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Cardilium

Cardilium

Carreiro

Acendo um cigarro no caminho a que chamam carreiro das cobras. Não sei se alguma vez o sol o visitou. Caminho sombreiro doado aos amantes e com tecto feito de velhos e imponentes carvalhos. As paredes são silvados que dividem um ribeiro que passa mais em baixo. Quando miúdo atravessa num desafio e aventura este carreiro que me levava à escola. Entrava na escola com a sensação de vitória, de ter enfrentado o medo da sua passagem. Era espirituoso sentir isto ás oito e meia da manhã. Sentia-me um pequeno herói enfrentando o medo de ir pelo caminho que os meus pais me diziam para não fazer. O medo é do nosso tamanho, vai crescendo connosco. Em contrapartida as vitorias vão diminuindo em dimensão. O cheiro mantém-se, o enlameado do Inverno também. É uma pequena floresta de cinquenta metros que aos meus olhos parecia um mundo. Gostar sem conhecimento é paixão e paixão com conhecimento é amor. Também se amam pedaços de bocados de nós, de florestas e mares, de nuvens e por do sol, de céu e lua. Aquele abraço não dado com o tempo, torna-se num abraço entregue e lícito. Os meus pensamentos eram, são e hão-de ser exacerbados pelo medo. O medo move-me. Faz-me sonhar e acreditar. E medo e as vitorias conquistados ao temor.

“Vim bem psicologicamente”

Estive na Guiné na guerra. “Vim bem psicologicamente”, mas as marcas estão cá. Tenho sessenta anos. Vocês os de quarenta não sabem o que é a vida. Não sabem o que é encarar cada dia olhos nos olhos com a morte. Esse binómio vida morte, morte vida, morte morte, vida vida. Não sabem o que é a desconfiança na sua nascente, a desconfiança no seu crescimento, a desconfiança da sua confirmação. Vocês não sabem o que é ser órfão de uma nação, não sabem o que é ser preparado para matar para não morrer. Não sabem tanta coisa. A guerra está cá, existe nos meus sonhos que são pesadelos, no meu acordar e adormecer, ao dobrar de cada esquina, nos rostos das pessoas, nos movimentos apressados, nos ruídos, nos cheiros, nas gargalhadas, na noite, no dia, nos rios. Em todo o lado ela coexistiu comigo estes quarenta anos. Mas “vim bem psicologicamente” porque sou forte. Muitos não ficaram assim, outros até tiveram a boa ventura da morte. Vejo muitos por aí na televisão a falar de guerra, da guerra que eles desenharam nos gabinetes, na guerra que eu calcorreei com os meus pés feridos, o meu coração ensanguentado, a minha discordância e ingenuidade, a guerra em que matei para não ser morto. Quantas vezes questionei a justiça divina, e a humana, as crianças, os velhos e um povo preso na sua terra. Um povo bom e quente que teve a má sina de ter nascido ali, pouco mais que isso. Uma guerra sem sentido e desumana. Vens-me agora tu falar de crise. Ó filho já estou por tudo. Eu "vim bem psicologicamente" porque sou forte, mas as marcas estão cá, nos meus sonhos.

 

Recensão critica da observação de um ex-combantente durante a compra de umas calças camufladas como as da guerra, mas com pêlo por dentro.

Edmundo

O Edmundo é ateu,

Esteve preso neste mundo,

E foi livre na prisão,

Nasceu numa escada,

Num vão.

Sua mãe infiel,

Gerou-o num bordel,

O Edmundo já na rua,

Ouvia: “que mãe é a tua”.

Já na escola observava,

As letras e os números,

A raiz e o quadrado,

Jogava bem à bola,

E sabia de matemática.

No entanto não namorava,

Era descriminado,

Por ser filha da Laura,

Uma mulher de mau porte,

Pagava a factura,

De uma vida sem sorte.

O Edmundo acabou preso,

Nas ruas estranhas da morte.

Vive agora uma vida nova,

Com os amigos dados pela sorte.

O Edmundo tentou,

Conduziu um camião,

Andou nas obras e fez,

Estiva em pleno verão,

De cada vez que se endireitava,

Logo algo o derrubava.

Culpou disso o mundo,

De ter sido ladrão,

Por ter nascido,

Numa escada,

Feita de vão.

