Espero o vento entre dois caminhos. Encruzilhado solto uma baforada de frio. Em de mim descansa uma cascata colorida. As folhas soltam-se embriagadas das árvores e o mar rebenta num voo picado e tangente. É madrugada dentro de mim. As horas que me restam de sono vão ser acordadas. O meu olhar solta-se perdido na espuma que se vê nas ondas. Assimilo. A noite estrelada e única é como a insofismável vontade invernosa, chuvosa e rude que me invade. Passeio-me dentro de mim. Procuro que a tua boca me amorne. Um canavial semeado na enseada dança ao assobiar do vento, e, eu ali tão presente, estático e ausente, vivo e vibrante, sôfrego e demente. A madrugada foge pela manhã afora da noite. As tuas mãos percorrem em desvario o momento nas minhas. Ao longe embarcam viajantes numa faina de luz. O tempo esgota-se a cada segundo. O esgotamento é vivo do uso que ao se tempo dá. Não é gasto, é esgotado. Lembro-me de respirar por ti. Respiro a cada suspiro teu. Agora a morte sucumbe, só há vida. Um sorriso envergonhado é como um quadro começado que fica por acabar. Uma lágrima vertida em silêncio é como um amontoado de palavras esculpidas numa pedra que nunca ninguém ouviu. O evitamento é uma dose de solidão plantada. Refreio o que existe em mim. O sol nasceu antes de mim, nem sequer vi aquele céu tão estrelado embrulhar-se com a lua, quando me decidi, a maré já estava vazia e os sonhos encomendados.
A janela embaciada faz-me adivinhar o tempo. Está frio e na minha face sucumbem dois olhos fundos, esperando uns raios de sol extravagantes e inesperados. Sinto-me fraco. Fisicamente sinto-me em fase de ajustamento. Espero que o meu metabolismo faça as pazes comigo. As mãos não obedecem ao comando e no meu peito fere a incerteza. A Maria do Cabreiro curandeira ancestral recomendou-me chá de erva do ribeiro, uma mistela que diz ela que ressuscita até o inverno em pleno verão. Oiço na estrada grande afastada daqui, o respirar dos motores que se debatem recta acima. Os miúdos dançam e debatem-se debaixo da arcada do prédio em frente. Felizes. Cheira a rosas o ar, pronuncio de névoa que caíra na certa pela noite dentro. As luzes trémulas começam a acender-se quando o dia cai. Entre o tórax e o fígado, os rins e os pulmões existe uma revolução em mim. Já tomei o chá da Maria do Cabreiro e descanso agora um pouco. Amanhã outro dia romperá augurado de uma nova e incandescente aurora, repetitiva, mas diferente. Sempre diferente. Amanhã eu sou diferente. Já ontem o fui e serei consecutivamente até ser existência. A existência jamais deixará de o ser. A voz habita toda a poesia. Recolhimento é pensamento, pensamento é palavra, palavra é subsistência. Acompanham-me os sonhos, encho-me da realidade e do que vivo. Subi num avião, voei, aterrei, e sou outro, o mesmo renovado talvez.
Sacana pá, és um sacana respondi. Ele olhava-me com um ar esfumaçido. Sei que nunca me tinha visto de cima deste olhar raiado a vermelho sangue, a enfrentá-lo sério e assertivo sem estar próximo mais que este mundo, de qualquer retirada de tom sério à nossa conversa. Continuei perguntando-lhe: sabes o que é um sacana? Ele quedava-se com o olhar de encontro ao céu, mas ao contrário, porque aquela laia de gente nem sabe o que o céu é. O céu para ele não é celestial ou tem estrelas, nuvens, lua e sol embelezando-o, para já não falar do que é o céu, conforme cada um o concebe ou não. És um sacana continuei, não te anuncias, instalas-te, deixas o dinheiro fazer as minorias e as elites formarem grupos fazedores de dor em uníssona voz feita, de milhares de espoliados e oprimidos, castrados de acessos apenas. És um sacana, nunca escutaste uma madrugada ou um rouxinol. Para ti um pôr-do-sol é apenas o término de mais um dia de trabalho, sinal de que a fundição se irá apagar e as peças não se reproduzirão mais. És um sacana impiedoso que adoras dinheiro, doença e África. Seu dissimulado. Não vês o teu povo. Não vez as camas onde se deitam, os rios onde se banham. És isento de emoção e deslumbramento, cruel besta do destino de quem se sacode nove meses num ventre, e mais nove de calcorreio de ruas de pó e pedra, e outros nove de força dispendida, restam nove a caminho da morte, São estes os anos dados às tuas crianças. És um sacana, que não merece o sorriso dos teus, a esperança, a submissão da troca das noites pelos dias e dos dias pelos amanheceres e dos amanheceres pelos cornos traçados na vida e investidos em nada. Nunca me faltou nada. Dificuldades não são faltas. Falta é,” isenção de”. Dificuldade é adiamento. És um sacana seu dita dor. Ditador.
