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Cardilium

Cardilium

A rua era pequena mas rica

A chuva impermeabilizou a calçada de seixos. Era boa para derrapar com os pneus da bicicleta que guardava em casa da minha avó. Aquela avó que encontrei morta sentada aos 13 anos. Morava ao lado da taberna. Taberna donde me habituei a ver sair homens grandes a fumar. A rua cheirava a vinho e cigarros. Cheirava a jogo de cartas. As manhãs de sábado acordavam com o fumo do churrasco a frango. As terças-feiras deitavam-se com a neblina de fumo a peixe grelhado. As balizas de pedra reconstruíam-se a cada jogo que se organizava com a rua de trás. A roupa estendida nas cordas perfumava o sítio. Tinha vida a rua da corrente. Tinha putos que viviam. Trocavam-se na esquina com a rua de trás, os primeiros beijos no jogo da escondida. Havia quintais e um rio. Havia um castelo donde se avistava o reino. Ao lusco-fusco o jantar seguia o banho. Treinavam-se contas e a soma das sílabas. O Joaquim Casquilha não somava nem lia. O gordo não andava de bicicleta. O Miguel era o ás das caricas. A Conceição era a dos beijos. As avós eram as educadoras. Os pais os presidentes e as mães primeiras damas. Na oficina do Sr. João soldavam-se peças aos carros. O ferrador ferrava os cavalos. Da igreja saíam as do costume. O padre sorria a todos na rua, mesmo ás de mau porte. A rua era pequena mas rica. Tinha de tudo como na França mesmo que em Agosto os regressados dissessem que não. A única coisa que não tinha era “fenetres” e “voitures” segundo o Carlos a quem a Mãe chamava de “Charles”……

metamorfose

Assento a cabeça nos joelhos dobrados

Retiro os pensamentos

Dos ombros rijos.

Padeço de imagens que se sobrepõem

Metamorfoses

Movimento.

 

Os olhos balanceiam-se ritmados,

Tenho os braços dormentes.

Os músculos contraem-se

O esforço é contínuo.

O descanso quando vier é eterno

O firmamento move o destino.

 

Grito ao céu

Uníssono e roufenho,

As ordens lilases a que obedeço.

Os continentes unem o mar

Que rompem ao tempo

Que descubro no ventre.

 

Emudeço aflito a alma

Em estorias que fascinam a miséria,

Como um sonho real e distante,

A barcaça cede á costa

Um mísero olhar,

Espera a ilusão.

 

 

 

Diante da insanidade das impossibilidades vergo-me

Sinto-me natureza. Nela encontro sinais e quietude. A mãe lua e o pai mar fecundaram-me. O vento devolve-me segredos e questões. Deito-me ao pôr-do-sol com o novo dia. A noite desfaz o preconceito. O azul é salgado nos teus lábios. Sabes a mar. Se sou natureza, não sou impossível. Procuro nos dias, horas e encontros fugir de mim. É como se fosse desacerto encontrar-me. Devia plantar em terra fértil os meus desejos, as minhas ideias, os meus ideais. Detesto silêncio cheio de nada. A impossibilidade dirige-me para a solução. Creio haver caminho na impossibilidade. Caminhos existem. Estou a caminho. Parar dá-me coerência. Encosto-me num muro velho, largo, rochoso e frio. Encavalito-me nas asas de um pássaro e vou. Vou num voo principesco e rasante. Adormeço á beira de um lago que invento. Corro em direcção ao verde que desenho na minha alma. Esperteza no olhar, luz e feitiço. Os abraços estão longe. Não sei se fui apresentado a tal intimidade. Não me lembro. O espírito altera-se em mutações constantes. Sou metamorfose. Hoje vejo melhor que ontem. No último minuto não sou o mesmo que no corrente. Decorrente é a minha viagem. Assim se esgotam as palavras de encontro ao rude troço da loucura. Diante da insanidade da impossibilidade vergo-me.

