Neste desabafado e plantado Blog de nome cardilium, este mês findo hoje, foi mês de contos. Mês de Novembro que me deu à luz uma filha linda, e, prenuncio de uma outra vida nascida a seis de Dezembro. Continuará a sua missão de ser apenas um desabafo, uma opinião, um devaneio, uma critica, um recanto meu, sem qualquer veleidade acerca de ser uma escrita de escritor, ou sequer bem escrito. É a amante de madrugadas e de intervalos de trabalho, e até de fantasiosas musicas dedilhadas. Tem conhecimento. Tem vida.
Um milhão de palavras não mudariam coisa nenhuma, já experimentei e ficou tudo na mesma. As lágrimas sabem a sal e fazem bem à pele e à alma. Lavam-na. Mil esboçados sorrisos dispõem. Sorrisos e abraços não encerram mentira. A mentira é um fenómeno que existe, apenas porque a verdade pesa mais e é mais difícil de saborear no imediato. A verdade degusta-se e não tem prazo nem validade. Vale sempre o mesmo. A mentira é como uma droga de ascensão imediata, que à posteriori se desintegra, como um foguetão no cabo canavial. Sobram pedaços que não mais se reconstituirão. A verdade, ao contrário da mentira, no imediato pode magoar, mas à posteriori será venerada e admirada. A mentira morre apodrecida em solidão sem ninguém que a vele. Morre sozinha, feita da miséria, escolhida pela anti-verdade, omissão, e mais uns quantos adjectivos que a não classificam, ao invés de a classificar. A verdade não dança com a mentira, nem se encontram para tomar café. A verdade tem amigos, a mentira inimigos. A verdade é um exercício feito ao nascer que se perde quando se começa a falar. Não se reeducada. Subestima-se. A verdade é coragem, a mentira fantasia. É fantasioso contar apenas e só com a nossa inteligência. A mentira disfarça-se de tantas cores, credos e raças. Mas é apenas uma mascara que o tempo fará cair. A verdade é azul clarinha, dorme oito horas por noite, alimenta-se bem. É mente sã, em corpo são. A verdade é introspectiva e não tem tempo, é eterna. A mentira tem a caducidade nela escolhida, é a antítese portanto.
Os resultados não são mencionados, são feitos e dão trabalho. É este o epílogo de uma semana de trabalho que não sinto. Trabalho desligado do mundo. Quase não sinto fome ou sede, e fisiologicamente fico descontrolado. Ligam-me os cigarros ao mundo, numa manhã que não sei se é noite, ou numa noite que não sei ser já manhã. Sei que a lua esta em crescendo e o meu trabalho cresce com ela. Liga-me ao mundo uns mails trocados de avaliação e reestruturação. Está feito, e agora que já passou fico vazio. Afinal eu gosto de trabalhar. Eu gosto de ter sucesso e de sentir que cada dia que passa, as minhas competências aumentam, e que posso cada vez mais, confiar na minha cabeça.
O busílis da questão é saber se posso confiar no meu coração. Um órgão hipersensível ao meu sentir, semeado de nomes lindos e rudes, ao olhar do coração dos outros. Já foi apelidado de louco, carente, frio, rude, amoroso, especial, terno, mau e bom. Sei como ele sente. Não sei como se sente. E não sei sentir o que se sente.
Este frio que corre lá fora faz-me bem, apetece-me passear que nem um louco, avenida abaixo, avenida acima. Apetece-me ser embrulhado pelo nevoeiro, roubar rádios aos carros, daqueles antigos de cassetes. Escrever poesia nas paredes dos prédios novos, fazer desenhos com spray na estrada, de maneira que quando a cidade acordar, metade pense que foi uma guerra, e a outra metade pense que foi uma festa, que pena terem estado a dormir.
É um pensamento omnipotente mas é o que me vem, setenta e duas horas depois de trabalhar ininterruptamente, com intervalos de quatro horas para dormir, e quinze minutos para comer. Apetece-me mijar no canto da minha sala para não ter que me levantar e parar de trabalhar. Apetece-me defecar na porta do meu vizinho, em cima do tapete da entrada que tem uns pés vermelhos desenhados de ráfia.
Sabem-me bem os banhos limpos que me ofereço, o conhecimento que me entra, e estes delirantes pensamentos, que ora me assustam, ora me divertem e alegram. Cada vez mais me acho um ET neste mundo esquizofrénico e mal frequentado. Não se está mal de todo sozinho. Existo no fundo de mim mesmo. Ás vezes ao lado, outras nem tanto. Mas penso logo existo!...
