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Cardilium

Cardilium

Preciso de “mim” feito de um “eu” novo

Preciso de um novo sangue, de novas mãos e um novo olhar. Preciso de uma nova alma e um espírito aguçado. Preciso de um novo país e uma nova cidade. Preciso de “mim” feito de um “eu” novo. Encandeado de promessas submeto-me à vida. Prefiro ler poemas a ouvir os discursos dos políticos, prefiro um prado verde semeado de pão aos discursos miserabilistas e adiados. Prefiro um rio lilás a um mar sem marés. Gosto do sal brotado e silencioso que tempera o meu olhar. O Outono desprendeu-se em mais uma estação. Indiferente, o espaço reduz-se em partículas. As horas carregam a noite mais cedo. As manhãs frescas e salpicadas de orvalho despertam-me. Livre nasci, para viver preso nas horas falseadas de afazeres e responsabilidades que não o são.

 

- Não poderei ler ou escrever quando me apetece?

- Decidir chorar ou sorrir no fragmento de tempo que mais me convir?

- Saborear a lua batendo na recta de rio que desfalece nas margens?

- Imaginar sóbria a minha loucura?

- Não poderei nunca?

 

Como eu queria ter na minha boca o amor reluzente e inolvidável, ser a extensão da individualidade interminável da planície calma que o teu abraço contém. O nosso verdadeiro valor está em sermos nós próprios, fortes e frágeis. A minha casa de madeira construída no sopé da montanha guarda de mim as noites. A minha viola dedilhada suavemente na urgência da calmaria. Lembro os que se foram, os que estão mais adiante, os que me vêem sem serem vistos. Os poetas que alimentam o meu sentir. O meu “eu” feito de “mim” novo.

Lenine e mais os outros todos

Disseram-me as mesmas coisas de Lenine e Jesus Cristo, de Karl Marx e João Paulo II. Não me disseram. Ensinaram-me. Mais tarde li. Disseram-me que todos defendiam direitos iguais para deveres iguais. Que a força do trabalho deveria ser distribuída equitativamente. Que a justiça social, o direito à habitação, emprego, justiça e saúde era um direito humano. Escreveram-se direitos humanos que não chegaram ao Dafur nem a Portugal pelos vistos. Ensinaram-me neste País pós cinquenta anos de ditadura que agora é que era. Ensinaram-me não, prometeram-me.

 

Continuam a prometer todos os dias, nos jornais e telejornais e diabo a sete. Promete o Sr. engenheiro que não é engenheiro nem primeiro-ministro. Prometem os adjuntos e os encomendados, promete a oposição, os secretários, os adjuntos e titulares, os assessores, os autarcas, os de direita, os da esquerda, os de centro moderado, os da esquerda chique e intelectual e os da igreja também. Todos prometem e ninguém cumpre.

 

Cumprem os seiscentos mil desempregados que não vão trabalhar, os pais que não mandam os filhos para as faculdades, os que não tomam os medicamentos nem genéricos em troca de comida, os audazes. Cumprem os que não têm escolha.

 

O adn do País está em mutação. Precisamos de um novo, construído e manipulado genoma social, dado ás crianças ao pequeno-almoço, forte em auto-estima, verdade, solidariedade. Isento de “playstations” e morangos com açúcar, a ver se daqui a vinte anos isto muda qualquer coisita, porque isto por estes vinte próximos anos está visto.

 

Disseram-me o mesmo de Lenine e Jesus Cristo, de Karl Marx e João Paulo II. Tudo escrito e impraticável.

 

Daqui a vinte anos falamos.

 

 

Mitos e ecos

Estou escondido numa folha de papel que não é papel porque já não se escreve em papel.

Estou oculto nas palavras furtivas e recônditas.

Levanto de mim poeira assente e exponho-me ao sol que me queima.

Escondo-me nos finais de tarde por entre persianas semiabertas.

Semicerradas de mim.

Pálpebras ausentes.

Enlouqueço o meu corpo de espasmos e vontades.

Alegorias encantadas.

Mitos e ecos.

Nas horas longínquas e serenas adormecidas vagueio inerte.

Sentado viajo pelo mundo inteiro.

Viajo pelos meus livros e autores.

Viajo no desassossego proeminente da minha alma.

Na calmaria de espírito pousada no mar.

