Cheira a flores de rosas no meu quintal. É Maio. As noites têm o silêncio dos amantes. Escondem-se almas voantes na imensidão de vida. Perdura a vontade de fazer do mar companheiro e de deixar completa a obra que é a vida. As crianças têm o encanto da inocência. Já crescido aceito o desencanto da vida. O desencanto da desistência. Aceito a loucura que me tolda. Os sonhos que vou sonhado, o fazer amor em vez de sexo. Os corpos entendidos mesmo usando a mesma linguagem são fugazes e despropositados. Os corpos só se unificam se alma for una. Esse é o privilégio que a vida nos oferece. Poucas vezes sobrevém e as palavras são desnecessárias, não importam, nem se importam. A alma expressa-se não se pronuncia. Expressamo-nos pelo que transparecemos mais do que pelo que dizemos. Transparecemos pelo que exalamos. Cheira a lençóis lavados e frescos no meu peito, de cada vez que acordo do único sonho que tenho. Aos poucos vou concretizando. Concretizar é agradecer a existência. Todos os dias, me abandono e recolho. Todas as noites, entendo a ruptura como oportunidade. Mudo sem estratégia pensada, amadureço com as estações, sem me aperceber de que o que preciso não se procura, encontra-se. Tenho como o Pessoa pedras no meu caminho, mas não construirei um castelo, construirei uma gruta e um passeio empedrado de seixos, da nascente do rio que corre desalvoraçado em mim. Semearei um relvado com a lua ao fundo, para que me lembre da luz que me ilumina e não me cega. A lua tem a cor da minha alma. Quem me quebrou o encanto nunca me amou.
Transfiguram-se as faces na ausência. Por vezes quero recordar-me de expressões. Faço força, muita força e não consigo de um forma nítida recordar-me. Recordo as sílabas, os cheiros, os lugares, as lágrimas e os sorrisos, o toque, a sabedoria, imagens enevoadas, mas não vislumbro a expressão. Não recordo a cara da minha avó Deolinda ou Júlia.
A ausência deixa-me uma vontade de estar. Esta ausência.
Existem ausências aliviantes. Aquelas em que eu penso: “olha que sorte a minha”. Existem pessoas que deixei de conhecer. Provavelmente porque nunca as conheci. Normalmente são as que eu mais investi e sinalizei. Essa ausência tornou-se normalidade e mais tarde paz. Não passo “cartucho”, nem quero saber. Quem vai vai, quem está está. Cada qual na sua, sem dramas.
A ausência é um mar com vagas enormes de saudade. Isto quando se conheceu quem existiu, e existe quem se conheceu. Esta ausência não muda o que quer que seja. Se se conheceu, sempre se reconhecerá. Se se gostou, sempre se desejará. O reencontro das almas far-se-á, nem que seja na saudade da existência da ausência. O voo mesmo que distante é junto e pleno. É um voo de bem-querer, bonançoso e presente. É alegria por se saber bem, tristeza por não estar presente na ajuda, felicidade por partilhar um “olá tudo bem, estou aqui e pensei em ti, apesar de não nos vermos há uns tempos estamos juntos, é grande”. Enorme esta ausência saudada.
Entra pela janela o cheiro a pinheiro que chega ao primeiro andar da sala onde me encontro. Este silêncio é dos bons, penso eu! Dá-me a paz da distância, do burburinho, do caminho, que até aqui me trouxe. Oiço alguns latidos ao longe. Dependurando nestes pinheiros mansos existem flores amarelas. O vento corta o silêncio de quando em vez. O monte iluminado e cintilante ao longe, corta a cidade. Não me apetece daqui sair. Sinto pertença crescer no meu peito, o espírito viajante sub eleva-se. Acordo, sonho e adormeço. Piso um chão desconhecido a que chamo erudição. Uma sensação de dejá-vu inunda-me. Sei que existe um rio. Um rio farto e sedoso, lindo, lilás de cor e verde de esperança, vermelho de raiva do direito que tem em chegar à foz. Anormalmente sinto falta da companhia que em lua crescente, mais tarde farta, me visitará mesmo antes de eu a visitar. Imagino um corpo partilhado que me seduz e convida a uma dança. Uma musica feita de tambores arritmados e presentes, quentes e fortes, compassados e certos. Imagino os meus passos fugazes e leves ao som crente do mistério de ser. Ser nobre, soberbo e dançante, singular e indivisível. Imagino este campo aberto em mim, de coração mostrado e exposto, sem medo que o meu quociente emocional seja desventrado ou ameaçado. Revejo os teus olhos presos e soltos. As tuas mãos conversando. O teu andar ornamentado. O teu sorriso cravado e deliberado. A minha ausência. Isto sentido no breve intervalo de uma aula, entre o burburinho escutado abri um novo ficheiro. Aí estão eles mais a saudade.
A saudade afinal é uma trança enfeitada, é um “lago onde espelha a pessoa ausente”...