Quero mesmo como no verbo querer

Durante horas hesito. Oscilo na dúvida constante da decisão. Caminho entre as arvores que toda a vida conheci. Grandes, vaidosas, imponentes. É madrugada. Acordada apenas esta a natureza e eu. Faz um frio que me aconchega. Conforta-me cada passada que dou naquela estrada de gravilha que corre para o Tejo. Oiço os ramos estalarem no céu. Mexem-se sossegadas as árvores, os arbustos sorriem. Que estranho pensei! Mais lá para a frente o nevoeiro. Sinto vontade de correr e de me embrulhar naquele manto nebuloso. Continuo a caminhar sem alterar o ritmo. Passam na estrada de vez em quando luzes na direcção oposta ao rio. No meio do milho plantado e crescido aceno a um espantalho que me ignora. Altiva, esta imóvel uma casa branca e rígida. Habita com as árvores em harmonia. Tem um telhado com poucas telhas que abriga os pássaros e as alfaias agrícolas. As ideias passeiam comigo e bailam em decisões contrárias á minha loucura. Espero o soar dos primeiros raios, antes que o nevoeiro se vá. Há pescadores que roubam peixe ao rio uma vida. Tenho que avisar os peixes penso em desvario! Enviar um sinal, qualquer coisa. Embebedar os meus olhos para não ver. Passar de margem. Ser marginal. O nevoeiro está agora mais cinzento, mais denso. As sombras ultrapassam rapidamente os meus passos. Passo sem ti o resto da minha vida, como o passado que não tive. Quero pegar-te na mão e saber dançar. Quero ter o desejo de te desejar. Não quero que o nevoeiro parta e o dia raie. Quero mesmo, como no verbo querer.

 

Cada primavera perfuma mais que a anterior

Passam os anos. As orquídeas são mais formosas nas Primaveras. São mais bonitas Primavera após Primavera. Cada primavera perfuma mais que a anterior. Cada lua nova inunda mais que a velha. Cada vírgula é mais bem desenhada na lua seguinte. O último pôr-do-sol é sempre mais sublime. Imagino que o envelhecimento é apenas experiência. Experiência em imaginar quadros de cores fantásticas de paz. Saber de cor meia dúzia de sílabas que me encaminham até hoje. Refugio-me na calma de beber cada dia. Existem mulheres novas envoltas de admiração. Ver a minha filha mulher, alterou-me essa visão. Queria pintar um quadro. Expor na tela o colorido que me invade a alma, debruada por momentos. A existência tem acordes e sons. Vejo do outro lado a ânsia de me encontrar encontrando. Escrevo pelo alívio que sinto ao sentir. Penso pela importância que me dá a analise. Os olhos humanos dão-me endereços anónimos, mas consciência real. Pesa-me o sossego de estar no meu quarto só, mas livra-me do desassossego. Não tenho medo de morrer porque se morre aos poucos. Não tenho medo de viver porque se vive de “muitos”. Sou afinal, a soma do ar que respiro, com o sangue que me bombeia o coração. Sou a interacção de mim para mim. Sou decisão. Sou solidão mesclada com pessoas. Sou dos outros não deixando de ser de mim.

Desnavegar

Quantos mais ensinamentos recolho mais duvidas tenho. Quantos mais livros leio mais inculto me sinto. Quanto mais viajo mais admiro os navegantes quinhentistas. Navegante é uma palavra bonita. Navegar, diz o dicionário é:

- Viajar sobre água

- Na atmosfera ou no espaço

- Com veículo adequado

- Viajar por mar, andar no mar

- Dirigir meio de transporte aquático ou aéreo

- Seguir, avançar

- Informática percorrer a Internet através de uma aplicação adequada (browser).

 

Navegar é preciso. Sobre a água, sobre o céu, mas essencialmente pelos sonhos fora. Navegar por paixão. Navegar pela cor da alma. Navegar de mente aberta. Percorrer caminhos outrora desconhecidos. Navegar pelo corpo exausto da viagem. Navegar entre tempestades e calmarias. Navegar entre o cansaço e a quietude.

