Era um aluno daqueles ansiosos pelo toque que abria as portas do jogo de futebol no campo de basquetebol nos intervalos das aulas. Quem chegasse primeiro jogava. Ainda o toque se adivinha e já corria para o campo. Driblava bem e chutava de pé esquerdo. As notas orbitavam entre o satisfaz assim-assim e o satisfaz bem. Era referenciado com um: “podia fazer mais”, por parte dos professores. O satisfaz para mim era bastante. Acreditava que o futuro seria a ajuntamento das experiências e por aquele momento o satisfaz era suficiente. No liceu joguei, beijei pela primeira vez e pela primeira vez também, dei a mão tremida a uma rapariga. Voltei a estudar anos mais tarde, já disponível para não ser um satisfaz assim-assim ou bastante e passar para o nível de satisfação pessoal que já entraria no bom mais, esforçado e empenhado de recuperação do tempo encontrado, mais do que perdido. Viajei, morri e ressuscitei. Encontrei-me mais do que me perdi. Reinventei-me. Sobrevivi à vivência escolhida. Ganhei defesas e tornei-me num bisonte emocional. Entendi sozinho o que nunca teria entendido acompanhado. Habituei-me a mim próprio e suporto-me nalguns dias. Envelheci com juventude. Amei e fui amado. Enrijeci. Ganhei massa crítica e experiência. Deixei de me embalar com discursos bonitos e tornei-me fã dos rudes, dos caminhantes, dos viajantes mais que turistas. E aprendi lendo. E sei, acredito, sinto e identifico-me com as palavras suadas que dizem: “ … que se cresce mais à sombra que ao sol…”
Encostei-me para descansar. Estava quente a noite. Soprava uma aragem ainda mais quente do que a noite. Estava difícil suportar o que me queimava cá dentro. Tudo era quente. O mundo estava a ferver. Afagou-me e cabelo e perguntou o que eu tinha. Disse-lhe que um velho amigo estava a sofrer. Um amigo daqueles que não se vêm diariamente nem se precisa de ver. Amigos únicos e exclusivos, especiais e diferentes, umbilicais. Como sabes que está a sofrer? Perguntou. Respondi-lhe: “não sei, sinto”. Era como se aquela terra quente debaixo dos meus pés me inundasse de certeza. Como se eu tivesse que parar e deixar sentir o que me distanciava. Amando-se uma vez, não mais se deixa de amar. E eu amo aquele amigo e sei que o espírito dele não está sossegado. Sei que está ansioso, com medo, em busca de respostas, tenho a certeza. Estas coisas não se explicam a quem não tem amigos velhos. No monte da alegria saí de mim e voltei. Fiquei sossegado. Agora sim, sabia que a estrada era sinuosa mas que seria feita.
Os amigos novos são amigos assim assim, falta-lhes a preciosidade do tempo, a exclusividade do trilho por percorrer, porque é durante o caminho que as desistências existem. E continuei: Os amigos são velhos. Não existem amigos novos. Os amigos têm tempo de, e, na existência. Os amigos têm desavença e alegria. Os amigos têm defeitos, conhecimento, caminho palmilhado, vivência conjunta e lágrimas. Têm noites e madrugadas, dias e mar. Os amigos são intemporais. Os amigos têm palavra, sabem dos nossos gostos. Os amigos lêem-nos no olhar, nos passos e expressão. As palavras dos amigos são abraços e confrontos. Os amigos são frontais e presença. Os amigos não nos descrevem como sendo boas pessoas. Os amigos sabem mais do que reduzir isso a nós. Os amigos são velhos como a amizade … são velhos como nós.
… Cortaram o trigo, os meus olhos agora vêm-te melhor. O velho armário cheio de pó tem riscado o sítio por onde os livros passam. Está desgastado. É como se a mobília tivesse um calo como o que se tinha outrora, no dedo que pegava o lápis, na época em que ainda se escrevinhava. Um velho carvalho faz sombra e autoriza selectivamente alguns raios de luz de sol a entrar, bem como assim alguns clarões de sombra padecerem, naquele primeiro andar de chão encerado em tiras de madeira. Cobriam-no velhos tapetes gastos e descoloridos. Ali me embriaguei, dias seguidos de noites, embrulhado numa manta aos quadrados que mantinha o frio longe.
Li o mesmo livro quatro vezes, obcecado pelo que se escapule numa primeira leitura. Não sei quantas vezes vi a chuva cair pela janela nos campos perdidos de vista e quantas vezes vi o sol enterrar-se na terra trocado pelo erguer da lua. Sei de cor o ranger do soalho ás minhas passadas. Conheço as aranhas pelo desenho das teias. Estou a libertar-me dos destroços do passado. O álcool inebria-me e constrói-me um mundo.