Começa a haver meia-noite nos meus dias. A magica energia da noite, o que sinto, mais do que penso. Penso rapidíssimo com o coração. Sou muito lento com o pensamento. As ordens que recebo do coração assustam-me. A minha cabeça ajusta-as. Mas é o coração que me ordena, que me guia, que me faz avançar, trabalhar, ordenar, organizar. É o coração que me faz sentir fé, saber que sou existência, alma mais que carne, emoção, lágrimas, pranto e riso, filho, amigo e pai. As palavras sem exemplo perdem o conteúdo, nem as oiço. O exemplo não precisa de palavras, fala por si só. Mostram trabalho, inteligência, avanços, recuos, crescimento, amadurecimento, caminho, dias, noites, e não precisam de publicidade ou redes sociais completas e complexas. A simplicidade de ser está na obra que se enceta e nunca se conclui. Não está nas bengalas emocionais. A partilha não é cobrança é partilha. É dizer como foi o caminho e por onde foi. É não saber do minuto seguinte. Comovo-me ao olhar para trás. Vejo o que andei para aqui chegar … “e eu vim de longe, de muito longe, e o que eu passei para aqui chegar”… como diz e bem o poeta. Qualquer dia a qualquer hora sou mais semente que aridez. Tenho meia-noite nos meus dias.
Sou música. Sou música mais que escrita ou pintura. Sou música mais que outra coisa qualquer. Ouvi Zeca e mais tarde Júlio Pereira. Hoje sou aquelas palavras de Abril. Abril feito de uma verdade passada. Já não cheira a Abril na rua. Foi-se. Não há cravos nas lapelas, e, não havendo flores não existe mais o valor da conquista da liberdade, depois de cinquenta anos de analfabetismo, prisão e extorsão da força do trabalho. Para aprender a ler só o seminário ensinava com a contrapartida de poluir as mentes de uma religião obscena, obscura, capitalista e imperial.
A lua está em celebração de Abril, plantou iluminada um campo de papoilas vermelhas e lilases na planície. Fez a noite amena e os campos a perder de vista. O silêncio brindou-me nesta madrugada de regresso. A cinderela perdeu e achou o seu sapato na noite da liberdade. O pé elegante envolto em seda e sublime no andar. As horas que passaram como fragmentos de tempo que se degustam sem se dar por ele. A magia de estar por estar e ser o prolongamento do paragrafo anterior. Os sorrisos esboçados de olhares cândidos e com vida fazem deste Abril pronuncio de Maio.
Maio maduro Maio quem te pintou?
Maio maduro Maio, quem te pintou? Quem te quebrou o encanto, nunca te amou. Raiava o sol já no Sul. E uma falua vinha lá de Istambul.
Sempre depois da sesta chamando as flores. Era o dia da festa Maio de amores. Era o dia de cantar. E uma falua andava ao longe a varar.
Maio com meu amigo quem dera já. Sempre no mês do trigo se cantará. Qu’importa a fúria do mar. Que a voz não te esmoreça vamos lutar.
Numa rua comprida El-rei pastor. Vende o soro da vida que mata a dor. Anda ver, Maio nasceu. Que a voz não te esmoreça a turba rompeu.
Zeca Afonso poeta de Abril um muito obrigado por tudo.
- A problemocaína é um problema do mundo contemporâneo.
- Existem mais problemas que soluções.
- Os problemas criam dependência, as soluções libertam-na.
- É mais proveitoso sentir a pedrada dos problemas, que o alivio que dá o trabalho da solução.
- Problemacaínomano começa a ser estatuto social.
- Sem análise psicossomática ou social da classe abalizada tornou-se a problemocaína lamurienta.
- As madrugadas, as dificuldades, as recordações, os sonhos, as viagens, a gentalha diferente mais a igual, ou livros, as musicas e as divagações, são o alívio do peso da pertença grupal.
- O peso de acordar sem esperança, sem caminho, e transformar isso num desafio intra pessoal indolor à problemaínocanomidade, é a vitória e auto-estima.
- Caminhar sem solução, empurrado de recordações vividas, não é mesmo que chorar sem ombro e sem depósito de lixo emocional por incinerar.
Existe tudo para entender. O terreiro está repleto de seres alienados. Os copos reluzem nos corpos. As mãos são gestos de corpos dançantes inexpressivos. O não entendimento é o fascínio alexitimico. O olhar baço e terno da paranóia da ressaca, não é mais do que o medo de viver. Viver num despropósito continuado invadido de torturantes provocações que a vida oferece, a frio. Resta entender que a existência é a soma dos actos, e que de actos se faz a cena, e que de cenas a vida compõem uma peça.
Trágico, drama, sensorial, humor, ficção, comedia e pranto. Tudo é válido, tudo representa os elementos. Ar, terra, fogo e água descreve emoção. O entendimento é cognitivo e o saldo final é negativo, o intervalo de confiança sem consideração descritiva não é válido e o desvio padrão inexistente. O coeficiente de variância é nulo. A cognição não se entende pela razão.
As emoções são ricas e sábias, não têm análise preponderante ou não deviam de ter. Apenas sentidas são vivas. Movem mares e desertos, ventos e tempestades, maremotos e terramotos e a mim. A significância de ser vive-se, mais do que se pensa. Esta noite não tive medo e fiquei acordado a trabalhar. Vi a trovoada enfeitada de riscos no universo. Ouvi os deuses trocar de impressões e decidir. Vi-me, ouvi-me e revi-me. Enquanto isso trabalhei e já pela manha adormeci. Estou seguro neste porto donde parto, onde me atraco. Sou empático. As pessoas têm-mo dito com um sorriso de entendimento e colaboração.