Pêssego lagartoso

Passei pelo luar esta noite. Estava cheio. Cheio de luz. Encadeou de chama os meus olhos. Lembrei-me do meu pedaço de mar moreno, que fica prateado em noites como aquela por onde passei. Esta noite veio-me o sabor a sal e a saudade aos lábios. Soltaram-se-me lágrimas desavindas, cansaço, e melodias que não tenho ouvido.  Veio-me inesperadamente a nostalgia das madrugadas acordadas por pequenos raios de sol e músicas em alaridos do lado de fora de mim. Rebentaram-me viagens, o cortar a serra ao meio pelo vale das vinhas mortas. O cheiro a mato rubro e giesta. As pedras desfalecidas e escuras do caminho. Os acordes que dedilho em silêncio e as musicas que faço indivulgáveis. Recordo o anonimato seguro e prazeiroso da grande cidade. O olhar perdido e depositado em cada onda amansada. Os cheiros. O cheiro a agua doce. O cheiro a agua salgada. O cheiro das estações e do pôr-do-sol. Do infinito. Os abraços cheios de braços envolventes e envolvidos. O dejá-vu contante, contente e desconsolante dos caminhos. A maresia dos sentidos, o mar alto e as marés vivas, emanadas de sinais lidos por pedras preciosas que colherei e passarei num fio que te porei ao pescoço desposado. As manhãs cálidas inventam a sedução amarga de sabor agro e doce como um olhar teu. Emaranhas-me, prendes-me e possuis-me como se o mundo não existisse, ou só nele nos habitássemos. Oiço-te roufenha de um desejo gemido que crava as mãos em mim dentro e soluça baixinho um: “esta noite passei pelo luar” … “pêssego lagartoso”.

“Quanto mais nos elevamos, menores parecemos aos olhos daqueles que não sabem voar”.

A cidade enrodilhada acorda. Faço o caminho diferente do habitual. Não me apetece dar os bons dias do costume, à Margarida que me serve o café. Quero entrar de óculos escuros às oito da manhã e não ter que os tirar por ser Dezembro ou Abril. Não quero dizer ao gordo do marido da Cristina palavras sem sentido e de circunstância, ou à mulher dele aquele “sim, olá está tudo bem”, o que vou fazer, ou se a minha filha voltou, regressou ou simplesmente ficou por lá este fim-de-semana. O que eu quero mesmo é conversar com alguém que me interesse, entusiasme e me prenda de conversas e magicas prazeirosas e interessantes. Como diz o pensador, “se olharmos muito tempo para um abismo, o abismo também olhará para dentro de nós”. Olhar par dentro de nós é um exercício aterrador, ao mesmo tempo fantástico e libertador. A liberdade de encontrar, de saber mais e de entender.

 

“Quanto mais nos elevamos, menores parecemos aos olhos daqueles que não sabem voar”.

 

Friedrich Nietzsche

 

Desvia despir-me de mim próprio

Desvia despir-me de mim próprio, despedir-me sem sequer ter que me despedir. Expulsar-me. Enfrentar as crostas sangrentas das palavras sujas e malévolas sem fundamento, desconhecidas. Devia desvendar o mel que me adoça a alma e que teimo em esconder com o ar rude com que me enfeito. Castrar-me é perder-me dentro de mim próprio. É labiríntico poder cruzar-me comigo mesmo, não me reconhecer e abraçar. Doem-me as têmporas. As duas. Dentro da minha cabeça existem imagens desarrumadas. A serra soluça ao longe. Os relâmpagos clareiam a noite soberba de arte. Corro para a chuva de braços abertos e de cara erguida ao céu. Que bem me sabe aqueles passos molhados da primeira chuva. A estrada luzidia reluz. A terra vertendo vida. Tenho saudades do tempo que ainda não veio. É como se quisesse apreçar a vida. Alcança-la. Ver a colheita antes da sementeira. Sou semente. Adormeço numa quietude inquietada com o acordar. Sonho.  Desminto os meus pensamentos. Creio. Avanço. Espera-me a sala quinhentista alta e fria. O convento que já não o é. Trago elevado em mim alguns seres humanos. Os que estão quando me olho e revejo, quando escrevo sobre o meu património, e o meu património foi o que vivi. Está vivido. Desvia despir-me de mim próprio.

Mares, seiva, brilho e luz, demência, alarido, prossecução e visita.

Demência, alarido, prossecução e visita. Desentendido o poema que se crava autoritário e fascinado no peito desabitado de vida por habitar, constrói-se. Remexo-me sem encontrar a posição fetal. Letal. O vento dança com as folhas que já sucumbem nos ramos. Rompem os verdes camponeses numa azáfama rotineira. Os campos deixam em pó, os trilhos que se irão enlamear. A passarada à solta foge aos últimos tiros furtivos. Não tarda a névoa encobre a manhã. Os dias díspares serão desiguais pelas estações fora. Gosto do fresco que me enternece. O calor que invento, o meu mundo, a minha janela desenhada, as ruas movimentadas nas horas que antes eram de um calor irrespirável. Gosto do movimento e da praia chuvosa. Das nuvens escuras trespassadas teimosamente pelos raios de sol. Dos dias enormes de trabalho e pequenos de tamanho. Das noites longas de tempo. Dos beirais chilreados de pássaros, e da partida dolorosa e feliz da minha filha. Dolorosa pela ausência, feliz pela missão. O tempo avança desmedido, o alarido e a intempérie desumanizada galgam as arribas feitas de dunas, que descansarão até ao próximo encontro, que não será um encontro. Será um reencontro de mares, seiva, brilho e luz, demência, alarido, prossecução e visita.

