Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cardilium

Cardilium

Sou fã dos rudes !....

Era um aluno daqueles ansiosos pelo toque que abria as portas do jogo de futebol no campo de basquetebol nos intervalos das aulas. Quem chegasse primeiro jogava. Ainda o toque se adivinha e já corria para o campo. Driblava bem e chutava de pé esquerdo. As notas orbitavam entre o satisfaz assim-assim e o satisfaz bem. Era referenciado com um: “podia fazer mais”, por parte dos professores. O satisfaz para mim era bastante. Acreditava que o futuro seria a ajuntamento das experiências e por aquele momento o satisfaz era suficiente. No liceu joguei, beijei pela primeira vez e pela primeira vez também, dei a mão tremida a uma rapariga. Voltei a estudar anos mais tarde, já disponível para não ser um satisfaz assim-assim ou bastante e passar para o nível de satisfação pessoal que já entraria no bom mais, esforçado e empenhado de recuperação do tempo encontrado, mais do que perdido. Viajei, morri e ressuscitei. Encontrei-me mais do que me perdi. Reinventei-me. Sobrevivi à vivência escolhida. Ganhei defesas e tornei-me num bisonte emocional. Entendi sozinho o que nunca teria entendido acompanhado. Habituei-me a mim próprio e suporto-me nalguns dias. Envelheci com juventude. Amei e fui amado. Enrijeci. Ganhei massa crítica e experiência. Deixei de me embalar com discursos bonitos e tornei-me fã dos rudes, dos caminhantes, dos viajantes mais que turistas. E aprendi lendo. E sei, acredito, sinto e identifico-me com as palavras suadas que dizem: “ … que se cresce mais à sombra que ao sol…”

Os amigos são velhos como nós

Encostei-me para descansar. Estava quente a noite. Soprava uma aragem ainda mais quente do que a noite. Estava difícil suportar o que me queimava cá dentro. Tudo era quente. O mundo estava a ferver. Afagou-me e cabelo e perguntou o que eu tinha. Disse-lhe que um velho amigo estava a sofrer. Um amigo daqueles que não se vêm diariamente nem se precisa de ver. Amigos únicos e exclusivos, especiais e diferentes, umbilicais. Como sabes que está a sofrer? Perguntou. Respondi-lhe: “não sei, sinto”. Era como se aquela terra quente debaixo dos meus pés me inundasse de certeza. Como se eu tivesse que parar e deixar sentir o que me distanciava. Amando-se uma vez, não mais se deixa de amar. E eu amo aquele amigo e sei que o espírito dele não está sossegado. Sei que está ansioso, com medo, em busca de respostas, tenho a certeza. Estas coisas não se explicam a quem não tem amigos velhos. No monte da alegria saí de mim e voltei. Fiquei sossegado. Agora sim, sabia que a estrada era sinuosa mas que seria feita. 

 

Os amigos novos são amigos assim assim,  falta-lhes a preciosidade do tempo, a exclusividade do trilho por percorrer, porque é durante o caminho que as desistências existem. E continuei: Os amigos são velhos. Não existem amigos novos. Os amigos têm tempo de, e, na existência. Os amigos têm desavença e alegria. Os amigos têm defeitos, conhecimento, caminho palmilhado, vivência conjunta e lágrimas. Têm noites e madrugadas, dias e mar. Os amigos são intemporais. Os amigos têm palavra, sabem dos nossos gostos. Os amigos lêem-nos no olhar, nos passos e expressão. As palavras dos amigos são abraços e confrontos. Os amigos são frontais e presença. Os amigos não nos descrevem como sendo boas pessoas. Os amigos sabem mais do que reduzir isso a nós. Os amigos são velhos como a amizade … são velhos como nós.