Uma vez por dia sou interrompido pela presença da presença nesta solidão. Ela entra devagar sem palavras e deixa-me um tabuleiro sempre igual. Um tabuleiro preto com figuras chinesas avermelhadas. Olho-as centenas de vezes. Já fiz um milhão de histórias daquelas figuras macaenses. O tabuleiro tem sempre a mesma ementa. Silêncio, solidão, recordação, presença, lágrimas, sorrisos, mulheres, amigos idos, cheiros cristalizados, agua, cigarros, e um lápis fino e afiado. As notícias dou-as a mim próprio no mesmo momento em que me dou os bons dias ou boas noites.
Recebo nestes anos uma única visita, o padre. Nunca falei de fé ou religião com ele. Acho que me escolhe para falar dos pecados dele. Falamos de socialismo, agricultura, boémia, salvação, castração, escritores, obras, guerra, economia e passado. Passado especialmente, porque o nosso futuro é o passado. Nem sei se é crente ou não. Entendo a minha função para com ele, sou o seu confessionário. Confessa-se pela opinião que tem dos assuntos. Confessa-se pela desilusão que mantêm. Confessa-se pelo desacordo latente. Confessa-se num desabafo que lhe faz bem, e, a mim não me faz mal. Confessa-se pela antiguidade de não valer a pena a mudança. Depois sai sem se despedir. Simplesmente parte e eu meramente fico.
Cortaram o trigo, os meus olhos agora vêm-me melhor…
… Quando eu não existir mais, a saudade será como um barco a navegar nos momentos, comentei. A recordação será uma maré viva de emoções. Recordarás os momentos feitos de nada cheios de tudo. Recordarás as mãos dadas. Os momentos vazios de olhares. Quando eu não existir recordarás a penumbra e a luz. O luar e a madrugada, as estradas de pó de terra batida, desenhadas e acidentadas nas florestas que traçamos juntos. Recordarás as vezes que nadámos juntos na albufeira e fizemos amor nas margens das noites quentes de verão e acordámos cegos pelo sol. Recordarás a casa do sol nascente.
Há três noites atrás fez lua, disse. Redonda com cara de boa pessoa. Apetecida noite de cheiro rubro de vontade. Recordarás o chão. Aquele chão que adormecia connosco. A passarada chilreante e o firmamento. As vozes do outro lado da barragem em eco como se estivessem ali ao nosso lado. A noite faz da distância presença. A noite junta. A noite afasta. A noite ama.
E a cidade? A cidade vagueada e vazia. As colinas descidas e as avenidas subidas. Os rostos. Os rostos que admirávamos. Os rostos que analisávamos. A vida que inventávamos à vida das outras pessoas. A ironia e os pensamentos que não paravam de nos assaltar, que nos divertiam. O rio. As luzes. O outro lado. O mar. O teatro. As casas da musica. Os poetas embriagados de madrugada e o jardim, onde sóbrios nos juntávamos e os ouvíamos. O cansaço. A cumplicidade. O abraço.
Foi assim que falei ao Francisco e recomendei. Filho, quando o tempo não se importar com a presença de uma pessoa e se esgotar como o olhar no horizonte e ali mesmo se vislumbrar o céu vermelho desejando que o momento não acabe, é essa a pessoa. Quando perceberes que os ombros abanam com a musica que ouves e quando o silencio for de ouro, tem-la. Mesmo que o decote da mulher que passa, ou as pernas cruzadas que se abanam altas e esguias te atordoarem, nada nem nunca terá ou será, como o bem-estar que faz o tempo não existir e a saudade nunca acabar…
No sossego da morte visitarei com os anjos que me carregaram e os mafarricos demoníacos que me importunaram. Farei as contas. Escolherei lugares fora de muros, entre serras, cristalinos e energéticos. Serei muçulmano, cristão e budista. Libertador. Liberto. Serei dialecto universal. Um dia quando eu morrer voltarei. Voltarei já com tudo feito. Voltarei com tempo.
«Quando morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar»
A onda mais bela é última, a que ainda não deu à praia. A minha alma é feita em partes iguais de maresia, nevoeiro, mar e sal. Este é o meu momento. O momento em que não me prendo. O momento em que me liberto, em que me deito e descanso. O momento onde sou eu. Onde me encontro sem a procura de coisa alguma a não ser de mim por dentro. Onde encontro o que existe em mim e descodifico com palavras feitas de pensamentos, conceitos, e estímulos que entendo e aceito. Aqui posso ser mar, viagem, montanha, céu e arco-íris e sei lá mais o quê. Posso ser o que me apetecer. Posso ser a minha cara toda, por inteiro. O meu peito pode-se abrir e navegar por onde lhe apetecer, tem a rédea solta. Aqui não necessito de entendimento, nem social, nem interpessoal, nem conotações em jeito de adivinhação. Aqui sou em contra-luz, com a intensidade da luz e a penumbra que escolho ter. Aqui sou eu com a música que escolho ouvir para ser embalado, com a roupa e os brincos pendurados onde melhor me convir. Aqui sou eu.
