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Cardilium

Cardilium

“vou ali colher uma braçada de sorrisos para ti”

Sonho com pomares de abraços e sementeiras de afectos. Sonho com a expressão “vou ali colher uma braçada de sorrisos para ti” ou “semeei hoje de madrugada abraços frescos, daqui a seis semanas, quando os colher envio-te um ramo deles, para que não te faltem”. A terra fértil aos torrões no regadio colhe as lágrimas que me caem. O adubo é a minha confissão nas tardes sentidas onde me sento e recolho. A passarada no seu voo giratório observa-me e faz-me senti-los ali, presença. Ao longe vislumbro o céu cada mais escurecido e a noite cada vez mais clareada. Clareada de uma luz meia ofusca, que me sombreia o regresso. As chaminés deitam fumo com cheiro a aconchego. Vejo um vulto que sei ser da Hermínia, tusso, e ela diz-me:

 

- Entra Josefa, podes entrar, tenho sopa acabada de fazer, puxa uma malga do armário, senta-te e aquece a alma, anda.

 

- Não quero incomodar deixe estar, respondi.

 

- Não incomodas nada, o que me incomoda é ver-te de negro esse olhar assim, olharento. Sabes, entro em ti pelo teu peito e vejo o meu. Sei a ânsia dos teus dias e o medo das tuas noites. Sei-o tão bem. E as labaredas? As labaredas tão intensas como se de beijos do teu amado se tratassem. Ontem reparei nas tuas mãos, são trémulas, trémulas como a tua respiração. Até parece que respiras pelas mãos. Bem sei que o peito farto não te sossega o sangue em tempo algum. O teu fogo? O teu fogo eu sei como arde.

 

Aquela sopa não desfalece na última colher ou o no último pedaço de lenha ardida. Aquela sopa tem a sabedoria, o calor, o conhecimento, a experiencia, o afecto, a protecção, e o afago da Hermínia. Aquela sopa faz o luar, a noite, e o acordar. Faz-me entender que um dia igual a tantos outros, não será igual a nenhum deles. A sala do fogão da Hermínia é o meu mundo, o meu mar, a minha bonança e tempestade, o meu amor e respeito, a minha compreensão e diferença.

                                         

Saudade é uma tristeza sonhadora

Saudade é uma tristeza sonhadora. Sonho todas as manhãs com uma mão cheia de reencontros. Tenho as algibeiras recheadas de prendas e abraços que esperam a sua hora. Aos domingos a saudade é mais aguda. Nos restos dos outros dias igualmente. Distraio-me com acordes soletrados de rimas e cantarolados pela minha alma e pelo meu espírito. A tristeza tem o cheiro a saudade. A solidão alivia-se com a recordação de uns lábios pintados de sorriso. O meu reformatório interior tem regras claras e não me deixa rimar a poesia em conceito de loucura. A saudade inventada pela tristeza é a ausencia. Submerge em mim a vontade. À tona dilacerado o meu peito aguarda. Átomos mais que partículas sufocam-me por inteiro. A ausência cheia de tudo e vazia de ti esmaga-me de encontro ao adiamento. Como é possível a esperança não comandar este hemisfério onde pertence a emoção? A inteligência e a troca de vocábulos de nada me valem. Oiço as passadas acordadas de madrugada desta vida desdita e apartada. Já é dia, o sol espreita benévolo. Fecho as pálpebras e aqueço-as. Aquecer as pálpebras conforta-me, ao mesmo tempo que não vejo o céu que sei vivente. Desistente desfaço-me em alguns pedaços que sofrem de mim e reconstruo-me. Saudade é uma tristeza sonhadora que um dia estará ao meu lado, real e aguardada, materializada com o teu sorriso abraçado da tua luz, trespassada pelo caminho que fizeste até aqui. Os meus braços solícitos esperam-te sem palavras como este amar mais que vida. Esta imensa ternura raiada de diferença valerá a pena, valerá presença.   

Invisíveis fontes

Quanto mais inventado mais verdadeiro. Invento um miradouro nos teus olhos, uma viagem imaginária. Os teus dedos apontam-me a presença. Sei que é primavera pelos teus passos e noite escura disponível para amar. Sinto refugiada em mim uma vontade guardada de ti. Os meus olhos vêem em arcada, outras vezes plenas e distorcidas grinaldas. Semeio pérolas que não colho, invisíveis são as fontes onde bebo alegria. Sábado tarda a tarde de anteontem. Desiludo-me no promontório quando não avisto nem Maio, nem cravos. Os cravos transformaram-se em escravos e a greve em sacrilégio e pecado mortal. Boicoto o silêncio com um grito. Viva a liberdade. O romance ledo e frívolo que devoro em páginas degustadas chegou ao epílogo. Recapitulo os adjectivos e sinónimos escritos de mim.