Desnavegar é o processo do medo da descoberta. Medo da intimidade e do mais podre que há em nós. Medo da revelação do sonho. Desnavegar é como viajar contra o tempo. È como se o destino se escondesse antes de iniciarmos a viagem. È como voltar para trás antes de começar. È como se um abraço fosse uma facada e um beijo uma traição. Navegar por navegar. Deixar o vento soprar o caminho, a lua guiar-nos pelas sombras e o sol queimar-nos os passos. Desnavegar nem sequer é o contrário de navegar. Desnavegar é a recusa de viver. Desnavegar é cobardia.

Mahatma Gandhi

Um dia, um pensador indiano fez a seguinte pergunta aos seus discípulos:

"Porque é que as pessoas gritam quando estão aborrecidas?"

"Gritamos porque perdemos a calma", disse um deles.

"Mas, porquê gritar quando a outra pessoa está ao seu lado?" Questionou novamente o pensador.

"Bem, gritamos porque desejamos que a outra pessoa nos ouça", retorquiu outro discípulo. E o mestre volta a perguntar:

"Então não é possível falar-lhe em voz baixa?"

Várias outras respostas surgiram, mas nenhuma convenceu o pensador.

Então ele esclareceu: "Vocês sabem porque se grita com uma pessoa quando se está aborrecido?" O facto é que, quando duas pessoas estão aborrecidas, os seus corações afastam-se muito. Para cobrir esta distância precisam gritar para poderem escutar-se mutuamente. Quanto mais aborrecidas estiverem, mais  forte terão que gritar para se ouvirem um ao outro, através da grande distância.

Por outro lado, o que sucede quando duas pessoas estão apaixonadas? Elas não gritam. Falam suavemente. E porquê? Porque os seus corações estão muito perto. A distância entre elas é pequena. Às vezes os seus corações estão tão próximos, que nem falam, somente sussurram. E quando o amor é mais intenso, não necessitam sequer de sussurrar, apenas se olham, e basta. Os seus corações entendem-se. É isso que acontece quando duas pessoas que se amam estão próximas." Por fim, o pensador concluiu, dizendo:"Quando vocês discutirem, não deixem que os vossos corações se afastem, não digam palavras que os distanciem mais, pois chegará um dia em que a distância será tanta que não mais encontrarão o caminho de volta".

Mahatma Gandhi

 

viajantes

Esta coisa da modernidade das aplicações informáticas mudou o mundo. O mundo tornou-se pequeno. Esta coisa de Bangkok ser longe acabou. Bangkok afinal esta á distancia de um clique. As pessoas continuam a viajar mas deixaram de ser viajantes. Melhor, os viajantes estão em vias de extinção. Os turistas têm poiso certo. Viajam e regressam. Os viajantes têm alma nómada e são ricos. Mais ricos que os turistas de hotéis luxuosos. Um viajante conhece o mundo e sabe como se sobrevive nele. Os viajantes não tomam pequenos-almoços em hotéis. Muito menos nadam em águas azuis celestes. Os viajantes têm alma de cigano. São nómadas. Ora a diferença entre viajar e conhecer sítios é relevante. Comer ovos com salsichas ao pequeno-almoço na Índia, não é a mesma coisa que comer não sei o quê condimentado, mas que sabe bem. Parar nas passadeiras em Londres, ou os peões terem cuidado ao passar nas passadeiras em Marrocos é exactamente o contrario. Cada qual vive feliz no seu sítio. O viajante tem sempre o mesmo papel, sabe viver no sítio onde se encontra. Cada vez se viaja menos. Os viajantes estão em vias de extinção mas não param de viajar. Os viajantes guiam-se pelas estrelas. Pela intuição. Pelos sabor e pela cor. Os viajantes namoram com a lua e são terroristas emocionais. Vagabundeiam pelas emoções e querem ser cremados. Os viajantes são vagabundos de luxo.