Cortaram o trigo, os meus olhos agora vêm-me melhor…

… Cortaram o trigo, os meus olhos agora vêm-te melhor. O velho armário cheio de pó tem riscado o sítio por onde os livros passam. Está desgastado. É como se a mobília tivesse um calo como o que se tinha outrora, no dedo que pegava o lápis, na época em que ainda se escrevinhava. Um velho carvalho faz sombra e autoriza selectivamente alguns raios de luz de sol a entrar, bem como assim alguns clarões de sombra padecerem, naquele primeiro andar de chão encerado em tiras de madeira. Cobriam-no velhos tapetes gastos e descoloridos. Ali me embriaguei, dias seguidos de noites, embrulhado numa manta aos quadrados que mantinha o frio longe.

 

Li o mesmo livro quatro vezes, obcecado pelo que se escapule numa primeira leitura. Não sei quantas vezes vi a chuva cair pela janela nos campos perdidos de vista e quantas vezes vi o sol enterrar-se na terra trocado pelo erguer da lua. Sei de cor o ranger do soalho ás minhas passadas. Conheço as aranhas pelo desenho das teias. Estou a libertar-me dos destroços do passado. O álcool inebria-me e constrói-me um mundo.

 

Uma vez por dia sou interrompido pela presença da presença nesta solidão. Ela entra devagar sem palavras e deixa-me um tabuleiro sempre igual. Um tabuleiro preto com figuras chinesas avermelhadas. Olho-as centenas de vezes. Já fiz um milhão de histórias daquelas figuras macaenses. O tabuleiro tem sempre a mesma ementa. Silêncio, solidão, recordação, presença, lágrimas, sorrisos, mulheres, amigos idos, cheiros cristalizados, agua, cigarros, e um lápis fino e afiado. As notícias dou-as a mim próprio no mesmo momento em que me dou os bons dias ou boas noites.

 

Recebo nestes anos uma única visita, o padre. Nunca falei de fé ou religião com ele. Acho que me escolhe para falar dos pecados dele. Falamos de socialismo, agricultura, boémia, salvação, castração, escritores, obras, guerra, economia e passado. Passado especialmente, porque o nosso futuro é o passado. Nem sei se é crente ou não. Entendo a minha função para com ele, sou o seu confessionário. Confessa-se pela opinião que tem dos assuntos. Confessa-se pela desilusão que mantêm. Confessa-se pelo desacordo latente. Confessa-se num desabafo que lhe faz bem, e, a mim não me faz mal. Confessa-se pela antiguidade de não valer a pena a mudança. Depois sai sem se despedir. Simplesmente parte e eu meramente fico.

 

Cortaram o trigo, os meus olhos agora vêm-me melhor…

Tem-la

… Quando eu não existir mais, a saudade será como um barco a navegar nos momentos, comentei. A recordação será uma maré viva de emoções. Recordarás os momentos feitos de nada cheios de tudo. Recordarás as mãos dadas. Os momentos vazios de olhares. Quando eu não existir recordarás a penumbra e a luz. O luar e a madrugada, as estradas de pó de terra batida, desenhadas e acidentadas nas florestas que traçamos juntos. Recordarás as vezes que nadámos juntos na albufeira e fizemos amor nas margens das noites quentes de verão e acordámos cegos pelo sol. Recordarás a casa do sol nascente.

 

Há três noites atrás fez lua, disse. Redonda com cara de boa pessoa. Apetecida noite de cheiro rubro de vontade. Recordarás o chão. Aquele chão que adormecia connosco. A passarada chilreante e o firmamento. As vozes do outro lado da barragem em eco como se estivessem ali ao nosso lado. A noite faz da distância presença. A noite junta. A noite afasta. A noite ama.

 

E a cidade? A cidade vagueada e vazia. As colinas descidas e as avenidas subidas. Os rostos. Os rostos que admirávamos. Os rostos que analisávamos. A vida que inventávamos à vida das outras pessoas. A ironia e os pensamentos que não paravam de nos assaltar, que nos divertiam. O rio. As luzes. O outro lado. O mar. O teatro. As casas da musica. Os poetas embriagados de madrugada e o jardim, onde sóbrios nos juntávamos e os ouvíamos. O cansaço. A cumplicidade. O abraço.

