O tempo em forma de hospício e perjuro é pesado nos meus ombros gastos e doridos. As minhas mãos rudes mas fartas de carícias acumuladas gritam amor. O tempo faz com que o amor entendível e sarcástico se esconda enlaçado, como nós de gravata que me desconfortam e sacrificam.
Não existirá nenhum poema que me deprima ou alegre, tal como as palavras sublimadas e distantes que me ferem a alma, tanto como a boca de quem as vocifera. Redondo este vocábulo incandescente apaga-se ao nascer e falece ao ser sepultado na rocha cravada e sobranceira ao mar. As cinzas perpetuam a existência, o pensamento, as questões permanentes mais que as existenciais e as respostas adiadas e esperançosas de um tempo inexistente e crasso de vida.
A ambivalência é uma oportuna e avançada forma de ser, é uma dúbia forma de estar encarada pela solidão, presença e ilusão. A soma das partes nem sempre é o somatório de um todo ou um todo o divisível das partes.
Dentro do meu peito existe como na babilónia um jardim suspenso, um mar salgado, um deserto por habitar, um nevoeiro que me esconde, e um poema que me mostra. Dentro de mim existe vida. Ser-se, é tão mais forte do que o adiamento feito de medo e cobardia do desconhecido. Enfrento-me. Carrego-me. Por isso os meus ombros negros, gastos e doridos, elevam-se ao caminhar.
O meu coração está seco de dor, habitou-se, é agora uma fonte de vida. Uma fonte que me alimenta. Uma nascente de certeza de conseguir carregar-me, levar-me e elevar-me.
Estremunhado e espreguiçado espreitei os raios violeta da alvorada que me iluminavam. Cegou-me uma luz estranha que me acordou. É como se um arauto me tivesse beijado suavemente a alma e me quisesse dizer qualquer coisa que a manhã desconfortava.
Terá sido um sonho?
Senti a fronte beijada suavemente e a minha mão tocada por Deus. Estranhava a paz do dia nascente, a harmonia, e o cheiro da terra. O assobiar do canavial monocórdico.
Os pássaros multicolores e as desconcórdias suavam-me a consonância e melodia. Pressenti a morte como continuação da vida e não tive medo, não queria adiar a chegada nem apressar a partida. As dores tinham desaparecido e somente o astrolábio do meu peito indicava a fé ausente da minha existência. Era como se um anjo me habitasse.
Não sei o que significa anjo. Sei que deriva do latim angelus e que de uma forma muito terrena o concebo como uma pessoa bondosa ou uma criancinha. Depois existem as figuras metafísicas de anjo que me arrepiam e até chocam. Figuras de ar cândido, papudas, celestiais e assexuadas a olho nu. Vistas mais profundamente vejo-as sexuadas, parte integrante de orgias e luxúria e de ar pálido doente e enfatizado.
Um anjo é uma alma. Não tem matéria é apenas espírito. Filosoficamente o anjo bom é o anjo da luz, da perfeição moral. O anjo mau é o anjo das trevas. É a distancia e o intervalo, entre uma alma perfeita e imperfeita. Um anjo é um mensageiro, nesta sociedade contemporânea os anjos das trevas são os fazedores de opinião, os mentecaptos e por aí fora. Os anjos da luz são os mensageiros da paz.
Acordei com um beijo suave na testa. Senti-o. Foi o meu Pai. Beijou-me a alma com o coração.
Os dias passam por mim mais cansados do que eu. Trabalhar dezasseis horas por dia para além de me alienar, abre e fecha simultaneamente um ciclo. Será o início de vários ciclos iguais. Dá-me que pensar. Revejo-me. Ando para trás e solto-me, creio mais do que acredito. Sinto a energia. Tudo numa solidão ausente de ausência. Jamais conseguiria dividir as minhas “taras”. O próximo evento (não social) porque eu sou daqueles que nasceram para trabalhar e as coisas não me vêem parar ao prato da sopa, terá epílogo em Outubro, e, começará hoje mesmo a fase final. Fase final já iniciada, feita de noites trabalhadas, fumadas à varanda, de “aluamentos” que vão e vêem, de loucuras pensadas e lucidez forçada. Enquanto isso a luz soçobra e a lua cresce. Daqui a pouco vou ao médico, espero regressar em breve aos relvados....