De mãos dadas avançavam cúmplices na direcção da escola. Separava-os um ano de idade e outro de nascimento. Ela de cabelo entrançado, ele desabotoado, ou de botões trocados nas casas onde deviam abotoar. Iam pelo passeio como lhes recomendava a mãe todas as noites antes de os beijar adormecidos. Partia todas as manhas para mais um dia feito de fadiga e amor. Petizes de ar sério e compenetrado como gente grande. Os seus olhares cúmplices protegiam um ao outro. O pai emigrara e não voltara. Conheci-os no caminho para a escola. No recreio era o meu amigo, bem como nas contas aprendidas, e nas palavras inventadas. A passarada acompanhava e misturava-se no chilrear do intervalo das dez e quarenta e cinco. Eu era índio enquanto a maioria era cowboy. As cabanas eram a mais confortável casa que algum dia tinha experimentado. Guardava segredos e protecção. Ficava numa fazenda de grãos grossos de terra, debaixo de uma figueira velha e redonda. Era forte como nós, os índios. Crescemos e a vida levou-nos cada qual por ser caminho. Hoje no sítio da cabana existe um prédio vertical de sete andares, com dois elevadores e garagens subterrâneas. Que pena, deitaram a cabana abaixo. O pai do meu amigo do recreio desemigrou e o meu amigo tomou-lhe o lugar. A minha amiga já acasalou três vezes. Já não brinca de ar angélico e iluminado. Eu já fui e já voltei. Já parti e regressei, e agora estou por aqui.
Dei por mim a fumar ao espelho, irreconhecível. Carregava no olhar esperanças. Esperanças são mais que uma, são desesperançadas despedidas, vicissitudes de palavras que perdem o sentido de tão gastas e repetidas que estão. As palavras esgotam-se e escasseiam. Felizmente são regeneradas num termo comum hoje em dia. São recicladas e soam difusas. Reciclam-se as palavras, fecundam-se e inventam-se outras novas por finar. Olho-me a um espelho novo que não está gasto pelo uso do meu olhar. Contemplo o desconhecimento e admiração do espelho de mim próprio. Apresento-me. Sou o JN, o eu feito de mim próprio! Reflectido, vergo-me numa vénia muda de palavras, elegante de modos. Sou uma visão errante, de um eu meu, ignorado. Afago-me num abraçado soluçado, desentendido e desconhecido afago. Sozinho num normal acto irreflectido, volto o espelho para a parede, não quero mais cumprimenta-lo à minha passagem. Olhos nos olhos de mim mesmo, revejo cada solidão, cada palavra desenhada sem sentido, cada redesenhada sílaba que se junta e parte. As palavras são como cavalos selvagens à solta e desenfreados numa lezíria ampla e livre. Afago-me. Felizmente à luar! Um luar branco, imaculado e solto. Aprenderei um dia a ler, antes de inventar uma leitura num mundo que os homens teimam em me mostrar errado.
De cada vez que me dou ao mundo regresso ao meu casulo com uma soberba sensação de que preciso pouco mais do que de mim próprio, da minha genuinidade, conceitos e princípios. Existe prostituição, desonestidade e miséria intelectual. Existem exercícios intelectuais tão fortes que se podem mudar as estações, o mar de sítio, as arvores das montanhas. Pôr a neve na praia e a areia num pico de uma serra nevada. Pode-se até trocar o amor pelo desamor no minuto seguinte de se amar. Na verdade o que não se pode mudar é a admiração, que se tem por alguma coisa ou alguém. Perdendo-se a admiração, acabou. Já não se admira, não se ama. Não se admira, não se deseja. Não se admira, não há riso, muito menos existe choro. Não se admira não há vontade. Desadorar é deixar de admirar. É um processo doloroso e desistente, de tão raro ser. É um pensamento de impossibilidade. Impossibilidade de anavalhar ou golpear um coração pensado nosso. Impossibilidade de embalar uma noite como se fosse a ultima, mesmo sabendo das demais que a vida tem para nos oferecer. Desadorar, desadmirar, desrespeitar, descompassar, desnaturar, desnascer. Conceitos identicamente distantes com o predeterminado “de” como prefixo. É mórbido, com o sentido da vida regressado a um confortável casulo.