 

Como pode o autor me ter descrito se nunca nos vimos? Será que existe uma matriz? Um tipo padrão destinado a mal amar? Será que o nevoeiro que me enche os pulmões é azul?

 

Ontem as borboletas poisaram na mesa do meu quintal. Uma em cada esquina, como que a decorar o equinócio cruzado pelo Equador celeste. Os versos que eu fiz ninguém vai ler, ver, ou sentir. O autor morreu. A ausência é como a sede, definha. Não há fonte que a mate, se não brotar da presença a nascente. A saudade é como a morte, não há vida sem comparência. O medo é falta de luz e não há luz como a do teu olhar. A fonte onde me encho de alegria fica a seguir à curva da ausência, no alto da duna sobranceira ao mar.

Retorno

Ambiciono retomar a inocência do olhar. Despir-me de toda a sabedoria e voltar a ver as coisas como em criança. Com a ingenuidade e o conhecimento por adquirir. Pretendo apreciar a luz, a contra luz, a claridade e o sol pela primeira vez. Desejo apreciar a espuma das ondas que escorrem da rocha e a lua que se levanta e põe com o meu acordar. Quero-me isento de opinião e sentir-me extasiado com um prado verde repleto de folhas caídas de Outono. Quero pisar pela primeira vez o amolecimento das minhas passadas, imaginando as nuvens. Quero ouvir o estalar seco do sol. Oiço ao longe o rio que se queda de aqueduto em aqueduto, de açude em açude, levando no seu leito quem nele se quiser deleitar. O rio não escolhe, aceita. Entendo a sua decisão. Aceita-se a maior parte das vezes, escolhe-se a ínfima parte sobrada. Aquela senhora idosa espera sentada no jardim o fim. Do fim não tem medo. O fim levou-lhe os que amava e tem-nos com ele. Sabe que lá estarão à sua espera. Candidamente deixa o sol trespassar-lhe a esperança do reencontro. A simplicidade vem com a sabedoria. Gentil cumprimento num aceno quem do outro lado da rua a cruza. Apetece-me correr no meio da cidade. Empreendendo. Sou mais do que aquilo que aparento ser, mas não sou tanto do que julgam que eu sou. Desajustado quero desaprender. Adoptei-me a mim e ao mundo. Apanho o comboio seguinte sem bilhete ou decisão, não sei a estação onde estou, não sei para onde vou. Sei que sou uma alma voante.     

Gosto de papoilas

A saudade dispendida nos encontros adiados é como o céu imenso salpicado de estrelas, sem a constelação que procuro para desabafar. O meu olhar de saudade inventa faces de sorrisos e a minha alma deposita-se em murmúrios chorosos. Amanhã brilhará por certo o reencontro. O desencontro esgotou as tentativas. Assim sendo só sobra o encontro. Duas almas que nunca se fundiram são almas puras e abertas. O excesso não é fartura. A fartura existe depois do excesso. Fartura no sentido de farto. Entendo que a fartura devia ser abolida pelo quanto baste equilibrado. Sempre vivi no limite de me fartar do excesso. Sempre adormeci cansado. Não descansar de ter, de ser, de ouvir, de ler, de cantar, de tocar, de amar este desamor a mim. Retorna sempre este círculo, esta espiral, este ponto de partida não evolutivo. Cansa-me a falta de descanso. Sobriedade não é sanidade. Não quero este olhar meu sem o teu. Espreguiço-me e bocejo nesta falta de adormecimento, neste soneto interior que me mantém acordado. Intacto, forço-me a respirar este ar que não é meu. Gosto de papoilas. Gosto do mar onde elas se plantam e das dunas onde me abraçam. Gosto do céu a que me elevam. Desconfio sem razão aparente deste momentâneo bem-estar. Quero a seda do teu beijar e as tuas mãos dentro do meu arrepiar. Saudoso este cristalizado sentir emocionado. Ainda não andei no baloiço lilás da tua cor, ainda não vi os cisnes ao romper da aurora. Coisas simples tem este meu desejo de descansar. De me dar. De ficar. De confiar. De ser. De arriscar. De ter.