Barbado

Agasalho-me de vento neste chão de solidão. Os meus cabelos puxados em remoinho não me deixam avançar. Nos recantos escuros jazem vivos meio mortos homens. Barbados e assustados com a sua própria presença, amedrontam a presença de outros homens, como se todos os homens não fossem homens também Este fosso entre o mundo e a vida não escolhe a crueldade com que se demonstra a existência. Fazem cobranças os homens e deus não interfere. Esse ente amantíssimo que se distrai com a miséria sempre dos mesmos. Fazem cobranças os homens na terra e deus no céu. Há quem nasça para pagar sem nunca nada receber. E este nada é tanto e tão pouco. Um nada feito de abraço, de beijo, de um café quente, de uma manta, ou de um pão. Enquanto na esquina dos barbados a vida é falecida, passam rápidos carros potentes com uma vida que parece vida sem a ser, talvez. A minha vizinha de baixo geme de noite, não sei se é a ressonar, de sofrer dormindo, ou se se masturba a noite toda. Oiço-a ao fumar nas madrugadas da minha janela. Oiço o gato. E o autoclismo a descarregar. A vida dela também é a minha. Partilha-a sem saber que a partilha. Nas escadas dizemos baixinho um desconcertado bom dia em sussurro. Num dia acontecem muitas coisas, se não dermos a oportunidade de apreciarmos ambas, não as saberemos destrinçar nunca.

Natal !

Estranho! Estranho-me. Sou tão feliz por vezes, aos bocados. E não me chega. Penso na morte e não a temo. Talvez o desconhecido me fascine e atormente. Aqui também não se faz nada. Agora vem aí o Natal. Não me fodam com o natal. Nem as luzes me cegam, nem os discursos apinocados e prenhes de uma hipocrisia latente me faz vir. Já não ejaculo.  

Lá tenho eu que receber a merda das peúgas aos losangos com pêlo que o meu primo Carlitos me vai dar pelo vigésimo quinto ano consecutivo. Faço má cara e a minha mãe diz:

 

“Não liguem, ele não gosta do Natal”.

E a puta da Francisca com tom hipocondríaco na voz, diz:

“Então Jorginho, não gostas do Natal porquê?”

 

Nesta fase já estou com a tensão arterial a 14 / 20 e vale-me a cumplicidade no olhar da minha filha. Antes o FMI aterrar na portela que o natal, e o menino Jesus, e a vaca e o burro, e o José, e os reis magos e por aí fora.

Porra não há paciência. Vá lá, para não ser tudo mau há as azevias, vale por isso. As azevias.

 

Estranho! Estranho-me. Sou tão feliz por vezes e aos bocados. E não me chega.

Nem é trabalho, nem hobbie, é paixão.

Nem é trabalho, nem hobbie, é paixão respondi. São braçadas de beijos aos molhos. São moitas verdes e sombrias. São pássaros migrados e pertences sazonais de vida aqui. Nem é trabalho, nem hobbie, é paixão. Estar por aqui sentado a ver a vida das pessoas passar, apressadas, devagar, muito decidas, inseguras. Sabias que pelas passadas vejo as pessoas? Nos olhos colados no chão ou enfrentados, vejo o doce e o azedo da alma, a dor e o contentamento. Nem é trabalho, nem hobbie, é paixão. A medida de aferição são as crianças na sua genuína e espontaneidade. Estar por aqui é ver-me de fora para dentro. É ver-me de dentro das passadas dos outros. Embora os pés sejam os meus. Os que me mantêm na terra, os que empoeirados e sinuosos me descansam à chegada e me enfeitiçam sempre à partida. Os que também pensam em desistência nunca anunciada. Nem é trabalho, nem hobbie, é paixão, este ler e pensar neste fundo escrito por letras vagabundas, emergentes e sensoriais que me estrangulam se as deixar vivas dentro de mim. Quando as escrevo mato-as em mim e dou-lhes uma segunda vida juntas, aqui. Uma vida nova e ressurgida. Deixam de ser minhas e passam a ser de um ente indefinido mas existente.  

 

Nem é trabalho, nem hobbie, é paixão já te disse.

Olho-te com tamanha cegueira que cego em ver outro alguém

Olho-te com tamanha cegueira que cego em ver outro alguém. Desassombro este, excluído de mim. Transformas as cores em sabores e os sabores em cores. As certezas em incertezas e as incertezas em espera. Uma espera agonizada de um momento por encontrar. Espero-te. Não sossego enquanto não te vir dobrar a esquina em silhueta. A noite traís-te e o dia assumiste. Encontro-me chorando e vertendo lágrimas que só tu podes secar. Prendes-me a respiração e sinto tonturas, o teu cheiro tira-me esta ressaca, como se a privação de um químico tu revolvesses. Preciso que me enchas o peito de ti. Que me percorras o coração e me lambas a alma. Preciso de voltar a ver e a ser dono de mim. Penhoras-me os sentidos e num leilão anuncias a minha existência. Vivo o teu viver e falece a minha existência na tua. És feita de uma rebelião dura e rude e patética em mim. A frequência com que me invades é desumana e servil. Vou tomar um ácido que me faça mentir e voltar a ver rosa o mundo. Não tenho vestígios de ódio, tenho vestígios pacíficos de um mar calmo e transparente, porque não se esconde com guerra o amor. Mesmo ao lume, fico frio. O fogo que arde da lenha não me aquece. Torra-me ainda mais este sentir frio e cálido. Labaredas acesas incendeiam a chuva invernosa, como se fosses ácido e combustível. Olho-te com tamanha cegueira que cego em ver outro alguém.

