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Cardilium

Cardilium

Sol e sal

Temperado o dia foi sol e sal,

Foi a anulação da existência no tempo,

Como se anos atrás fossem ontem.

 

A indecência do tempo que só avança,

E o que recua nele chamam saudade,

E eu à saudade chamo o teu nome.

 

Os teus passos são iguais,

O teu cabelo e olhar,

Apenas mudou o tempo.

 

E os órgãos que contêm o tempo,

Têm vida, libido e vontade,

Tem doce e tem agro.

 

A recordação é funesta,

Como a poesia que se encarcera,

No nevoeiro da maresia.

Já está !...

Ao descer o bairro alto pelo rua das taipas desencontrava-me no alfarrabista que se me cruzava. Cinco ou seis metros quadrados não mais, de livros velhos, novos, usados e por usar, com e sem pó, de escritores russos, polacos, de outros e portugueses também. O cheiro ainda hoje me invade o sentido com o pensamento. À época, descer até à avenida da liberdade era uma prisão. As pessoas aos meus olhos eram assustadas. As suas passadas eram como fuga de si próprias, eu mesmo tardava em chegar ao Tejo e tinha esperança que um comboio me trucidasse, para não sentir a alma, e, se me esmigalhasse aquela dor. No cais ancorado o cacilheiro depois do apito estridente partia para a união à outra margem, sentado no ancoradouro sabia que demorava seis buzinadelas até chegar e outras tantas no regressar. Era a minha partícula de tempo. A medição desmedida, a avaliação do esgotamento do tempo, mais que pensamento. Adiava cada entendimento que me jorrava em enxurrada cabeça adentro. Lembrava-me de poucas coisas e não me queria lembrar de nenhuma, nem de nada. Habitavam-me cinco noites sem dormir. Os dias eram tão escuros como as noites. As noites encandeavam-me e eram incendiadas de pessoas vivas e moribundas. O fogo ia-se apagando, cada vez que no jardim conseguia fechar os olhos ao mundo e sossegar a minha alma em frente ao ministério da marinha. Sabia que de um porto partiria e num bom porto atracaria num mundo desapressado, onde especialmente eu seria um ser acordado, mas com a mesma visão dorida da existência humana. Seria aceite de mim próprio, adaptado e musical. Um dia seria enamorado pela vida. Pode-se odiar o ente por quem nos enamoramos. Pode-se amar igualmente o ser objecto de enamoramento. Enamorar-me-ei pela vida um dia. Já está……….

Seis anos e tal !...

O sentido da vida é desconhecido e opaco, por isso me vergo numa oração ajoelhada sedento de encontrar um caminho, uma bênção, uma ideia venturosa. Os meus olhos presos ao conhecimento não arriscam ser cegos. A cegueira descoberta transforma-se em luz. Incorro em adormecer nestes lençóis suados de madrugadas por adormecer. Salto de mim e pulo como se outro corpo e nova alma, escolhesse para habitar. Retempero esta fria temperatura que me corrói espiritualmente, na busca de uma religião ainda não inventada. As poças de água em que chapinho a minha face, entre o passar do vento assobiado e da solidão presente nesta planície em que me encontro, seduz-me mais do que o corpo de uma mulher disponível e atraente. Desencontro-me de mim fugidio, para me encontrar à hora marcada com o desconhecido. Não se é feliz porque se pensa sê-lo. É-se feliz por se ser. Não há existência para além de nós. Não se debita existência nos outros. Tudo o que existe está dentro de nós, e descobri-lo é a razão e o caminho existencial na nossa carne, do nosso espírito. As respostas exigem recato e silêncio. Adormecer sem hora, alimentamo-nos sem mesa, viajar sem destino, admirar cada momento, ser sedento da sabedoria do desconhecido e abraçar cada esquina já dobrada, é erguer a dádiva de sermos existência ao céu. É o sentido da vida. A vida é feita em sentido contrário. Morre-se antes de nascer. A vida é ressurreição. Morre-se várias vezes em vida, nascendo.

Ali !...

Sacrossanto segredo guardado,

Espuma colorida estafada na praia,

Gaivotas desunidas,

Voam picadas,

Adivinhando a tempestade.

Passarada em terra é sinal de água.

 

O promontório dobra em sinal,

A praia para lá de quente,

O Bojador,

Africa sozinha ali ao lado,

Visita sonhada.

