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Cardilium

Cardilium

Esta "coisa"

Preciso de ouvir o ruído do silêncio que estala no meu cérebro. Preciso de entender a força do vento e a mensagem que me envia e não entendo. Preciso de deixar embaciar os meus olhos e sentir-me imóvel. Preciso de parar e sentir. Quero sentir. Sentir faz-me vivo. Preciso de subir à montanha e deixar-me por lá ficar. Preciso de regressar ao sentido engrandecido que a vida tem. Estou a ressacar de mim mesmo, como se eu fosse a minha própria droga. Como se os meus ajustamentos e necessidades fossem sempre banalidades. Estou com saudades de mim.

 

Preciso de entender que: as minhas “coisas” não são banalidades;

são as minhas “coisas”;

são importantes; e é a minha forma de sentir.

 

Preciso de parar e de deixar de retirar dimensão às minhas “coisas”. De achar que as minhas próprias “coisas” não têm importância e que acabarão sempre por passar. Preciso de sentir as minhas próprias “coisas”. Os meus sucessos e alegrias que acho que são sempre normais e banais. A minha tristeza que acho sempre que amanha já não será a minha tristeza. Preciso de entrar na vida e não viver com a vida. Preciso de não pecar por defeito, nem por excesso. Ainda não gritei a alegria de ter conseguido. Todos festejavam enquanto eu vinha para casa a ouvir Lhasa de Sela, e, foi com ela enterrado no meu sofá que comemorei o que julguei impossível um dia. Ainda não comemorei. Ainda não chorei a perda. Ainda não conversei sobre estes quinze dias e o título que passou a vir nos meus mails. Não tem importância, ao fim de semana por dentro dos campos enlameados, lá me passeio e difiro este sentir para umas acelaradelas e está tudo bem. Ainda não falei das minhas noites errantes e acompanhas de solidão. Ainda nao falei das mensagens, estou farto do "queres cá vir dormir, ao invês do queres cá vir conversar". Ainda não falei da minha incapacidade de desejar ter alguém a meu lado, mais do que na minha cama. Ainda não falei, não gritei, não chorei e não me ri. Ainda nada e a “coisa” já vai a mais de meio. Enquanto isso o trabalho entretém-me, distrai-me e cansa-me, e adia a necessidade de sentir e entender, este sentir adiado. Esta “coisa” grande no meu peito.

Ó Mar !

Cansadas as gaivotas suspendem-se. O vento regressa de olhar no mar. Mar aberto semeado de sal. Mar do mundo. Mundo de mar. O burburinho grita extravagante ao céu as cores destas lágrimas, escondidas de Portugal. Lágrimas contidas e vertidas. Verdes como metade da bandeira. Baptizo-me com gotas de orvalho na madrugada. Gotas rubras côr de sangue como a outra metade de mim. Vivo do lado do mundo contrário ao que parti. Adormeço e acordo num mar aberto. Rude é a face do mar e dos seus filhos homens. Pretos são os xailes das mulheres filhas do mar, viúvas, mães de órfãos, amantes da oração de um coração apertado no horizonte. Olhar mudo e pregado no mar. Mar azul. Mar coração côr de cinza. Mar de saudade e ladrão. Mar amado. Tão próximo de ti me arrepio, mas longe de ti não sei existir, como escreveu Pessoa:

 

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Não e tal...