Matei o caminho

Levantada vejo a poeira içar-se na passagem pelo trilho. Percorro os montes que me elevam íngreme, ao lugar onde sinto o mundo bem longe, onde me sinto afastado e distanciado. Amo esta serra feita de picos onde a paisagem muda e a perspectiva é incessantemente diferente. De um lado vejo o mar galgado como que assustado e apressado. Do outro, vejo o rio e as torres da basílica voltadas e erguidas para o céu. Oiço o ressoar de uma música antiga. Gosto. Declarei o meu afecto a esta música. A sua forma e plasticidade continuam actuais. As músicas que me fazem sentir emoções são intemporais. Esta é uma delas. A simplicidade é o que a torna bela. A existência feita de simplicidade é a sua complexidade.

 

Adorno de afectos as paredes da minha sala. Tenho fotos penduradas protegidas pelo pó. Tenho cores e estores que levanto ou baixo, mediante a luz que pretendo que governe aquelas horas da minha vida. Deposito a minha fidelidade nos momentos que traduzo em especiais. Ontem vi fotos e vivi todos esses momentos novamente. Domingo à tarde, chuvoso, invernoso e cavernoso, é um bom dia para ver fotos amalgamadas de sol, de outros países, fotos retiradas da saudade dos momentos, de pessoas, de viagens. Fotos irreconhecíveis de uma loucura crassa. Fotos partilhadas e suaves.

 

À noite, o mar iluminou-me de uma lua a crescente como eu que me senti em crescendo. A areia molhada pelo vento forte e o farol em rotação contínua, iluminou de repente os corpos abraçados, assim como repentinamente, a única luz que ficou, foi a da lua, resplandecendo na espuma brava das ondas, que atravessaram o oceano em direcção a mim. Não sei se molhei a cara de chuva ou de sal. Declamei um poema e matei o caminho até ao meu leito.

Dezanove de Novembro

Fazes sentido na minha existência. Dás-lhe sentido. A obra mais perfeita e concluída da minha vida. A passagem de conceitos é a fortuna que te deixo. Gosto do teu ar arejado, da tua mente aberta, da forma como cuidas de mim e deixas que eu te cuide. O teu olhar terno e vivo. A tua voz, o teu dormir sossegado, o teu cheiro, a tua preguiça, a tua gargalhada, a tua integridade. És o meu prolongamento, a semente que por cá ficará e procriará. Tu sozinha és a minha família. És o meu amor incondicional, sem medo de te amar, por inteiro e completo. Nasceste num dia como o de hoje. Chuvoso. Os primeiros pingos de água que colheste caíram do meu rosto e sabiam a sal. Era tanta coisa junta nas minhas tripas, estômago, mente e coração. Era tanta decisão adiada e tanta obra por fazer, tanto caminho por percorrer e tanta mudança por executar. Uma esperança do tamanho do medo que me paralisava. Um caminho sinuoso e tanta força escondida e dissimulada dentro de mim. Bastava um dia apenas. Somente precisava de um dia, um que fosse o primeiro. Tu foste o meu primeiro dia. Foi no dia de hoje, dia do teu aniversário que tudo começou. Não estou mais nem menos apaixonado por ti. Sou teu Pai e não sou especial, amo como milhões de pais no mundo amam, mas nenhum te ama como eu te amo. Beijo filhota.

A impotência da modificação estrutural do desejo

O céu enegrecido de nuvens transparentes carregam formas baças que embaciam os olhos de saudade engrandecida. Os portões semicerrados escancaram uma alma seminua e assustada. Branda a impotência da modificação estrutural do desejo. Como eu gostaria de alterar a estrutura física do desejo, como se de uma molécula manietável se tratasse. Como seria o meu corpo se fosse um laboratório e lá eu pudesse decidir ou não este sentir. Vejo uma sala branca e iluminada, com tubos de ensaio e os meus órgãos em cima de uma bancada, mutáveis, numa transformação escolhida. Quero mudar de cor e experimentar ser negro, ter canção e ritmo e um novo soro a correr-me nas veias injectadas de vida, mais que morte outrora injectada. Quero experimentar pensar duas vezes sobre o mesmo assunto, antes da impulsividade de uma decisão adiada ou tomada. Escorreito deliciar-me com um novo oxigénio e uma nova fonte descoberta e límpida de pensamento. Depois vejo-me reconstruído, continuando imperfeito, que não é na perfeição que busco e acredito na verdade e felicidade. Vejo-me a voar no céu escolhido e a mergulhar no meu mar preferido, enroscado nos braços ausentes que tanto quero presentes. Abomino o ruído em prol de sons melodiosos que me embalem ao passar na floresta onde construirei a minha casa com cheiro a madeira e fogo. Dedilharei na minha viola uma canção escrita por mim, de uma vida que não vivi, de um conhecimento desconhecido aos outros, da minha inteireza rainha, feita do meu “eu” celebrado.

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