Já escrevi de muitas formas. Sempre na procura de encontrar um conteúdo que me estivesse a queimar a alma. Já escrevi porque sim. Já escrevi porque não. Já escrevi porque criei ou empreendi. Já me vesti com outra roupa ou despi a minha para escrever. Já me imaginei louco e sane, pássaro ou sol, lua e trovoada. Já fui maré e mareante. Já fiz de tudo por uma boa desculpa para escrever. Mas nunca me lembro de me ter sentado para escrever como hoje. Sem qualquer motivo para o fazer. Fui de férias para onde escolhi e ainda nem sequer a casa fui. Do aeroporto vim para um hospital. Como uma febre daqueles que tal como o país que visitei, o Mali, acontecem. Quatro dias de exames, tira sangue dali para acolá e de acolá para ali, e já com o cognome do senhor do Mali. Uns aproximam-se e são carinhosos, outros acham que posso ter um mal muito maior do que o declarado na fronteira, e não vá o diabo tecê-las, são mais frios e julgam-se mais profissionais e subtis. A diarreia acalmou. Agora sabemos que o que quer que seja é no intestino, está controlado, mas temos que lhe dar um nome. É disso que andamos à procura. Ainda nem reparei no privilégio que foi a viagem e a mudança que de certeza em mim causou, tão obcecado estou comigo e no meu regresso ao lar, à minha comida e água, e ao meu cigarro antes de voltar a trabalhar na segunda parte do dia. Na resisti e mandei vir o computador. Não vou resistir e amanhã mando-o ir novamente. Tenho saudades de estar à volta de uma mesa com algumas pessoas. Ainda nem vi, as mais de duas mil fotos que tenho para ver, mas porventura pouco falta para levar a bilionésima agulha espetada num sítio qualquer por mim acima. Até breve amigos especiais.
As palavras aveludam o delírio de eu querer voar. Ter asas e não voar, é como ter sonhos e não os praticar. Quem sonha alcança, quem persiste encontra. Um dia virá, em que o espaço e o tempo serão uma oferta de mim, a mim próprio. Estou na praia onde o teu cão correu desalvoradamente e onde eu, no meio de mais de um milhão de finos grãos de areia, encontrei o teu brinco perdido e, achado no meio daquele abraço contínuo. As ondas estão calmas neste mar turquês. Perco-me num cigarro prazeiroso. Roufenho o rádio toca uma musica que me parece longe e distante, nostálgica e profunda. As notícias dizem o mesmo desde as sete da manhã. O mundo está parado. Não existem novas novas, nem boas ou más novas. Chove uma ventania de sul que me beija a face. Retrospectivo o tempo que me tem aqui, o que me deu, o que fiz para me dar. Nunca trabalhei nem sozinho, nem tantas horas. O mar sobrepõe-se agora à roufenha voz em frequência modelada de encontro às rochas onde as gaivotas se juntam em convívio, onde se balançam nas ondas, como crianças em baloiços nos jardins coloridos da cidade. Do outro lado da baía o sol ilumina dourada a areia e rompe as nuvens em raios que ostentam confortabilidade. Vou até ao Mali. Já venho.