosofia, não como religião fascina-me.

 

Uma pessoa que mantém a atitude sincera de aprender sempre é um sábio que avança pela grande estrada da justiça, combatendo a arrogância e ambições.”

 

"Mesmo que a época e as circunstâncias da vida mudem, o que nunca se devia alterar é a verdadeira amizade. A que muda facilmente por algum motivo não é verdadeira. Ao contrário, quanto mais adversidade encontrar, mais forte e mais profunda se torna a amizade." Daisaku Ikeda

 

No decorrer da vida, desfrutamos a companhia de diferentes tipos de amigos:

 

- Os amigos de nossa infância que podemos lembrar vagamente.

- Os amigos da escola primária.

- O melhor amigo da adolescência.

- Colegas que encontramos no trabalho.

- Amigos com quem compartilharmos bons momentos.

- Companheiros de farra e pouco mais.

 

À medida que envelhecemos, um amigo é aquele com quem podemos sossegadamente beber chá enquanto conversamos. Não importa em que estágio da vida estou, ou que tipo de amizade pretendo. A amizade é uma pura conexão entre duas pessoas, um elo de sinceridade mútua, imune aos cálculos de perdas e lucros. Não mutável. Não influenciada por vantagens.

Ah, Saudade

“...Admira-me a sabedoria dos homens ante os outros sujeitos. Cegos, surdos e deveras falantes. Presunçosos e francamente sensíveis à oposição dos seus pontos de vista. Somos incapazes de realizar a simbiose entre a verdade de nós próprios e a verdade absoluta e inconveniente, como uma concertação possível a um entendimento. Isso tornaria a verdade única, ditatorial e absoluta, em verdade relativa, aberta e construtiva. Sabemos sempre o melhor para a vida dos outros, porque temos experiencia, somos informados e visionários, com se uma vida fora de nós fosse a nossa própria vida. Assim é fácil. Com a nossa quase nunca assim o é. É difícil. Não sabemos o caminho. Não temos soluções. Mascaramo-nos. Adiamos. Procrastinamos. Sabemos tão-somente o que sentimos, e é nessa altura que elegemos um nome para tal estado de espírito, e nem sempre acertamos. Alcançamos mediante a nossa evolução espiritual e acertamos com os erros. Os erros são acertos. Dar-nos o direito de estarmos em nós, é um dever. A prisão é como a liberdade. Existem liberdades presas de tudo. Mortes cheias de vida. Vidas amofinadas. Teorias politicas e filosóficas desumanizadas, contrapondo o fim para que foram socialmente pensadas, sem escrúpulos, economicamente viáveis, mas dependentes de terceiros. Depois há em nós ruínas por edificar e crianças interiores por soltar. Há sempre alguém que nos faz falta. Ah, Saudade...”

 

In ... De um filho de um deus secreto e selvagem, num sábado que não parece sábado

 

“...é talvez sinal de prisão ao mundo dos fenómenos o terror e a dor ante a chegada da morte ou a serena mas entristecida resignação com que a fizeram os gregos uma doce irmã do sono; para o espírito liberto ela deve ser, como o som e a cor, falsa, exterior e passageira; não morre, para si próprio nem para nós, o que viveu para a ideia e pela ideia, não é mais existente, para o que se soube desprender da ilusão, o que lhe fere os ouvidos e os olhos do que o puro entender que apenas se lhe apresenta em pensamento; e tanto mais alto subiremos quando menos considerarmos a morte como um enigma ou um fantasma, quanto mais a olharmos como uma forma entre as formas...”

 

In ... Agotinho da Silva

 

“...privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo... e, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos...”

 

In ... José Saramago - Cadernos de Lanzarote - Diário III - pag. 148

 

“...fico admirado quando alguém, por acaso e quase sempre sem motivo, me diz que não sabe o que é o amor. Eu sei exactamente o que é o amor. O amor é saber que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer. O amor é saber que vamos perdoar tudo a essa parte de nós que não é nossa. O amor é sermos fracos. O amor é ter medo e querer morrer...”


In ... José Luís Peixoto 

O profano, o laico e o sagrado

No meio do deguste de uma galinha de tomatada no Alentejo profundo onde a vida corre demorada e pachorrenta e meio inexistente, no descanso soberbo e na pratica vulgar de fantasiar acerca da vida que não se sente, emerge em mim de repente um arrepio, num guinchar agudo de um carrossel improvisado. Dois petizes excitados pelas voltas do dito, após desmiolarem os miolos do pai que não aguentou a depositar a moeda magica que faz o milagre do movimento rotativo do mesmo, quase me matam o momento farto e tranquilo com que me seduzo e trato. Estava a ter uma refeição longínqua e orgásmica. Não sei porquê nem porque não, pensei no Rui Zink e no Miguel Esteves Cardoso, personagens senhoras de um humor elaborado, de como dizer às pessoas que existem atitudes menos inteligentes, em pessoas inteligentes. Adoro ver miúdos excitados, felizes e contentes, detesto a ideia de terem posto tal estratagema, mesmo defronte à mesa onde saboreio a minha galinha de tomatada.

 

A planície perde-se no acto de adivinhar o que existe para além dela. Os sobreiros permanecem sete anos iguais. Depois, e após o desbaste, transformam-se noutros sete anos. Dizem que são como os ciclos de vida. São como as promessas depois da sétima onda, quando os nós da fita do senhor do Bonfim se desgasta, e os milagres não se realizam. Não tem a ver com a cor da fita, se veio do Brasil ou se foi comprada no Martim Moniz, não é isso. Não tem a ver com os nós, nem com as ondas. Tem a ver com o profano, o laico e o sagradoe o rigor do anti-milagre, que não se desfaz à promessa.

 

Um dia destes disseram-me que a santa da ladeira pôs um paralítico a andar. Enfim, não se pode argumentar ou contra argumentar, com esta coisa do profano e do sagrado. Pelo menos não se deve. É o ópio do povo, e eu sei o poder do ópio e dos opiários que o Fernando Pessoa referia no oriente. No ocidente existem, aqui mesmo ao lado. Vejo-o pelos arrumadores, a quem dou cigarros e moedas, sempre. Gosto de contribuir para que se sintam bem. Sem falsos moralismos.

Do remetente nada espero

Do remetente nada espero,

Porque sou destinatário,

Remeto abraços,

Cores e traços,

De desenhos inacabados,

Obra-prima,

Construção,

Cama de dois,

Lençóis suados,

Entre a luz,

A brisa,

E o prazer,

Faz-se luz numa janela,

Num mar moreno,

De sal,

Está o luar inventado.