Não me aborreçam mais com o natal. Até o mar anda revoltado com essa coisa, pá. Tenho-o visto. As ondas estão altas e bravas e as gaivotas andam desnorteadas. Estou a ver os contentores como de costume a 26 de Dezembro de todos os anos a abarrotar, como se se babassem. Cheios, a transbordar de gula e hipocrisia. E as luzes? Coitadas das luzes, cansadas, e ali estão elas naquele frenesim de piscar, não piscar, piscar, não piscar. Extenuadas, coitadas lá estão elas dependuradas e enleadas nas varandas, com tanto frio que está. Que crueldade. E o papel? O papel ontem colorido e enlaçarado, amontoa-se agora deslaçado. “Prontos”. Já é outro dia. Já acabou o natal. Podemos voltar a foder o próximo, que a noite de, ou do natal, já passou. Este natal é óptimo, está muito bem encaminhado. O FMI ainda não aterrou na portela e o salário mínimo nacional aumentou 15 euros. “Granda” desbunda como diria o Jorge Jesus do benfica, estou tão contente. Para o caralho mais o natal, e as árvores, e os reis magos, e as sms embelezadas de tão pirosisse. Não me fodam. Chega. Párem. Não me importo que gostem do natal. Não me importo nada. Não me importo mesmo nada. Desde que o natal seja como a liberdade, que comece onde acabe a minha e a minha comece onde acabe a vossa. Ou seja, não me meto no vosso natal nem nesse abundante espírito natalício feito de uma noite só, desde que não me vendam ou impinjam o vosso natal, que eu sou comunista, homossexual e drogado e tudo o que for de mau. Depois dessa bendita noite volto. Volto não. Voltamos todos a ser gajos normais. “Primeiros” porque já se esqueceram, “segundos” porque eu nem me lembrei. Mas por favor parem com os mails da amizade, e as sms´s contrafeitas, vulgares, e sem qualquer laivo de criatividade, antes que a ASAE apareça por aí. Depois de amanhã voltamos a falar. Beijos, e um bom parto.

Sou um homem persistente

Sou um homem persistente comandado por ideais, sonhos e liberdades. Não é fácil para quem me quer bem, viver despreocupado comigo. Tenho nas mãos dedos que reagem ao toque e regem a minha vida. Tenho uma guitarra deitada a meu lado que tem cheiro a sótão. Não é um sótão escuro, soturno e empoeirado. É um sótão preservado de relíquias, de fogueiras com chamas a arder, de músicas cantadas nos montes assobiados pelos ventos e faces rosadas como tangerinas. No fundo de mim, um lago tem nas margens flores penduradas, como cachos lilases de uvas amargas que germinam um vinho, doce e único. Um olhar terno, embaciado e escusado, escusa-se ao meu. Dou umas boas noites tímidas e refugio-me. Bastas vezes me bastam ali sentado na margem. Margem de mim. Pego numa estrela e baptizo-a. Dou-lhe um nome e rogo-lhe que dali não se exclua. Juro-lhe fidelidade com um olhar. Como a lua está crescente e a estrela vive mesmo ali ao lado, temo que a lua a ofusque, e que eu amanhã não a vislumbre.

 

Como posso eu explicar a alguém que a estrela é a minha casa e a lua a minha luz?

Como poderá alguém entender que se jure fidelidade com um olhar sem palavras?

Como será entendido que um lago seja a minha alma e a margem o meu leito?

 

Qualquer criança entenderá que sou um homem persistente comandado por ideais, sonhos e liberdades, qualquer adulto se desmarcará de ridículo pensamento. Sou uma criança e um homem persistente. Não é fácil para quem me quer bem, viver despreocupado comigo

Um livro que eu lia.