Se dói de saudade, de falta, de vontade, é porque existiu presença, partilha e querer. O que arde cura. Se dói é porque foi bom e valeu a pena. O alívio é apenas o resultado de não ter valido a pena, de ter sido tempo perdido, momentos desperdiçados, ausência de alma. Se dói é porque valeu a pena. Se o tempo não apaga, se a recordação é viva, que se mantenha assim intensa a recordação. Se a musica acarreta recordação, se as noites e as viagens ouvidas de música conjunta, e os cheiros impregnados no ar, e o nada nos habita, é porque o abraço fez sentido, e se fez jamais deixará de fazer. Embebedo me de sorrisos e expressões cristalizadas. A pequenez do renegado é cobardia emocional. Sintetizo psicologicamente as minhas emoções e guardo-as. Guardo-as num segredo com cheiro a madeira e um poema escrito por entregar.
Os homens de tez queimada pelo sol, de mãos sábias e rudes da vida abraçada de mar, das noites embriagadas das vagas e pescado, descansam com as vestes de flanela coloridas, no areal a perder de vista numa praia escarpada e branca. Serenamente olham o mar que não os farta, que amam e respeitam. Fumam e conversam sabedoria e vêem o voar das gaivotas anunciando o tempo que prevêem. Têm um ar distinto, severo e meigo, feito de distância e proximidade. Apenas o seu ar me faz sentir pequeno e ignorante. Conheci um pescador, o Ricardo, que me fez sentir pequeno perante tamanha sapiência e bom senso. Sinto-o como se fosse o prolongamento do mar. E como eu gosto do mar e lhe reconheço energia, paz e força, movimento e cor, alegria e tristeza. Sei, enterradas na areia da praia, lágrimas de sofrimento, de perca e de alegria. Sei existir vida nos cúmplices olhares dos amigos de toda a vida, comemorações conjuntas de despedidas e chegadas. Sei existirem regras e códigos jamais impensados de serem quebradas. Existe pacto, não há dúvidas de conceitos, do que foi, é e será. Os barcos virados a norte são baptizados como os seus filhos. São um bom pronuncio. São encomendados a Santa Rita de Cácia que os vele e guarde nas noites das vagas. Místico este areal onde o silencio é cheio de tudo, e as palavras cheias de nada. Salgado de sal, lágrimas sorridas … e mar.
A música forte e densa mal se ouve de tantos decibéis derivar. Verão, calor a sudoeste do Alentejo. Terra quente empoeirada e escura. Uma brisa corre desventrada dos teus olhos. Tens um vestido de ganga com uns botões que te descerro com o olhar. Os teus cabelos são a continuação do teu ser, desgrenhados ao vento, soltam-se em caracóis vermelhos. Centenas de pessoas arrastam um corpo alienado pelo álcool e umas porcarias que fumam de cheiro adocicado. Sempre achei que aquele fumo tem ritmo e um cheiro quente a Africa.
Não tarda é Julho. Os Julhos tornaram-se meses anormalmente saudosos e felizes. Sou abençoado. Escrevo com alma o que sinto, penso, observo, invento, experimento e sonho. Leio mais que um livro a cada quinze dias. Toco mais do que vinte horas por mês. Jogo futebol com amigos. Tenho dois trabalhos e um deles adoro-o. Tenho um trabalho só meu como objectivo e meta. Ando de mota por sítios incalculáveis e verdes com riachos pelo meio. Conheço-me bem e não menosprezo o conhecimento do ser humano. Tenho pais idosos e doentes mas vivos. Uma filha saudável e presente. Tenho energia. Dou-me bem com a minha solidão e necessito dela. Adoro a luz da minha casa, o cheiro, o pó depositado nos livros e o cotão dos cantos do corredor. Gosto de passar a ferro quando me apetece, lavar, estender e apanhar roupa. Gosto de sexo e de fumar à varanda. Gosto de ver a lua a crescer e minguar. Gosto do meu património emocional, e do auto – patrocínio intelectual. Gosto de arroz de grelhos, peixe frito e arroz de pato. E gosto de ir à serra perder o olhar no alto de Santa Marta.
Que se dane o Inginheiro Sócrates que é só protocolo ... e o aumento do IVA….