As estrelas voam dentro de mim e do mar

Passo a passo,

Gota a gota,

Destruo o atalho.

 

Encho de abundância este mar,

Pronuncio sílabas desembolsadas,

Fatigadas.

 

Oiço-me estridente noutro lugar,

Ausente,

O verão ainda não acordou.

 

As estrelas voam dentro de mim e do mar,

A madrugada aperta-me,

Solto vibrantes tremores.

 

Afago-me e invento:

“O dia mais cruel e sábio não existe sem razão aparente. Fecundado antes, é avisado pela irracionalidade, parida de paixão”

Sonolência quotidiana

Sonolência quotidiana. Mãos cabisbaixas erguidas nas algibeiras. Silêncio. Reparo em mim e numa espécie de meditação acerca do movimento acelerado das pessoas e do seu olhar, murchado de Outono. Em mesas garridas agrupo-me numa sonolência colectiva e não reparo na vida. Alheio-me à vontade intrínseca de me exilar num xaile debruado, com cheiro a lareira e fumo. Esta modernidade maça-me. Tanto que preciso de mim rodando como um girassol e livre remexendo na terra, soltando labaredas de felicidade por mim afora. Sonho adiado com os meus próprios sonhos. Entusiasmo-me segundos depois de me extasiar de nada. Desentusiasmo-me com o mesmo prazer. Nas mesas garridas agora prateadas de tabuleiros, as pessoas, nós todos, ingerimos as calorias necessárias, para mais uma tarde de sonolência quotidiana e colectiva. A solidão levantar-se-á no instante, em que todos nós nos levantarmos, e sozinhos velejaremos mundo fora. Almoço com três pessoas que se sentaram numa mesa que escolhi para estar sozinho e acordado. Acabei por pactuar com a sonolência emocional que se instalou por falta de assunto, antipatia, medo, insegurança, cansaço, desespero, inadequação. Mesa colorida carregada de faces sombrias, gestos rápidos, embriaguez turvada no olhar, redoma de cristal estalado. Bebi café ao balcão e saí, no rádio cantarolava um senhor que dizia naquele dia: “andas aí a partir corações, como quem parte um baralho de cartas, cartas de amor escrevi-te tantas, às tantas e aos poucos, tacteando e às cegas lá fui conseguido, Abri os olhos depois de um ai me ter chegado aos ouvidos nesta sonolência quotidiana, nesta calmaria da barca dos amantes.

E assim se faz o luar

Não entendo a forma, entendo o conteúdo. A contemporaneidade tornou-se quase numa filosofia baseada no medo. Pensa-se quando se devia viver, vive-se quando se devia pensar. Os conceitos não são como a matemática, são voláteis, abrangentes e globais. Os extremos tocam-se e até se poderão complementar. O meio-termo pode ser um atalho, um acerto, ou um erro. Pode ser um desvio. Pode ser padrão. Pode ser um caminho. Viver significa sentir. Significa não ter medo de sentir. Vive-se com o que se sente, e, não com o que se pensa. Engano-me bastantes vezes com o que penso, não me engano com o que sinto. Se sinto, sinto, está sentido. O exercício do pensamento também está fora de moda. Com isto de maneira alguma pretendo retirar a importância à cognição ou raciocínio não lógico e/ou lógico. Pensar é entrar num mundo decisório e emocional divergente. Não dissocio um do outro, mas também não me ajusto com meios-termos, termos e meios ou extremos. Enquanto reflicto o mundo inclina-se e reflecte a luz do sol na lua, e assim se faz o luar. Agora, neste momento, noutro continente. Mais logo à minha janela. Enquanto me descrevo nesta escrita a maré vaza e o mar endiabrado diverte-se. Enquanto me divirto nascem e morrem seres humanos e outros há, que nem vivos ou mortos estão, de tão amorfos e amarfanhados estarem nos seus egos e prazeres mundanos. Levo o que vivi. O que adquiri, cá apodrecerá. Também não me faz falta nenhuma. Faz-me falta viver e ser. Dar-me e ter-me. Estar e abraçar. Ser amizade e presença. Partilhar. O mundo de uma forma cíclica retorna-se a ele mesmo. A contemporaneidade transformar-se-á em caducidade. Os sonhos voltarão a brotar das flores e a enfeitar os sorrisos de florestas. O céu voltará a ser da sua cor e as mãos voltarão a dar-se, numa luta continuada e genuína de quem quer vida como liberdade.