Dou tão pouco valor ao aqui, ao ser eu. Afinal aqui, é o meu mundo, a minha miséria, a minha felicidade e salvação. Aqui tenho-me e sou. Aqui prendo-me e liberto-me. Sonho e fantasio e faço da realidade o momento. Aqui morro e ressuscito, sou polícia e ladrão, saúde e doença, encarno e reencarno, dou e recebo, sou sano e insano. Aqui sou, apenas. Tenho esta rua, nesta cidade, neste país, este momento. Este momento onde a ultima onde escarrapachada na praia foi a mais bela, e, onde a mais bonita ainda está para se desgarrar no abraço que espero saudoso.
Perturba-me já a paz adquirida sem o veneno salgado e avinagrado do teu ser, ontem tanto como hoje, durmo o sono leve do pesadelo amontoado. Leva-me mar dobrado pelo sufoco das noites acordadas. Esta sede de me ter mais que morto carregado. Alma que me entusiasma e traz de um poço sem fundo tão profundo raiado de luz.
Agora que o silêncio é um mar sem ondas, E que nele posso navegar sem rumo, Não respondas às urgentes Perguntas que te fiz. Deixa-me ser feliz Assim, Já tão longe de ti como de mim.
Perde-se a vida a desejá-la tanto. Só soubemos sofrer enquanto O nosso amor durou. Mas o tempo passou, Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada. Ouvir de novo a tua voz seria Matar a sede com água salgada...
Minúsculas e apressadas, as pessoas passam umas pelas outras sem reparem que passam. Sem reparar que são pessoas. Fiquei ali sentado e deixei-me levar pelo movimento que me desassossega. Burburinho em contra luz, claridade e paixão. Versos aos milhares não param de me invadir o peito. Contorço-me de dor nas palavras que não me esvaziam. Um homem com trinta anos e poucos quilos parece-me doente, mas calmo. Duas mulheres em cochicho contorcem-se em conversas, risos gargalhados, olhares, e medem-se uma à outra quando se despedem. Percebo a falta de genuinidade da amizade feminina. É como se houvesse uma competição descrédula de sensibilidade.
Recolho-me.
O amor pelas coisas sonhadas são a vida, pouco importa como se alcançam, desde que se alcancem. O sonho não é a vida, mas a vida é feita de sonhos. Horas imperfeitas estas. Sou crente e não crente num deus maior e menor. Momentos existem em que por defeito existencialista ou de consciência, nos lembramos dele e nos aquietamos. A razão não tem fé.
Nesta rua solta e livre, fria e escassa como a vida, suporto o tão pouco que peço. Pego num lápis e trémulo rabisco. Desenho assim o meu peito:
Tinha um ar aristocrático. Diziam que tinha sangue real. O bigode retorcido era com a linha de água numa nota de quinhentos reis que dizem existir. Nunca me cruzei com nenhuma. Era de uma família abastada de campos e terras. Tinha um pedaço de rio que atravessava o monte. O rio era o sangue da terra e a terra vida. Tinha saído em pequeno para estudar na cidade. Voltou boémio segundo diziam. Do cimo daquele ar nobre, carregava no olhar bondade e simplicidade. Falava com todos e todos falavam com ele. Tinha o mundo no sorriso. Um sorriso aberto e franco. Usava roupas como as nossas que lhe assentava bem nos ombros largos. Conhecia países que ficavam longe e mulheres ousadas e joviais. Tinha gozado a vida, voltava agora à terra para gozar as cinzas da morte. Dava-se bem com as crianças que o ouviam nas escadas de pedra fria do cruzeiro horas a fio. Qualquer criança sabia mais dele, do que qualquer um de nós. Um dia o meu pequeno disse-me:
Pai preciso que saibas o que decidi e começou. Amanhã vou-me embora. Vou-me embora mas vou voltar, como o Sr. Vilar voltou. Vou num barco que tem velas e uma biblioteca. Vou conhecer mulheres mais altas que os homens e vou ser marinheiro. Vou viver dentro do mar e entrar dentro das ondas. Vou salgar a minha boca e queimar a minha pele. Vou aprender a desenhar o mundo. Vou navegar na tristeza e nas ruas velhas da cidade, suspirar de olhos mareados. Vou aprender a alegria das despedidas, sabendo que são somente regressos a outro local. Vou aprender que não pertencemos ao mundo nem a ninguém e viajar nesta viagem chamada vida. Vou ser viajante Pai. Vou menino. Voltarei homem. Virei morrer à terra que me pariu mas existirei no mar. Alegrarei a solidão e a agonia com a sua recordação meu Pai. Entre a distância dos portos lembrarei minha mãe. Em cada sítio direi o teu nome no meu apelido. Serei brasas nesta vida, calor, passos, e levarei entre os dedos os recados que me mandares.
Fitei-o nos olhos e abracei-o. Saudoso do regresso disse-lhe: Vai meu filho, bem-aventurado seja o teu caminho.