Peguei-te na mão e fui em direcção a uma ponte baixa que tocava no rio. Não entendi nunca se vinha do céu para abraçar o rio, ou se era parida pelo rio numa elegância que não fazia dela uma ponte. Sei que juntava as margens de um labor citadino, com a calmaria da lezíria. Tinha na margem plantada e um largo com árvores espaçadas. Na margem o canavial inventava músicas feitas de vento. Olhavas-me de olhos pregados no chão em movimentos de cabeça afirmativos. Com a minha mão dada na tua caminhamos pela margem de cá. Atrás de nós uma enorme tenda que me fazia lembrar um circo, animava a minha imaginação de arlequins de trompetes empunhados e rapazes do trapézio voador. Imagino um vinho transpirado, uma alma, um ritual e a forte e escura mancha deixada num vazio fingido e cheio. Cegam-me luzes fortes de arrepios provocados pelo teu olhar, pela tua passagem e toque. Escrever para mim é uma luta contínua contra a neurose em direcção ao equilíbrio e lucidez. É uma purga do que não se faz, ou se fez de errado. É um remendo ou uma remediada contra-acção. Escrever é vida, é cristalizar momentos. É auto-conhecimento e o conhecimento dos outros. As mulheres mentem quando falam de homens entre elas, os homens glamorizam quando falam de mulheres. Mas todos, homens e mulheres, são detentores e necessitados de calorias de ternura, ímpetos e afectos. A aprendizagem da humanidade demora uma vida. Dentro da dor pode haver alegria e na alegria um centrismo e a desilusão que o conhecimento encerra. O mistério do sofrimento não tem idade. De mãos dadas debaixo da ponte atravessam-se as sete cores do arco-íris, impenetráveis. Os teus beijos mantêm a virgindade do olhar, debaixo da ponte parida do rio.
Outrora era um homem cheio de vida pleno de convicções onde o importante era ser genuíno e ser dono de atitudes irrepreensíveis. A vida dera-lhe muito trabalho. Dera-lhe o trabalho que o entretinha e o tornara sabedor do que fazia. Era detentor dos segredos e da magia de uma peça única e soprada de vida, saída dos fornos com temperaturas extravagantes. Ao cair da noite, depois de uma árdua jornada, amava a terra e cuidava dos frutos que dela colhia. A sua horta era um pedaço de terra confidente e confiável. Ouvia-o em desabafadas confissões, acerca das desigualdades que lhe enchiam a alma. Nalguns dias feitos de noite, pescava na porção de mar que apelidava de seu. Era próximo e percorrido de pedaladas fortes e vigorosas, pelos pinhais da sua casa ate ao mar, e do mar até à sua casa. Via em São Pedro o rio desaguar no mar, sem senti-lo realmente e verdadeiramente, desaguado. Rio percorrido entre um pinhal denso de historias até a exaustão. Rio feito de segredos e de pinhal verde de sindicalistas vidreiros, reunidos em ermos da noite, numa esperança anunciada e adiada. Era um homem alto e forte, fingindo não compreender o que entendia na sua pele sentida e suada, de uma vida caucionada. Em cada momento seu e só seu, sonhava pela liberdade declarada nos jornais que lhe caíam anónimos na sua bancada, como que por milagre. Sabia que um dia a revolução subiria as ruas e desceria nas porções de mar e terra que possuía a retalho. Apenas o intento de o pão ser repartido igualitariamente o acalentava. Dia após dia soprava peças únicas de sonhos equitativos. Conhecia tão bem as conversas surdas que esvoaçavam nas esquinas onde não parava. Sabia que na esquina da direita se falava de quem eram, os que paravam na esquina da esquerda, e, que se sonhava aniquilar á queima-roupa os sonhos da esquina mais próxima e distante. Olhava os seus filhos todas as noites já dormindo de uma esperança que o fazia semear o dia seguinte, sabendo que a qualquer momento lhes anunciaria o que calava. Esta é um pedaço feito de uma porção de vida, de um homem crente, artesão e vidreiro, dono de uma fatia de terra e de mar, com quem desabafava os seus sonhos tornados calados de um dia por nascer. Usava uma boina preta e caminhou numa marcha que pedia pão. Chamava-se António, e faleceu depois de o dia sonhado florescer. Morreu cheio o Sr. António, o pacato e sábio vidreiro, artesão de sonhos e confidente, da Marinha Grande.