Observatório sul

Deixa arder o fogo que o teu coração emana. O coração não envelhece. Os corações aproximados não têm problemas de linguagem. Usam uma linguagem universal que detém todas a formas de expressão existentes. Não se alimentam somente de palavras.

 

Quando nos descobrimos, descobrimos que não vivemos apenas connosco. Descobrimos a presença, a ausência e o passado. Descobrimos quem por nós passou como se não tivesse passado. Descobrimos quem por nós passou, ficou e ficará. Esta inteligência emocional aguda desconsertou-me para me construir.

 

A minha imaginação pode fazer de mim um poeta. Os meus versos não são imaginados, são reais e fortes, são palavras desiguais e em conformidade. A minha imaginação pode matar-me e ressuscitar-me. Fazer-me nascer de novo. Nasce-se em vida mais do que uma vez. Nasce-se tantas vezes quantas aquelas em que se morre.

 

A nossa existência e a nossa vivência são a verdade que nos resta. A fé e a esperança são as horas do dia. A caridade as horas da noite. Já pouco interessam as pessoas por conhecer. As palavras ditas ou por dizer. Interessa apenas abraçar o mar e estar com pessoas, onde as palavras não existam, mas caibam. As palavras cansam-me, maçam-me e aborrecem-me, vindas de bocas pensadas sem raciocínio. Detesto palavras qualificáveis. Encontro milhares de palavras que qualificam naturezas dolosas que se querem reconstruir com palavras, como se uma reconstrução se tratasse. Imagino pessoas com gruas a seu lado, muros a erguerem-se, martelos pneumáticos ensurdecedores que não deixam existir coisa nenhuma, taipais, fundações.

 

Somos uma obra inacabada, jamais seremos reconstruções consumadas de palavras. Somos coração e o coração não envelhece. Entediante falar sem sentir, viver sem viver, estar por estar. O coração ama, sente e sangra e volta a amar quando cicatriza.

Impossivel ....

Nada é impossível a não ser aquilo que eu acho que é, disse eu à nuvem, que quase me tocava na cabeça de tão baixo que estava pousada no céu.

- Olhou e disse-me: mas é isso mesmo o que estás a dizer, se apenas é impossível aquilo que achas que é, quer dizer que nada é impossível.

- Não me baralhes, isso foi o que eu afirmei.

- Não, o que tu afirmaste foi: nada é impossível a não ser aquilo que tu achas que é, e o que eu disse foi que sim, que apenas é impossível, aquilo que tu achas que é, o que desdiz a possibilidade do impossível.

- Pois é, tens razão: Se apenas é impossível aquilo que eu acho que é, tudo o mais é possível.

 

- Sei tão pouco sobre tudo. Provavelmente existem mais possibilidades do que aquelas que eu vejo. Sei tanto de nada. Como eu gostava de ter a liberdade de morar no céu, mudar de cor e forma como tu mudas. Viajar por aí e tratar as estrelas por tu. Chorar água cristalina. Mudar do estado sólido, líquido e gasoso como se desvendassem segredos guardados uma vida. Fundir-me noutras pessoas como te fundes noutras nuvens. Maiores, mais pequenas, mais claras ou escuras, de noite, de dia, no nevoeiro, ou no luar. Essa liberdade quero-a mesmo sabendo-a impossível.

 

- Vês o que quero dizer com impossibilidade?

- Sim, compreendo.

- No entanto continuo no meu entendimento a julgar ser possível numa manhã estrelada pelo nevoeiro afora, encontrares mil cores na face dançante da liberdade, espraiada num areal desenhado de palavras, bem-estar e estrelas, e isso é o que acabaste de descrever como impossível.

 

- Não tive nada a acrescentar a não ser um:

- Fazes-me bem, sabes!

 

 

 

Mundo feito de mundos

Eu sou um mundo feito de mundos,

Mundano,

Libertino,

Demasiado mundo,

Para se ser.

Eu sou assim num mundo,

Que não alcanço,

Um mundo pequeno,

Imenso

Existente.

Paixão,

Guerra,

Irracional,

Um mundo assente em poucos,

Emocional.

Países absortos,

Loucos,

Afastados,

Desviados,

Desvairados,

Mundo feito de mundos.

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