Terra e esplendor.

 

Junta-se em arremesso,

O pôr-do-sol,

Como prazer de ejaculação,

A areia de oiro que me abraça.

Pendentes as horas.

Prazer, emoção.

Girassois planetários

Tenho o teu nome cravado no peito e o teu olhar encravado na garganta. Não consigo engolir. A tua alma aniquilou-me, já não durmo. Tenho os meus ossos doridos e um fenecimento autorizado e aliviante nos meus dias. Não saber de ti naquela plebe, não te ver naquele jardim, não ouvir os teus passos no empedrado da rua sem horas feitas por bocados de mim que te esperam, faz de mim todo, ausente. O inferno desceu e habitou-me. O inferno não existe depois da morte. O inferno existe na vida plantado em mim. Existe extinto como um fogo tórrido e gélido, como o teu olhar no dia em que partiste. As paredes-meias com o paraíso ruíram em fragmentos, a tua boca feita de saliva doce arrependeu-se na minha. As mãos com que talhamos o destino violaram-me de desilusão. Os sorrisos feitos de sal e mar afogaram-se na maré. As promessas juradas ao luar desvaneceram-se e minguaram na lua seguinte diminuta. A fogueira que nos aquecia foi apagada na enxurrada desprevenida e repentina. O sítio gasto por nós está desvalido. Minha senhora da ausência me ajude na prudência desta loucura que me invade como um terramoto, que me invade como se a vida se tornasse morte. Assim choram os poetas desta dor fingida que sinto forçada num momento de inspiração, apenas porque preciso de gastar palavras soltas e banais. Minha senhora da inspiração seca-me as lágrimas brotadas em rebento nesta sementeira desordenada de mil anos por viver. Viver sem sentir dói mais, que sentir este campo salpicado de girassóis em sentido contrário ao movimento redondo e circular da terra em volta do sol. Vive-se sentindo. Sentir sem viver não é vida. Viver sem sentir não á vida também.

Jangada de pedra

A aldeia morre nas águas do rio que a viu nascer. Guadiana fora, autorizado, as casas nossas, foram substituídas pelas nossas casas. As casas nossas jamais seriam velhas. Tinham quintais empedrados e luta lá dentro. Tinham fascismo e liberdade. Era antes e pós revolução. Era Alentejo longe do mar. Tinham partos, tinham mortes. Tinham vizinhos e um relógio que se ouvia voltado ao vento norte. Tinha o rio que a viu nascer e morrer. O rio que a matou atraiçoando-a como se o senhor das terras onde as foices ceifavam a troco de nada, tivesse voltado e decidido. Povo este que de luz só tem o nome e que em nome da luz, coragem devia ser treva. Catarina tão ausente povo submisso e destinado. Sem vontade com a vontade se aguenta. Com a vontade se é solidário e se cuida dos velhos e das crianças. Catarina tão presente, Catarina tão exemplo. No meu sangue correm arrepios e extravagâncias de ver um barco à vela no meu quintal. No meu sangue a raiva sufoca-me de ver um bailado na minha janela, como Saramago adivinhou numa jangada de pedra. 

Avieiro

Regressei hoje a mim. A este bairro onde existo. Regressei a esta luz que conheço, a este cheiro a cravos, e a campos salpicados de cores que rebentam com as primeiras chuvas. Regressei a este prado verdejante. O tempo vigora entristecido como os olhos que vi em ti, como a respiração que vem de nós. Nos vales abandonadas, as casas valem dinheiro nenhum, mas tem valiosa a saudade, sem preço ou avaliado. Desabitadas, da alma do fogo que queima o que resta das arvores por rebentar. Povoo-o a aldeia umas horas e sinto-a só minha e da minha infância. Recordo as mãos fortes que carregavam as redes do rio, ate ás casas içadas nas estacas. Recordo o sangue da lampreia e a maré vinda do mar, rio acima. O calma da noite e o rio feito de ondas chocalhadas contra a areia. A vida existia em conversas sobre a luz longínqua e trémula da cidade. As estrelas eram a companhia das palavras lidas, escritas e faladas. Os esteiros guardavam os barcos arrebitados e coloridos. Tinham nome e dono, eram da comunidade. Aos domingos solarengos, os intrusos vinham e tiravam fotografias. Ao domingos de tempestade os intrusos não vinham, era um domingo descansado como se de semana se tratasse. As portas abertas fechavam-se ao domingo. O pão levedado era abençoado. Ainda adormeço com o cheiro que me entrava pelos olhos e poros adentro da Rita, no dia de pão cozido.

