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Cardilium

Cardilium

O teu encanto é o meu canto

O teu encanto é o meu canto,

Sudoeste,

Mar inventado,

Canto do teu encanto.

Desalvoraçado,

 

Neste canto,

Meu e teu,

Nossa vertente,

Cascata de cores,

Depositada no lago.

 

Onde me vejo narciso,

Esplendorosa,

Beleza,

Desejo que perto,

Me vejas.

Sob o Indico adormecerei

O entrelaçado caminhar a dois é um recomeço diário de uma obra inacabada. Tal qual uma viagem. As viagens não se repetem mesmo repetindo-as. A forma como se sentem é única e primeira. A especificidade do sentir não tem nota explicativa ou sensorial. O pragmatismo da racionalidade é um recomeço diário na forma e no sentido da vida. Vive-se porque se sente, não se vive por se está vivo ou pensa. Enxergo o meu peito de uma visão distorcida do bairro coberto de folhas caídas da época. As árvores despidas não me parecem mulheres nuas. Gosto de pisar as folhas nas madrugadas que humedecem as folhas caídas e escutar os sons que fazem o silêncio. Gosto delas molhadas e da sensação húmida e entufada que me dão. Gosto de caminhar por entre os prédios e saber que alguém me espreita por detrás das cortinas presas em laços. Em breve irei adormecer por cima do atlântico e tomarei o indico nos braços ao acordar. Acordarei naquela terra de areia quente e molhada de blues gemidos pelos escravos. Beberei e retemperarei o meu universo sonhado e real.

Solto-me atracado

Nos meus dias amanhecidos,

Há uma luz que me levanta.

Sorrio ao dia espreguiçado,

Esta existência que me encanta.

 

Salto para o dia felino,

Margens do rio? … Desafiam!

A melancolia e a maresia,

No céu carregado se abriram.

 

Protejo o céu azul cinza,

Dispo-me da estrela lá presa.

Visto o agasalho da serra,

Sufoco o meu olhar de beleza.

 

Suspenso e intenso admiro,

Admito a caminhada.

Sou nada feito de tanto,

Sou feito de tanto e nada.

 

Num porto por inventar,

Sou uma firme estaca atracada.

Sou navio solto ao sul,

Vela, vento e madrugada.

Espalho-me

Espalho-me na cama ao acordar. A viagem que me levou ao lago vermelho foi atravessada por uma planície de eucaliptos com aquele cheiro que me entra pelas narinas em rompante direcção aos pulmões, coração e mente. Chego ao lago e deito-me na margem coberto pelo céu estrelado e baixo. Uma tontura invade-me como se sentisse o movimento circular da terra. O silêncio redondo como a lua embala-me. Tempero a vida com momentos meus e precisos. Dou-me bem com a escuridão e o silêncio. Preciso de me encontrar com eles e gozar a sua presença e doçura. O sol mais tarde cegou-me em raios que eu fintei com o olhar. Deixei-me invadir por pensamentos e sonhos. Sonhos claros e cristalinos como música de água a escorrerem em seixos no seu caminho em direcção à foz. Musica, inspiração devota. Percorri um corpo imaginado prolongamento do meu. Masturbei-me no sentido prazeiroso de os meus pensamentos serem reais. A masturbação é pensamentos recordados e saudados. A masturbação tem pouco de acto físico e quando o é, perde o encanto da recordação dos momentos. A masturbação é o conhecimento, é algo que se conhece e sentiu. É pensamento. É mistura de pensamentos. É o acto tântrico dos momentos prazeirosos de mar, sol, luar, mãos e toques, olhares e palavras certas. Espalho a noticia, espalho a delícia de me espalhar na minha cama ao acordar.

Madrepérola, caramanchão

Sou sólido, feio e leal como o Cesário Verde. Tu és bela, frágil e assustada como descrita.Vejo-te pelo meu olhar engravidado pelo volume do meu peito de tanto te querer. Todas as esquinas da cidade anoitecida são mesas, cadeiras e bares onde te encontro sem te querer encontrar. O que eu queria mesmo era matar este pensamento feito de nada e cheio de ti. Malévola sorte entrincheirada entre o fosso recordado e a planície vivida. Má sina esta. Sorte a minha que não muda com as estações. Este verão primaveril nunca mais se mistura com as nuvens carregadas e escuras do dia em que partiste. Ouvir-te em debandada é como a chuva que molha a praia depois de um dia quente que fez morena a tua tez. Nas gaivotas enlaço as mensagens que te quero dizer quando não te tenho, e que não digo quando te tenho a respirar nos meus braços. Fortuna minha cantada neste Lusíadas feito de vida e caminho. Madrepérola, caramanchão, jardim suspenso de cheiro rosas e flores.