 

Foi assim que falei ao Francisco e recomendei. Filho, quando o tempo não se importar com a presença de uma pessoa e se esgotar como o olhar no horizonte e ali mesmo se vislumbrar o céu vermelho desejando que o momento não acabe, é essa a pessoa. Quando perceberes que os ombros abanam com a musica que ouves e quando o silencio for de ouro, tem-la. Mesmo que o decote da mulher que passa, ou as pernas cruzadas que se abanam altas e esguias te atordoarem, nada nem nunca terá ou será, como o bem-estar que faz o tempo não existir e a saudade nunca acabar…

«Quando morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar»

No sossego da morte visitarei com os anjos que me carregaram e os mafarricos demoníacos que me importunaram. Farei as contas. Escolherei lugares fora de muros, entre serras, cristalinos e energéticos. Serei muçulmano, cristão e budista. Libertador. Liberto. Serei dialecto universal. Um dia quando eu morrer voltarei. Voltarei já com tudo feito. Voltarei com tempo.

 

«Quando morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar»

Sophia de Mello Breyner Andresen

 

Aqui IV

A onda mais bela é última, a que ainda não deu à praia. A minha alma é feita em partes iguais de maresia, nevoeiro, mar e sal. Este é o meu momento. O momento em que não me prendo. O momento em que me liberto, em que me deito e descanso. O momento onde sou eu. Onde me encontro sem a procura de coisa alguma a não ser de mim por dentro. Onde encontro o que existe em mim e descodifico com palavras feitas de pensamentos, conceitos, e estímulos que entendo e aceito. Aqui posso ser mar, viagem, montanha, céu e arco-íris e sei lá mais o quê. Posso ser o que me apetecer. Posso ser a minha cara toda, por inteiro. O meu peito pode-se abrir e navegar por onde lhe apetecer, tem a rédea solta. Aqui não necessito de entendimento, nem social, nem interpessoal, nem conotações em jeito de adivinhação. Aqui sou em contra-luz, com a intensidade da luz e a penumbra que escolho ter. Aqui sou eu com a música que escolho ouvir para ser embalado, com a roupa e os brincos pendurados onde melhor me convir. Aqui sou eu.

 

Dou tão pouco valor ao aqui, ao ser eu. Afinal aqui, é o meu mundo, a minha miséria, a minha felicidade e salvação. Aqui tenho-me e sou. Aqui prendo-me e liberto-me. Sonho e fantasio e faço da realidade o momento. Aqui morro e ressuscito, sou polícia e ladrão, saúde e doença, encarno e reencarno, dou e recebo, sou sano e insano. Aqui sou, apenas. Tenho esta rua, nesta cidade, neste país, este momento. Este momento onde a ultima onde escarrapachada na praia foi a mais bela, e, onde a mais bonita ainda está para se desgarrar no abraço que espero saudoso.

A tua voz

Perturba-me já a paz adquirida sem o veneno salgado e avinagrado do teu ser, ontem tanto como hoje, durmo o sono leve do pesadelo amontoado. Leva-me mar dobrado pelo sufoco das noites acordadas. Esta sede de me ter mais que morto carregado. Alma que me entusiasma e traz de um poço sem fundo tão profundo raiado de luz.

 

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas às urgentes
Perguntas que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer enquanto
O nosso amor durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...

Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada...

Miguel Torga

5 sentidos

Nós temos cinco sentidos:

São dois pares e meio de asas.

- Como quereis o equilíbrio

 David Mourão-Ferreira

 

A manhã inteira, a tarde toda e a noite completa.

Mesmo depois da noite toda não deixa de explodir em mim estas palavras.

Sentidos, asas e equilíbrio.

Desequilíbrio, voar e sentir.

A complexidade explicada pela simplicidade.

Se impar desequilíbrio, se par equilíbrio.

Penso em pessoas impares e o que sinto.

Penso em pessoas par e em equilíbrio.

Equilíbrio, estabilidade, comedimento, moderação, harmonia.

Sou impar…vou ao jogo no escuro, com o que sinto, com dois pares e meio de asas.