Espreguicei-me e olhei pela luz que em raios me espreitava pelos intervalos da persiana. O dia estava claro e a luz invadia de claridade o meu alento, como se um olhar límpido e vivo de uma mulher, embaciado me profetizasse e acarinhasse. O pós orgasmo é a parecença extrema desta sensibilidade com que me revejo neste acordar promissor. Aprendi a rezar e não esqueci. Apenas não balbucio em ladainha sem sentir o peso das palavras, não gosto. O conteúdo das palavras é o trilho que preciso para me perder da vida, encontrando-me a mim num sítio a que chamam mundo. Desço de mim, misturo-me no burburinho cego de pessoas em hora de ponta. Enquanto oiço as notícias sem as ouvir e avanço escassos metros em fila relembro a minha infância. A escada em caracol perigosa que eu desafiava numa descida alucinante, como um trapezista num trapézio muito alto e sem rede. O cheiro doce a torradas. O robe da minha mãe. O rádio roufenho de madeira iluminado que não era um rádio. Era uma telefonia. O vernáculo abatido na minha cabeça pelo vizinho sargento e ao que parece militar do rés-do-chão. As galinhas, os pombos, a nespereira e as badaladas do sino da igreja. Não sou da cidade, sou do mar com cheiro a terra, do sítio onde o arco-íris se põe e o sol nasce em bátegas fortes e de enxurrada. Por aqui me vou de vinte em vinte cinco metros nesta longa aglomeração de carros com pessoas dentro, que me parecem acabadas de vomitar ou prestes a ter um enfarte, nesta cidade que não anda, onde eu me empresto e fidelizo à classe não pertencente, à classe não votante. E os sofás de duas cores de napa, com naperão nas costas? Era aí que me apetecia estar, recuado no tempo, no sofá que ficava em frente à portada de madeira da janela, da varanda que espiava o terraço. E tinha um livro. Um livro que eu lia.  

Pai e meio...

Fico a pensar. Como se pode ter um filho e meio, ou apenas meio filho? Filho e meio é um quadro, em que uma das partes faz a parte por inteiro e mais a meia parte que eventualmente caberia à parte que não o faz. Fazer meia parte é delegar por esquecimento, desinteresse, egoísmo ou outra dificuldade qualquer que não pretendo entender, a parte meia de quem dela se demite. Existe portanto pai e meio e meia mãe, conceito contemporâneo, que nega o conceito ancestral de que mãe é mãe. Outros tempos, outras vontades. Nem tudo é mau. Nem tudo é mau porque para entender e aceitar esta realidade, penso com um raciocino lógico, ajustado e isento de sentimentos, nos que não têm parte nenhuma de pai ou mãe, e nas mulheres e homens que socialmente acabam por ter filhos e filhas de pais que não o são. Bem sei que são instituições e que a minha casa ou eu não o sou, mas por vezes faz-me bem pensar que apesar de tudo, ser pai e meio, não é mau de tudo. Aliás é muito bom. Decididamente e de forma assumida, sem medo ou escolha de palavras, solto-me e grito:

 

Sou pai e meio, ainda bem.

 

Fragmentos experimentados de vida

Aos poucos aquilo em que acreditei foi-se modificando. Foi-se modificando o exterior a mim pela modificação do meu interior. Os meus olhos sublimaram, as minhas necessidades alteraram-se, o meu pensamento afunilou e abriu-se. Não sei se pelo conhecimento, experiência ou espírito, os meus ideais estão intocáveis, as minhas ideias ajustadas aos fragmentos experimentados de vida. Não sei se sou louco, velho, criança, de meia-idade, profano, revolucionário ou sano. Sinto-me cego de tanto ver para além do tacto. Sinto-me rude deste doce acreditar no amor na vida dos outros. O que é isso do amor? Miserável em mim esta incapacidade quase inata de tão adquirida e transitada na minha existência. O amor não vibra com o medo, o medo é inimigo do querer, o querer tem fascínio pelo passado, o passado é confidente da desilusão, a desilusão coabita paredes meias com a insegurança, e todas estas equações binomiais me parecem uma praça de multidões que em catarse se confortam, como bairros que se habitam sem ninguém se olhar. Ficam assim as partes próximas da solidão. Esta por sua vez pode ser mental e regularmente dormita em casa da loucura, ou habita a floresta do auto-conhecimento, farsa ou acolhimento. Revisito quadros com poemas inventados de personagens belas. Revisito-me ensanguentado de colares de lágrimas feitas de coragem.

O tempo é: as passadas que desenho.