DMF

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.

 

David Mourão Ferreira

 

Quantas almas tenho?

Quantas almas tenho?

Não sei!

Tenho tantas quantas as pessoas que eu sou.

E eu sou mil e não sou nenhuma,

Mais do que as que represento,

Sou as que vejo,

Mais do que aumentam os meus olhos.

Sou as que beijo,

Mais do que aquelas que fujo.

Sou isento e abundante,

De afectos viajante,

Algoritmo e soma,

De alegria e afecto.

Escuto de dentro do mar a minha mãe,

Que chorosa me encomenda,

Aos deuses que me torturem,

Porque em mim não tem mão.

Não me vergo solícito ao seu desejo,

Arremessado de boas maneiras,

Não sou o projecto sonhado.

Nem sabe bem o que sou,

Sou poeira como o nevoeiro,

Desconhecimento e fantasia,

Nem sou o filho da minha tia.

Sou desconhecido sem alma,

Ou com mais almas que as suplicadas,

Quantas almas tenho?

Na mouche

Equilibrei-me de bêbedo sentido e joguei no alvo as setas. No centro um ponto avermelhado acenava-me. Na primeira seta seteie firme na sua direcção, era o arremesso ao significado da mais que palavra, amizade. Na mouche. Acertei mesmo no centro.

 

Segunda seta. Firmei no alvo o meu olhar e era a hora de acertar moribundo na minha maior vivência passada. Errei. Acertei longe, mesmo fora do alvo. O que tinha vivido lá atrás estava vivido, jamais poderia voltar a viver, não mais acertaria onde outrora já tinha acertado.

 

Terceira seta era para mim mesmo. Para a minha força, decisão, pensamento, estrutura, e o poder de alterar o que quer que seja, assim o sonhe e decida. Centrei-me ao centro, centrei-me na minha vida e lancei. Quase no alvo. Este quase não é mais do que apenas o trabalho que existe entre o acaso que deus nos dá, a que chamamos sorte. A sorte é o intervalo entre a preguiça e o trabalho.

 

Quarta tentativa. Quarto lançamento. A minha família. Um pouco ao lado, quer dizer que sem ser perfeita é incondicional. Tem revolta e sossego, amor e ódio, presença e distância, sal e sol, madrugada e pôr-do-sol, ventos e marés e a incondicionalidade de um porto seguro.

 

Quinto e ultimo lançamento. O meu eu feito de mim mesmo. Tal como o primeiro na mouche. Impossível não me suportar, viajar sem mim, deter-me nas minhas vontades, adormecer-me ou acordar-me, navegar fora de mim, ser dono da minha impotência, controlar o que quer que seja. Resta e basta redimir-me à minha existência, dor, drama, alegria, insanidade, euforia, e das minha partes separadas ser um todo feito de mim, incontrolável, indeciso, desconhecido, pertença, alegoria, fábula ou parábola, invenção, adição ou serenidade.  Na mouche.

29.10.2010 - 21h

O coração na garganta embarga-me a voz. Fico rouco e as palavras são difíceis de sair. As pessoas representam-se-me como holofotes dirigidos a mim que me cegam. Sufoca-me e atordoa-me o emaranhado emocional. Revejo as cenas uma a uma, volto a vivê-las no presente e tardiamente ao adormecer. Espasmos acordam o meu sono e as voltas transpiradas na minha cama retrocedem-me a tempos idos, voltados ao pensamento. Sinto um sabor amargo de recordação na boca e um medo explícito no olhar. Abraços reconfortaram-me e trouxeram-me o dia. A refeição quente com amigos. As gargalhadas voltaram e sentaram-se à mesa connosco. O percurso junto e percorrido de um caminho com historia. A conversa simples e banal, fortuna feita disso mesmo. A madrugada que entrou purificada com a chuva que caía abundante e torrencial. O sossego da quadra das três da manhã. É bom sentir. É bom emocionar-me. O mar corre mais em baixo na marginal. Por detrás das nuvens, ilumina-as uns clarões de relâmpagos. Tenho o olhar cheio de pessoas que me são importantes. Escassas em numero. Não são mais de mil, são menos até, bem menos, mas são tantas. São tantas e habitadas de importância e vida, que sem elas estaria perto da morte.

 

"Há momentos que as palavras não passam de meros ruídos inúteis..."

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