Recolho-me

Minúsculas e apressadas, as pessoas passam umas pelas outras sem reparem que passam. Sem reparar que são pessoas. Fiquei ali sentado e deixei-me levar pelo movimento que me desassossega. Burburinho em contra luz, claridade e paixão. Versos aos milhares não param de me invadir o peito. Contorço-me de dor nas palavras que não me esvaziam. Um homem com trinta anos e poucos quilos parece-me doente, mas calmo. Duas mulheres em cochicho contorcem-se em conversas, risos gargalhados, olhares, e medem-se uma à outra quando se despedem. Percebo a falta de genuinidade da amizade feminina. É como se houvesse uma competição descrédula de sensibilidade.

 

Recolho-me.

 

O amor pelas coisas sonhadas são a vida, pouco importa como se alcançam, desde que se alcancem. O sonho não é a vida, mas a vida é feita de sonhos. Horas imperfeitas estas. Sou crente e não crente num deus maior e menor. Momentos existem em que por defeito existencialista ou de consciência, nos lembramos dele e nos aquietamos. A razão não tem fé.

 

Nesta rua solta e livre, fria e escassa como a vida, suporto o tão pouco que peço. Pego num lápis e trémulo rabisco. Desenho assim o meu peito:

 

O meu peito quente,

Desfalece,

E eu aqui.

Cheira a flores,

Na lezíria,

Passou um arlequim.

 

Reboliço nas oliveiras,

Plantadas no quintal,

É o vento bravio.

Fazendo correr a aragem,

Que refresca,

O canavial.

 

Inconstante a passarada,

Assobia,

Desalvoraçada.

O meu peito descontente,

E eu aqui,

Madrugada.

Marear de olhos rasos

Tinha um ar aristocrático. Diziam que tinha sangue real. O bigode retorcido era com a linha de água numa nota de quinhentos reis que dizem existir. Nunca me cruzei com nenhuma. Era de uma família abastada de campos e terras. Tinha um pedaço de rio que atravessava o monte. O rio era o sangue da terra e a terra vida. Tinha saído em pequeno para estudar na cidade. Voltou boémio segundo diziam. Do cimo daquele ar nobre, carregava no olhar bondade e simplicidade. Falava com todos e todos falavam com ele. Tinha o mundo no sorriso. Um sorriso aberto e franco. Usava roupas como as nossas que lhe assentava bem nos ombros largos. Conhecia países que ficavam longe e mulheres ousadas e joviais. Tinha gozado a vida, voltava agora à terra para gozar as cinzas da morte. Dava-se bem com as crianças que o ouviam nas escadas de pedra fria do cruzeiro horas a fio. Qualquer criança sabia mais dele, do que qualquer um de nós. Um dia o meu pequeno disse-me:

 

Pai preciso que saibas o que decidi e começou. Amanhã vou-me embora. Vou-me embora mas vou voltar, como o Sr. Vilar voltou. Vou num barco que tem velas e uma biblioteca. Vou conhecer mulheres mais altas que os homens e vou ser marinheiro. Vou viver dentro do mar e entrar dentro das ondas. Vou salgar a minha boca e queimar a minha pele. Vou aprender a desenhar o mundo. Vou navegar na tristeza e nas ruas velhas da cidade, suspirar de olhos mareados. Vou aprender a alegria das despedidas, sabendo que são somente regressos a outro local. Vou aprender que não pertencemos ao mundo nem a ninguém e viajar nesta viagem chamada vida. Vou ser viajante Pai. Vou menino. Voltarei homem. Virei morrer à terra que me pariu mas existirei no mar. Alegrarei a solidão e a agonia com a sua recordação meu Pai. Entre a distância dos portos lembrarei minha mãe. Em cada sítio direi o teu nome no meu apelido. Serei brasas nesta vida, calor, passos, e levarei entre os dedos os recados que me mandares.

 

Fitei-o nos olhos e abracei-o. Saudoso do regresso disse-lhe: Vai meu filho, bem-aventurado seja o teu caminho.

Pág. 1/3