Fujo das elites pedantes

Fujo das elites pedantes que esvoaçam gargalhadas domingueiras, na tarde solarenga da esplanada perfumada de channel nº5. Na mesa ao lado escrevinho uns apontamentos que me ocorrem de um trabalho por concluir. Espreguiço-me ao sol e ao rio que passa em frente. A chilreada continua na mesa ao meu lado, numa enjoada conversa acerca de quem passa, do jantar de quarta-feira passada com o querido do Tó, e dos piropos que este lhe enviou. Olho o céu e salto para uma nuvem. A conversa do lado contínua agora num tom mais baixo, um tom de pecado e crime, onde se aborda a mulher do Tó. A pindérica da mulher do Tó, que eu entendo ser afinal a sua rival. Ficou claro para mim. A tia está-se a fazer ao Tó. E quem é o Tó afinal. O Tó é um jovem yupie do centro moderado, fã do passos coelho e bem encostado na vida. Não tem título nenhum conquistado, mas o dinheiro dá-lhe o estatuto de doutor, e monta-se em três amantes, numa secretismo desequilibrado do desejo que tem de mulheres. O Tó é enfadonho e maçudo, mas tem um maseratti e uma empresa de reciclagem de não sei o quê. E eu ali, distraído com o rio, as nuvens, o sol a bater-me quente nos cornos, o café e a água, o perfume da channel da rica, e a história das que passam, dos sapatos das que passam, o jantar de quarta-feira passada regado a piropos, e da vida da mulher do Tó. E eu de ar distraído acabei por me divertir, escrevinhar e ver o quarto crescente começar a brilhar na noite.Fujo das elites pedantes que esvoaçam gargalhadas domingueiras.

Longe vai........

Vieste para mim em flor mês de Maio. Cuidei de ti. Juntos crescemos com a madrugada do Ary, corpo cansado doutro sol nascente e baço. A maresia pousada no verde plantado no chão desfaz-se em manhã. Enfeitas-te com uma trança dourada e espreguiças os teus pensamentos nos meus.

 

Pode a distância separar-nos?

 

As giestas enfeitam-se glamorizadas de azul. Envio uma mensagem para o céu. Sei que o vento a encaminhará. Será lembrança de mim numa noite onde romperás o nevoeiro. Será luz. Afirmo-me embrulhado de uma saudade que não sai, que grita calada a sua existência. Longe vão as asas que me cortei. Voaram sem mim. Fiquei carregando-me nuns ombros fortes e numa alma sensível de robusta.

E se quando eu te encontrar começar aos saltos e correr para te abraçar?

E se quando eu te encontrar começar aos saltos e correr para te abraçar?

 

Não sejas tonto, pensei eu de mim para mim. A luz do bairro quando a noite se adivinha é soturna. Em dias invernosos as pessoas passam apressadas e curvadas. É como se conseguissem evitar os bagos de chuva que caiem do céu. Vive uma velha oliveira entre dois prédios. Está cada vez mais baixa e grossa. Mais redonda. Olhei-a da minha janela centenas de vezes para lhe fazer companhia.

 

Os teus olhos invisíveis têm pintado um olhar desviado. Não sei como isto se explica. Não se explica. Sente-se. Os teus olhos sentem-se. São embutidos de um conhecimento que não tens. Feito de adivinhação sentida. Feitos de ubiquidade. São como a presença e a distancia, a omnipresença e a companhia, o desvio e o caminho, a diferença e a semelhança. Verosímil aceito as palavras que me afogam o pensamento. Penso em sinais e na estrela cadente que vi dividir o céu em fogo. Da quietude e presença, do desejo não material que supliquei. Da calmaria que desejo entrelaçada de dedos e de um quintal que cheire a roupa estendida. De um degrau onde me sente, do assobiar do vento, e da luz do nevoeiro. Da musica que escolho e dos livros que leio, e tenho tantos por ler, cada vez mais e mais sequioso de o fazer.

 

A madrugada desperta-me e manda-me deitar. Sinto a face quente de sonhar.

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