O tempo rasga de água o que dele esperamos. Faz da pedra dura água mole. O tempo preenche em vagas os girassóis que se plantam na planície e que rodam em volta da terra ou do sol. O tempo abraçado na água é vida. O sol é adubo. O tempo é mutável e transformista. Converte-se a ele próprio nele mesmo. Reduz o nosso tempo em vida. O tempo não existente é inimigo, mas o tempo não é desistente, logo é concilio. O tempo é paciente. Nós somos impacientes com ele. Nós somos dele e ele é feito de nós. O tempo não nos retira, adiciona. Anexa o que gostamos e não queremos e subtrai o que não queremos e gostamos. O tempo é um exercício. É duro e escasso, suave e longo.

 

O que já fiz eu com o tempo?

 

Já fiz com o tempo dedicação que julguei não ser a tempo. Já me senti existir no tempo e não era tempo para existir. Já caminhei pelo tempo adentro, afora e fora de tempo. Já fiz do tempo lágrimas, sorrisos e fui aprendiz de alegria. Fui viajante sem tempo e no azul do céu fiz um astrolábio, que me indicou o caminho depois das colinas se terem refugiado no mar. Fui bailarino, cantor e escritor, embuçado e diamante por garimpar. Fui fortuna e insolvência religiosamente medida, o tempo não tem medida ou imposição. O tempo é hoje. O tempo é já. O tempo não urge ou se abandona. O tempo não sendo coisa nenhuma é o aqui e agora. O tempo sou eu, és tu, somos nós e um mar plantado de girassóis de ondas suaves e eleantes, sem pressa, sem noção, disfarçado e aderente.

 

O tempo é: as passadas que desenho.

Eu, o Martins e o Zé

Faz frio. O frio embarga-me a saudade, congela-a. Há três noites atrás vi o frio em contra-mão, vinha em forma de uma neblina e tinha um ar arrogante, mas triste. O frio faz-me lembrar o Martins. O Martins é um tipo que foi meu superior hierárquico há vinte anos. Era um tipo mais frio que o próprio frio, com os mesmos traços de personalidade e características demoníacas, assentadas num síndrome que ataca sempre os mesmos, os que têm características como o frio. Síndrome por mim baptizada na época com o título:

 

“A mim, ninguém me põe a pata em cima”.

 

O frio e o Martins davam-se bem, era vê-lo empapuçado em camisolas e rodilhas ao pescoço. O Martins era arbitro de futebol uma frustração para ele que nunca passou dos distritais, uma alegria para mim que esperava ansiosamente pela segunda-feira, com uma renovada esperança que algum adepto, ou multidão de adeptos, o tivessem linchado por mim a seguir a um penalty mal assinado, ou a um fora de jogo, que tivesse desvirtualzado o resultado e o esforço da corrida de noventa minutos de uma equipe.

 

O Martins é do tempo em que era possível levar o neto para o escritório e ser avô, ama e colaborador da empresa em simultâneo. Outros tempos, outras realidades, outras conjunturas organizacionais. Passaram vinte anos e não sei nada do Martins há muitos. O que de pior o Martins me fez foi afastar o neto de uns desenhos que lhe fiz, de uns números e palavras que lhe queria ensinar a escrever. Há vinte anos eu tinha acabado de ser pai, tinha o espírito paternal em alta, podia tê-lo usado e treinado no neto. O Martins não deixou como medo de algum contágio que na época eu pudesse ter, contagio que não seria mais, que a irreverência de ter vinte anos. Um dia destes o Zé disse ao Martins que o tempo me fizera Dr.

 

O Martins respondeu: “quem? esse gajo?”

 

Ri-me com o Zé, do frio e o Martins continuarem a ser unha com carne...

Nascimento

Irei morrer não fujo,

Pensamento verde musgo.

Morrer por vezes é sorte,

Nascer início da morte.

 

Salta o fogo,

Vejo-o louco.

Desdita vida,

Vida contida.

 

Entendo a esperança.

Vulcão bonança.

Homens livres,

Mulheres de trança.

 

Irei viver,

Até morrer.

Até morrer,

Irei viver.

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